O presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva (PT) afirmou que não vê “nenhuma contradição” entre seu chamado para a descarbonização de economias em discurso na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) e sua reunião com executivos da petroleira Shell, que têm interesse em explorar petróleo na região brasileira conhecida como Margem Equatorial.
O encontro, que aconteceu fora da agenda e foi revelado pela BBC News Brasil, causou desconforto a integrantes do próprio governo do petista.
Lula se reuniu na segunda-feira (23/09) com o presidente global da companhia petrolífera, Wael Sawan, e o presidente da Shell Brasil, Cristiano Pinto.
“O que nós precisamos ter consciência é que a gente não está em um mundo em que a gente pode dizer que pode acabar o combustível fóssil, que vai ter combustível alternativo. É preciso que quando a gente fale isso, a gente aponte como é que vai viver o planeta Terra sem energia fóssil até a gente se dotar de autossuficiência de outro tipo de energia”, afirmou Lula.
Economistas argumentam que o Brasil não tem condição de abrir mão das receitas com o petróleo - algo que nem mesmo os países mais ricos têm se comprometido a adotar.
Segundo o presidente brasileiro, tecnologias com energias alternativas - como os carros elétricos - são promissoras, mas ainda incipientes.
“A gente vai utilizar o potencial de exploração de petróleo do Brasil para que a gente possa transformar a Petrobras numa empresa de energia, e não numa empresa de petróleo. Quando o petróleo acabar, a Petrobras tem que estar produzindo outras energias que o Brasil e o mundo precisam", disse o presidente.
Lula afirmou que a Shell “tem investimentos há 100 anos no Brasil, é sócia da Petrobras com 60% dos postos leiloados e ela só vai para a Margem Equatorial quando o governo brasileiro autorizar a Petrobras a fazer a pesquisa na Margem Equatorial”.
O Brasil ainda não definiu se permitirá a exploração na área, mas ambientalistas e a ministra do Meio Ambiente Marina Silva já fizeram ressalvas à empreitada por conta dos riscos ambientais na foz do Rio Amazonas.
Reservadamente falando à BBC News Brasil, auxiliares do presidente questionaram o teor e o momento da reunião.
Em nota à BBC News Brasil, a Shell afirmou que "a conversa passou por tópicos de relevância do setor de energia no Brasil e foi também uma oportunidade de apresentar ao presidente o estudo de cenários de transição energética elaborado pela companhia com foco no país."
O Brasil está há meses enfrentando estiagens severas e, mais recentemente, vem sendo sufocado por queimadas. O governo tem sido criticado pela demora nas respostas.
"O meu governo não terceiriza responsabilidades nem abdica da sua soberania. Já fizemos muito, mas sabemos que é preciso fazer mais", reconheceu o presidente em discurso na Assembleia Geral da ONU, evitando se vitimizar.
O presidente, no entanto, não se estendeu em descrever o cenário.
Lula citou ainda as enchentes no Rio Grande do Sul como um exemplo, junto aos incêndios, da necessidade de medidas mais urgentes e profundas dos líderes globais.
O que ele deseja é que os países ricos — e os maiores poluidores do mundo — se comprometam a remunerar os emergentes pelos serviços de conservação florestal e pela redução de emissões de gases do efeito estufa.
O presidente brasileiro relembrou que diversos acordos para metas de emissões e remuneração de serviços ambientais têm sido descumpridos sistematicamente e que é preciso uma reforma da governança global para levar os países a cumprirem seus compromissos.
Reforma da ONU: artigo 109
Nesta quarta (25/09), em reunião do G20 (grupo das economias mais ricas do mundo), aberta a todos os membros da ONU, Lula anunciou que “o Brasil considera apresentar proposta de convocação de uma Conferência de Revisão da Carta da ONU, com base no seu artigo 109”.
“Na sua atual configuração, o Conselho de Segurança tem se mostrado incapaz de resolver conflitos, e menos ainda de preveni-los. Falta transparência no seu funcionamento. Falta coerência nas suas decisões. Milhões de pessoas sofrem as consequências dessa ineficácia”, discursou Lula, diante dos representantes de cerca de 90 países na primeira reunião conjunta entre G20 e Assembleia Geral da ONU na história.
A pauta da reforma dos organismos multilaterais é a principal prioridade da agenda do petista em Nova York.
O artigo 109 da Carta da ONU afirma que um processo para reforma poderia ser aberto via plenária da Assembleia Geral desde que conte com o apoio de ao menos ? dos 193 países que compõem o órgão.
O dispositivo está em estudo por diplomatas do Brasil há semanas, e havia a possibilidade de que Lula o mencionasse explicitamente em seu discurso de abertura da Assembleia Geral nesta terça, o que não aconteceu.
O presidente brasileiro optou por apenas aludir a “negociações políticas” baseadas “na vontade da maioria” diante dos líderes, a quem caberia avaliar se aprova o artigo 109 para dar início a uma espécie de “constituinte” da ONU.
Ainda que o início da “constituinte” fosse aprovado pela Assembleia Geral, não existe qualquer garantia de que suas decisões de reforma seriam adotadas, porque os cinco membros-permanentes do Conselho de Segurança da ONU podem vetar.
Sem poder de veto
A proposta de conferência para a evocação do artigo 109 não está entre as medidas aprovadas por consenso na reunião do G20/Assembleia Geral, embora o documento mencione, de maneira inespecífica, “o chamamento para a reforma transformadora do Conselho de Segurança da ONU, com uma composição aumentada que aprimore a representação de regiões e grupos hoje subrepresentados”.
Em seus discursos na reunião, tanto o secretário de Estado americano, Anthony Blinken, quanto o ministro de Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, disseram concordar com as mudanças.
No entanto, há ceticismo sobre o quanto os dois países e os demais três representantes permanentes do Conselho, todos com poder de veto, estariam dispostos a abrir mão de poder.
“O que nós estamos desejando é que haja uma nova geopolítica para que a gente possa ter a totalidade dos continentes representados na ONU, incluindo no Conselho de Segurança, acabando com o direito de veto e aumentando o poder de comando das Nações Unidas. Se isso acontecer, eu penso que a gente poderia evitar muitos conflitos de hoje”, afirmou Lula.
O presidente afirmou que o número de israelenses mortos nos ataques de 7 de outubro do Hamas foram revistos para baixo. E embora tenha evitado o termo em seu discurso de terça-feira, chamou de “genocídio” a atual situação do conflito em Gaza.
"Eu, sinceramente, acho que os países que dão sustentação ao discurso do primeiro-ministro Netanyahu precisam começar a fazer esforço maior para que este genocídio pare. Condeno de forma veemente esse comportamento do governo de Israel. Tenho certeza que a maioria do povo de Israel não concorda com esse genocídio", disse Lula nesta quarta-feira.
Ele comparou o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu ao presidente russo Vladimir Putin em termos de condenações no Tribunal Penal Internacional.
Em outra frente, nesta sexta, Brasil e China farão na ONU uma reunião com outros 24 países do 'Sul Global' (nações em desenvolvimento, principalmente da América do Sul, África e Ásia) para discutir o conflito na Ucrânia.
Em seu discurso na ONU, Lula afirmou que nem Rússia nem Ucrânia serão capazes de prevalecer por meios militares e que é preciso abrir negociações entre os dois países.
Também na ONU, o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky criticou a iniciativa, sugerindo que a real motivação do Brasil seria oportunismo ou tendência pró-Rússia.
“Quando a dupla chinesa-brasileira tenta crescer um coro de vozes — com alguém na Europa, com alguém na África, dizendo algo alternativo a uma paz plena e justa —, surge a pergunta: qual é o verdadeiro interesse?”, questionou Zelensky.
“Todos devem entender: vocês não aumentarão seu poder às custas da Ucrânia. O mundo já passou por guerras coloniais e conspirações de grandes potências às custas daquelas que são menores”, concluiu o ucraniano.
Questionado sobre a crítica, Lula afirmou que Zelensky “só falou o óbvio".
"Se ele tem que defender a soberania, é obrigação dele. Se ele tem que ser contra a ocupação territorial, é obrigação dele. O que ele não está conseguindo fazer é a paz. E o que estamos propondo não é fazer a paz por eles, o que estamos é chamando a atenção para que eles levem em consideração que somente a paz vai garantir que a Ucrânia sobreviva enquanto país soberano e a Rússia sobreviva", respondeu o presidente brasileiro.
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