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'Um monstro': o que a história não mostra sobre o rei Henrique 8º

No novo filme 'Firebrand', Jude Law e Alicia Vikander estrelam como Henrique 8º e sua sexta esposa, Catherine Parr. O longa reformula como a história e a cultura apresentaram o monarca.

Indiscutivelmente, Henrique 8º (1491-1547) foi o mais famoso rei britânico. Sua própria aparência pode ser reconhecida instantaneamente, graças ao histórico retrato do pintor Hans Holbein, o Jovem (c.1497-1543).

Com sua grande estatura e coberto de joias, Henrique 8º encara o observador com seus penetrantes olhos castanhos. Mas o homem por trás daqueles olhos – que descartou duas esposas e ordenou a execução de outras duas – é mais difícil de decifrar, apesar das diversas tentativas apresentadas por livros, filmes e programas de TV.

O mais recente relato é o filme Firebrand, do diretor brasileiro Karim Aïnouz.

Ele mostra Jude Law interpretando Henrique 8º e Alicia Vikander como sua sexta e última esposa, Catarina Parr (1512-1548). Ele é baseado no livro Xeque-Mate da Rainha, da escritora britânica Elizabeth Freemantle (Ed. Paralela, 2016), que conta a história do ponto de vista de Parr.

No filme, Henrique 8º é obeso e mal consegue andar sem ajuda. Ele tem úlceras na perna, causadas por uma ferida no tornozelo sofrida 10 anos antes — o que é um fato histórico.

O rei também abusa física e emocionalmente da sua sexta esposa e introduz os dedos nas bocas das mulheres para inspecioná-las, sempre que tem vontade.

O filme reflete a tensão de Parr e é vagamente baseado em outro fato histórico: em algum momento, Henrique assinou um mandado de prisão contra ela.

"Realmente acredito que o delírio e a loucura devem ter começado quando ele era jovem, quando soube que era o segundo, atrás apenas de Deus", diz Jude Law à BBC.

"É como uma loucura em uma forma estranha. Não estou tentando justificá-lo, mas, se todos disserem 'sim' para você por 50 anos, aquilo se torna um delírio. E este é um estado mental doentio para qualquer pessoa — que dirá para alguém com o poder de reagir com violência a quem discordar dele."

Karim Aïnouz declarou ter buscado inspirações contemporâneas para sua versão de Henrique 8º.

"Um dos primeiros foi Donald Trump", diz à BBC. "Mas não foi só ele. Acho que Henrique é o resultado de um homem que ficou no poder por muito tempo."

"Eu quase tentei fazer uma autópsia dele. É superimportante para mim entender que as pessoas não nascem daquela forma, que as pessoas se tornam um Henrique."

"Foi um processo interessante porque ele não foi só um enorme patriarca, mas este Henrique também foi comparado a um chefe da máfia. Acho que a forma de organização das monarquias naquele momento da história era parecida com a máfia", afirma Aïnouz.

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Firebrand conta a história do ponto de vista da sexta esposa de Henrique 8º, Catarina Parr

Esta certamente não é a imagem de Henrique 8º, também conhecido na história como o "Bluff King Hal", o grande rei que governava a "alegre" Inglaterra dos Tudor.

Uma das primeiras imagens do monarca no cinema surgiu em Os Amores de Henrique 8º (1933), com o ator Charles Laughton (1899-1962) no papel do rei. O filme mostra Henrique entusiasmado, mastigando uma pata de galo – uma referência a outra lenda popular que explicaria por que ele ficou daquele tamanho.

"Ele é mostrado na história com um certo perfil, quase como Papai Noel – um Papai Noel do mal", diz Law. "E até os seus casamentos foram minimizados em versos infantis: 'divorciou, decapitou, morreu; divorciou, decapitou, sobreviveu'."

A primeira ilustração de Henrique 8º e suas esposas no cinema também traz estereótipos de gênero. A quarta esposa do rei, Ana de Cleves (1515-1557), parece tão pouco atraente que pode ser descartada. Já a quinta esposa, Catarina Howard (c.1523-1542), é mostrada como uma mulher ambiciosa. Ela era adolescente quando foi executada pelo rei.

Já Catarina Parr — a sexta esposa, que sobrevive à morte de Henrique — domina o rei.

Outros atores que interpretaram Henrique 8º na tela incluem Robert Shaw (1927-1978), no filme O Homem que Não Vendeu Sua Alma (1966), e Keith Michell (1926-2015), na série de TV Henry VIII and his Six Wives ("Henrique 8º e suas seis esposas", em tradução livre), produzida pela BBC em 1970.

Estas interpretações podem mostrar o rei no final da vida como uma figura enorme, cruel e insensível, como no caso de Michell, mas sem a sensação de medo profundo retratada em Firebrand.

Com outro filtro

O reenquadramento de Henrique 8º na cultura popular, segundo Elizabeth Freemantle, deve-se à reavaliação do papel das mulheres na história.

"Mesmo sabendo o que aconteceu com algumas daquelas mulheres, acho que, culturalmente, havia um acordo silencioso para que as considerássemos culpadas de alguma forma", diz à BBC.

"Quando pesquisei sobre ele, observei todas as interpretações, mas havia um glamour associado a ele que, eu acho, não existe mais. Acredito que estamos observando Henrique com um filtro diferente, segundo a nossa observação da forma como os homens tratam as mulheres. Ele mudou, pois a nossa cultura mudou."

"Agora, muitos historiadores estão fazendo um trabalho fantástico, explorando estas histórias, observando os julgamentos de Ana Bolena [c.1501-1536] e Catarina Howard, e vendo que elas sofreram acusações falsas. Estas mulheres eram inocentes e ele era um monstro", conclui Freemantle.

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O retrato pintado por Hans Holbein, o Jovem, fez com que a aparência de Henrique 8º se tornasse instantaneamente reconhecível

A violência de Henrique 8º sobre suas esposas já foi exibida no cinema.

No filme Ana dos Mil Dias (1969), Henrique 8º (Richard Burton, 1925-1984) estapeia Ana Bolena (Geneviève Bujold). Mas o tom do filme demonstra como o posicionamento das pessoas evoluiu desde aquela época.

Os abusos físicos ilustrados em Firebrand pretendem provocar uma reação muito mais emocional. Jude Law e Alicia Vikander acreditam que as cenas eram necessárias.

"Acho importante dizer que esta é uma obra que fala muito sobre o relacionamento, um casamento entremeado pela violência doméstica, física e psicológica, e que Henrique era o perpetrador. E não há como evitar isso", explica Law. "Não há como esconder isso dizendo o contrário."

"É difícil entender a situação de Catarina e seu medo de perder a cabeça a qualquer momento", conta Vikander à BBC. "Ela precisa criar amizade, amar, manipular o rei, tudo para que ela consiga acordar na manhã seguinte."

"Para falar a verdade, acho que ficamos muito sintonizados com Karim, como diretor, para não nos afastarmos da realidade brutal do que deve ter sido este relacionamento, ou como costumava ser para as mulheres em geral naquela época."

A história das esposas

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As esposas de Henrique 8º se tornaram símbolos mais recentemente

A segunda esposa de Henrique 8º, Ana Bolena, é a mais famosa delas. Existe até uma ópera do século 19 com seu nome.

Um dos motivos pode ser o macabro interesse pela sua morte – Ana foi executada pelo rei em 1536.

Mas, coletivamente, as esposas se tornaram símbolos mais recentemente, o que se deve, em parte, ao sucesso do musical Six ("Seis"), que nem mesmo apresenta Henrique 8º como personagem no palco.

O recente interesse pelas histórias delas, não pelo rei, também é demonstrado pela exposição Six Lives ("Seis vidas"), na National Portrait Gallery, em Londres. Ela apresenta interpretações fotográficas modernas das mulheres, ao lado dos seus retratos da era Tudor.

Mas, individualmente, as esposas de Henrique 8º permanecem relativamente desconhecidas – incluindo Catarina Parr, como Vikander percebeu quando começou a pesquisar a vida dela.

"Ela foi a primeira mulher da história britânica a ter um livro publicado em seu próprio nome, The Lamentation of a Sinner ['O lamento de uma pecadora', em tradução livre]", conta a escritora.

"Mas até os meus amigos britânicos – e consultei muitos deles – realmente não sabiam que o que ela havia feito. É um ponto da história que decidimos esquecer."

Firebrand dá voz à rainha Catarina e apresenta uma nova versão do rei Henrique 8º, talvez à luz do seu comportamento abusivo em relação às mulheres.

O rei causa aversão e faz as pessoas próximas se afastarem, horrorizadas.

Aïnouz elaborou o cenário criando um odor terrível em Jude Law, representando o que deve ter sido o cheiro da perna purulenta do rei.

"Ele estava literalmente apodrecendo", explica Law, "e, também emocionalmente, ele é abandonado por ser meio que indesejado — e sabe que a morte está chegando."

Mas Law acredita que também haja compaixão, já que parte da tragédia pessoal do rei é que, um dia, ele foi considerado um homem desejável.

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Robert Shaw interpretou o monarca no filme 'O Homem Que Não Vendeu Sua Alma', de 1966

Esta versão mais jovem e sexy de Henrique 8º pode ser encontrada em produções como as séries de TV Wolf Hall (2015), na interpretação de Damian Lewis, ou The Tudors (2007-2010), com Jonathan Rhys Meyers. E Eric Bana também interpreta esta versão de Henrique 8º no filme A Outra (2008).

Os cronistas da era Tudor, de fato, registraram que o jovem rei que ascendeu ao trono inglês com 18 anos de idade era inteligente, atlético e talentoso.

"Sem recorrer nem tentar trazer qualquer solidariedade pelo rei, ele ainda foi aquele jovem, aquele menino de ouro com tanto potencial", explica Law.

"Ele era músico, esportista e dançarino, lia muito e era reconhecido. E seu primeiro casamento, com Catarina de Aragão [1485-1536], foi bastante feliz, até que ele ficou obcecado pela ideia de ter um homem herdeiro do trono."

"Por isso, [eu queria] observar aquelas imagens mais jovens e sentir o arrependimento que ele deve ter sentido, aquela sensação de repúdio por si próprio, quando ele olhava para trás e pensava 'o que eu fui'", prossegue Law.

"Acho que eu quis trazer isso nele e, com isso, torná-lo tridimensional."

"Eu não queria simplesmente interpretar o homem mau com uma pata de galo nas mãos."

O filme 'Firebrand' foi lançado no Reino Unido e na Irlanda em 6 de setembro de 2024. Ainda não havia data de lançamento no Brasil quando esta matéria foi publicada.

Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Culture.

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