No momento em que as televisões do Líbano transmitiam um raro pronunciamento do xeque Hassan Nasrallah, chefe do movimento xiita Hezbollah, o estrondo de caças israelenses rompendo a barreira do som pôde ser ouvido em Beirute. Parecia um recado de que a guerra começou a mudar de foco da Faixa de Gaza, no sul de Israel, para a fronteira norte. Nasrallah advertiu que Israel "cruzou todas as linhas vermelhas" com os ataques sem precedentes de terça-feira (17/9) e quarta-feira (18) — a explosão de milhares de pagers e de centenas de walkie-talkies pertencentes aos integrantes da milícia.
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"O que aconteceu foi uma grande operação terrorista. Definiremos os eventos como massacres. Estabelecemos vários comitês internos de investigação, exploramos todos os cenários e possibilidades, e chegamos a uma conclusão quase final: esses massacres equivalem a crimes de guerra ou uma declaração de guerra", declarou Nasrallah, que reconheceu um "duro golpe".
O líder do Hezbollah prometeu que Israel enfrentará "uma resposta esmagadora do eixo de resistência" — uma alusão a atores regionais aliados do grupo, como o movimento fundamentalista islâmico Hamas, os rebeldes iemenitas huthis, o Irã, a Síria e milícias iraquianas. Nasrallah também desafiou as forças de Benjamin Netanyahu a invadirem o Líbano. "O tolo líder do Comando Norte de Israel fala sobre uma zona de segurança dentro do território libanês. Estamos esperando que vocês entrem no território libanês. Estamos esperando por seus tanques, e veremos isso como uma oportunidade histórica", disse. Nasrallah avisou que "nenhuma escalada militar, nenhum assassinato e nenhuma guerra total conseguirão o retorno dos residentes (do norte de Israel) à fronteira" com o Líbano.
Depois do discurso, as Forças de Defesa de Israel (IDF) anunciaram que a Força Aérea do país bombardeou 100 lançadores de foguetes do Hezbollah e locais de "infraestruturas terroristas" que continham cerca de mil foguetes prontos para serem disparados. No norte de Israel, ataques com mísseis e drones da milícia xiita mataram dois soldados das IDF e feriram nove. Yoav Gallant, ministro da Defesa israelense, assegurou que "as ações militares contra o Hezbollah" continuarão.
Explosivos
Uma investigação inicial das autoridades libanesas concluiu que os pagers e walkie-talkies foram armados com explosivos antes de entrarem no país. A informação foi divulgada pela missão do Líbano nas Nações Unidas, por meio de carta. "As investigações iniciais mostraram que os dispositivos foram armados profissionalmente, antes de chegarem ao Líbano, e foram detonados pelo envio de mensagens aos dispositivos", afirma o texto, ao qual a agência de notícias France-Presse teve acesso. Os ataques deixaram 37 mortos e mais de 3 mil feridos. O médico oftalmologista libanês Elias Warrak contou ao Correio que 60% dos lesionados perderam um ou os dois olhos.
Professor de direito na Universidade Hebraica de Jerusalém, Barak Medina vê duas possibilidades de escalada do conflito entre Israel e Líbano. "Uma delas é o Hezbollah ampliar o seu poder de fogo até mais ao sul e atingir a cidade de Haifa, a 30km da fronteira, ou mesmo Tel Alviv. Em contrapartida, Israel bombardear Beirute. A outra envolve o Hezbollah invadir Israel", afirmou ao Correio, por e-mail. Ele acredita que Nasrallah foi "cauteloso" ao não ameaçar tomar nenhuma dessas medidas. "Até agora, parece que escolheu intensificar os ataques aos soldados das IDF e a vilarejos israelenses situados em um raio de até 10km da fronteira com o Líbano. Israel faz o mesmo, com mais bombardeios intensivos a alvos militares."
Medina acha improvável que o Hezbollah tome qualquer uma dessas opções, ao menos nos próximos dias. "Existe uma pressão política, dentro do Líbano, para que Nasrallah adote uma atitude. Também me parece que Israel não escalará o conflito", avalia. O especialista lembra que as explosões de pagers somente ocorreram na terça-feira passada porque Israel temia que o complô fosse descoberto.
Dilema
Historiador aposentado da Universidade Libanesa Americana, em Beirute, Habib Malik disse à reportagem que as ameaças de Nasrallah não passam de "fanfarronice". "O discurso foi uma maneira de manter sua audiência pacificada e solidária após as desastrosas explosões de pagers e walkie-talkies. A grande questão permanece: o que ele poderá fazer?", explicou. Para Malik, escalar o conflito significaria uma rápida derrota para Israel. "Se Nasrallah não escalar, com o tempo, seus apoiadores interpretarão isso como um sinal de fraqueza. Ele se encontra em um dilema, e a iniciativa está totalmente nas mãos dos israelenses neste momento."
Eytan Gilboa — professor de relações internacionais da Universidade de Bar-Ilan (em Ramat Gan) — admitiu ao Correio que Nasrallah tem coragem. "Ele é o agressor que declarou guerra a Israel em 8 de outubro e, desde então, vem atacando o território israelense de forma implacável, matando civis e destruindo casas em cidades e vilas, e expulsando cerca de 100 mil judeus de suas casas", observou. "Ou Nasrallah concorda com uma solução diplomática que empurre seus combatentes para mais de 10km da fronteira israelense ou o Exército de Israel o forçará a fazê-lo, por meio de uma operação limitada ao sul do Líbano."
ENTREVISTA / ELIAS L. WARRAK, médico libanês
"É péssimo ter que tomar a decisão de remover olhos"
Elias L. Warrak, reitor da Universidade Balamand, professor de oftalmologia e médico do Hospital da Universidade Monte Líbano e do Hospital de Ensino Avançado de Cuidados Oftalmológicos, em Beirute, se preparava para realizar uma nova cirurgia em 30 minutos, quando falou ao Correio, por telefone, na manhã de ontem. Responsável por tratar várias vítimas das explosões de pagers e de walkie-talkies, ele detalhou os ferimentos mais comuns e admitiu que nunca viu um número tão alto de pacientes que precisaram ter os olhos removidos após as explosões.
Quais as similaridades das lesões causadas pelas explosões e quais os casos mais graves?
A maioria das vítimas das explosões sofreu lesões no rosto e nos olhos. Grande parte delas também apresentam lesões nas mãos. Quando elas seguraram os pagers e os aproximaram dos olhos, automaticamente as mãos e o globo ocular foram atingidos. Infelizmente, são ferimentos muito graves, porque, em muitos dos casos, as pessoas perderam pelo menos um dos olhos ou alguns dedos das mãos.
Qual foi o objetivo desses ataques? Cegar ou matar as pessoas?
Definitivamente, o que os autores destes ataques fizeram foi tentar matar as pessoas ou torná-las disfuncionais. Quando você perde seus olhos ou suas mãos, isso o tornará incapaz de fazer o que você fazia. O objetivo foi assassinar ou incapacitar os pacientes.
O senhor viveu alguma situação parecida, durante o exercício da medicina no Líbano?
Infelizmente, vivi uma situação parecida durante a Guerra Civil Libanesa. Na época, passei alguns anos no hospital da Universidade Americana, em Berute. No pronto-socorro, me deparei com várias vítimas do conflito. No entanto, pela primeira vez em 25 anos de medicina, vejo um número tão alto de pacientes que tiveram os olhos totalmente removidos ou estilhaçados pelas explosões.
Como o senhor se sente, enquanto médico, ao ver a gravidade desses casos?
É um sentimento péssimo quando você vê alguém, jovem, na casa dos 20 anos, e toma a decisão de remover os seus olhos. Não posso dizer quão feio é esse sentimento. Como eu disse, é a primeira vez em 25 anos de prática acadêmica e clínica em que tive de remover tantos olhos. Cerca de 60% dos pacientes tiveram pelo menos um dos olhos extraído.
De que forma o senhor e outros libaneses lidam com o medo provocado por essas explosões?
Como você sabe, o povo libanês é bem resiliente. Temos passado por momentos muitos difíceis nos últimos cinco anos, como a pandemia de covid-19, a crise financeira e a explosão no porto de Beirute. Agora, essa guerra interminável no sul do Líbano. Finalmente, o que ocorreu nos últimos dois dias. Isso tem causado uma grande ansiedade na população, mas, como eu disse, o povo libanês tem uma enorme capacidade de readaptação. Graças a Deus, temos uma boa equipe médica que pode cuidar das vítimas em Beirute e em outras cidades. (RC)