O local escolhido foi a Filadélfia (Pensilvânia), o berço da democracia nos Estados Unidos e a cidade onde a primeira bandeira norte-americana foi costurada, em junho de 1776. Durante uma hora e meia, o ex-presidente e candidato republicano Donald Trump e a atual vice-presidente e adversária democrata Kamala Harris travaram o duelo mais esperado do ano, a 56 dias das eleições que definirão o próximo ocupante da Casa Branca. Ao entrarem no auditório do National Constitution Center, às 21h03 (22h03 em Brasília) desta terça-feira, Kamala estendeu as mãos para Trump, que retribuiu o cumprimento. Se talvez o único debate entre ambos tenha começado em um tom morno e cordial, ganhou suspense quando o aborto e a imigração ilegal foram trazidos aos púlpitos.
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Por várias vezes, Kamala partiu para o ataque e acusou o rival de mentir. Filha de imigrantes e primeira mulher negra a disputar a Casa Branca, sustentou que Trump usa a raça para "dividir" os EUA. Para se defender, o magnata recorreu a um tom mais agressivo, elevando a voz, e lançou inverdades. Chegou a dizer que imigrantes haitianos comem animais de estimação dos norte-americanos.
Em tom enfático, Kamala acusou Trump de propagar "um monte de mentiras" sobre a interrupção da gravidez. E destacou ser imoral o fato de uma mulher não poder decidir sobre o próprio corpo. "Não é preciso abandonar a sua fé ou crenças profundamente arraigadas para concordar que o governo e Donald Trump certamente não deveriam dizer a uma mulher o que fazer com o seu corpo", disparou. "Se Trump for reeleito, ele assinará uma proibição nacional do aborto", avisou. "Bem, lá vai ela de novo. Ela está mentindo. Não estou assinando uma proibição e não há razão para assinar uma proibição porque conseguimos o que todos queriam", devolveu o republicano.
Em relação à segurança nas fronteiras, Kamala lembrou que foi uma promotora que lutou contra o crime transnacional e fez uma proposta incomum aos eleitores. "Eu quero convidar vocês a irem a um comício de Trump. Vocês o verão falar de personagens fictícios, como Hannibal Lecter, e verá que as pessoas saem mais cedo dos comícios, entediadas e exaustas", disse. "Ela disse que as pessoas saem dos meus comícios, mas ninguém vai nos dela." Mas, talvez o momento mais polêmico do debate tenha sido quando o republicano repetiu as alegações de que imigrantes haitianos estão "comendo os gatos" de moradores do estado de Ohio. "Em Springfield, eles estão comendo os cachorros — as pessoas que entraram — estão comendo os gatos, estão comendo os animais de estimação das pessoas que vivem lá. E é isso que está acontecendo no nosso país", assegurou Trump. Kamala balançou a cabeça e riu.
O ex-presidente se recusou novamente a admitir a derrota nas eleições de 2020. "Olha, há tantas provas. Tudo o que você precisa fazer é olhar para elas... Eu obtive quase 75 milhões de votos, o maior número de votos que qualquer presidente em exercício obteve. Me disseram que se eu obtivesse 63, que foi o que obtive em 2016, não poderia ser derrotado na eleição", disse, sem apresentar nenhuma evidência. Trump também advertiu que Israel "desaparecerá", caso Kamala seja eleita. "Ela odeia Israel. Se ela for presidente, acredito que Israel não existirá dentro de dois anos", disse Trump durante o debate presidencial.
O duelo foi aberto com uma disputa sobre a economia. A democrata lembrou que cresceu como uma menina de classe média e prometeu trabalhar para prosperar essa parcela da sociedade. Além de defender uma economia de oportunidades, anunciou que fará uma redução de US$ 50 mil em impostos para que os norte-americanos possam começar seus próprios negócios. "Eu acredito na ambição, na aspiração, nos sonhos do povo americano", declarou.
Trump contra-atacou Kamala e tratou de associá-la a um suposto desastre do governo de Joe Biden, ao acusá-lo de destruir os Estados Unidos. Ele assegurou que a rival não possui um plano para melhorar a economia. Mesmo sem citar números, garantiu que os EUA atravessam a maior e mais perigosa taxa de criminalidade da história. Kamala rebateu e explicou que Biden teve que "limpar a bagunça deixada por Trump" depois de quatro anos na Casa Branca. De acordo com ela, durante a gestão do magnata, os EUA sofreram "o pior índice de desemprego desde a Grande Depressão, a pior epidemia de saúde pública em um século e o pior ataque à democracia desde a Guerra Civil".
Ao abordarem a política externa, Kamala declarou que viajou o mundo como vice-presidente, "e os líderes mundiais estão rindo de Donald Trump". "Conversei com líderes militares, alguns dos quais trabalharam com você, e eles disseram que você é uma vergonha", disse, olhando diretamente para o adversário. A estratégia de Trump foi elogiar o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, como "um dos homens mais respeitados" e uma "pessoa dura".
Retrocesso
No último debate do bloco, às 23h40, Kamala comentou que duas visões totalmente diferentes foram apresentadas: uma de futuro e outra de atraso. Tornou a avisar que o país "não retrocederá"e a defender o direito de as mulheres abortarem. "Pretendo ser presidente para todos os americanos", disse.
"Ela afirmou que vai fazer isso, vai fazer aquilo. Por que ela nada fez nesses três anos e meio? Nossa nação está em grave declínio", rebateu Trump. "Converso com pessoas de todo o mundo e me dizem que os EUA são uma nação sem um líder. (...) Ela deu o Afeganistão para o Talibã. Ela é a pior vice-presidente da história dos EUA."
Em entrevista ao Correio, Tabitha Bonilla — especialista em comportamento político e comunicação e professora da Northwestern University (em Illinois) — explicou que Kamala fez questão de ser inclusiva na retórica, ao prometer, por várias vezes, ser presidente para todos os norte-americanos. "Ela também afirmou que elevará a classe média e criar uma economia de oportunidades. Tentou apresentar um futuro otimista. Trump, no entanto, foi negativo, atribuiu os problemas ao governo Biden e aos imigrantes 'que eles deixam entrar'. O republicano levantou a falsa história de que os imigrantes estão comendo cães", comentou.
Professora de retórica, política e cultura da Universidade de Wisconsin-Madison, Allison M. Prasch considerou interessante que Kamala tenha se apegado a respostas polidas, bem articuladas e alimentadas com fatos. "Ela procurou falar aos eleitores indecisos, ao lembrar às pessoas que existe uma 'sala para elas'. Trump, por sua vez, conversou mais com a sua base, mas o fez de maneira que possa ser desanimadora para o eleitor 'relutante' a votar nele", disse à reportagem.
Por sua vez, David Karol — professor do Departamento de Governo e Política da Universidade de Maryland — destacou o fato de os moderadores do debate terem verificado os fatos e corrigido declarações imprecisas de Trump. "Isso não ocorreu no debate com Biden", lembrou, por e-mail. "Kamala mostrou-se imperturbável. Trump, muito enérgico, mas irritado. Não creio que Trump conquistará o apoio de alguém que ainda não o avalize."
James Naylor Green, historiador político da Universidade Brown (em Rhode Island), falou ao Correio de Berlim, enquanto o debate transcorria. "Ficou evidente que Trump não conseguiu ter argumentos fortes e utilizou medo, racismo e xenofobia para incentivar a base republicana. Kamala tentou ser positiva sobre o futuro do país. Isso a ajudará muito nas eleições", analisou.
EU ACHO...
"Kamala forneceu respostas claras e convincentes, que falam diretamente aos eleitores sobre questões de mesa de cozinha. Isso pode ser atraente para os eleitores indecisos, que disseram querer entender quem ela é e o que pretende fazer. Trump devolveu com frases que sabe serem básicas, mas não sei se conseguirá alcançar os eleitores indecisos. A democrata ofereceu exemplos claros e convincentes em quase todas as respostas para conectar-se aos eleitores. Trump fez uma série de comentários sexistas. Eles serão desanimadores para um bom número de eleitores."
Allison M. Prasch, professora de retórica, política e cultura da Universidade de Wisconsin-Madison
"Não creio que o debate comoverá a maioria dos eleitores porque a maioria das pessoas sabe o que sente em relação a Kamala e a Trump. É provável que haja um pequeno grupo de pessoas que ainda decidirá se vale a pena votar nestas eleições e é possível que a justaposição dos dois conjuntos de valores mude a forma como as pessoas pensam. Os debates tendem a ser mais importantes quando algo inesperado acontece — alguém tem um desempenho incrivelmente ruim, como em junho. Mas, ambos os candidatos estão tendo o desempenho esperado."
Tabitha Bonilla, especialista em comportamento político e comunicação e professora da Northwestern University (em Illinois)