O libanês Raef Nasser, 46 anos, e a filha brasileira Mirna Raef Nasser, 16, buscavam roupas em casa para fugir de Kelya, no Vale do Beqaa (leste). Raef tinha acabado de tomar conhecimento sobre as mortes do primo, Kamal Hussein Abdallah, 64, e do filho, Ali Kamal Abdallah, 15, em um bombardeio na fábrica da família, na manhã de segunda-feira (23/9). Por isso, decidiu tirar os quatro filhos de casa e levá-los para a residência do sogro. "À tarde, Raef viu que as coisas ficariam mais complicadas, pois não havia energia, e decidiu pegar as roupas. Nosso irmão, que mora em Beirute, telefonou para ele e pediu-lhes que se abrigassem na capital. Foi coisa de 15 minutos. Assim que chegaram à casa deles, às 18h (11h em Brasília), aconteceu o ataque. A mulher dele e os filhos viram tudo. Estavam na frente da residência do sogro dele e presenciaram o bombardeio", contou ao Correio Ali Abu Khaled, 48, irmão de Raef e tio de Mirna.
Às 12h15 (18h15 no Líbano) de segunda-feira, pouco mais de uma hora depois da tragédia, Khaled recebeu uma ligação de parentes, contando-lhe que os dois tinham sido mortos em um ataque israelense. Os corpos foram encontrados na manhã de terça-feira (24), segundo o comerciante, que vive em Balneário Camboriú (SC). "Mirna nasceu aqui na cidade e foi levada para o Líbano quando tinha apenas 14 meses de vida. Raef criava carneiros e cabritos no Vale do Beqaa. Ele começou a viver com aquilo, ficou por lá e não veio mais", disse.
Os corpos de pai e filha estão em um hospital de Machgharah. "Nós queremos ir ao enterro, mas não estamos encontrando voo. Esperamos ver se os bombardeios param", relatou. Ele disse que as forças israelenses lançaram uma bomba que, depois de explodir, detona vários fragmentos. "Ela fica explodindo durante 10 minutos e, se a pessoa fica ferida, ela morre. É um armamento novo enviado pelos Estados Unidos para Israel", denunciou Khaled. O Ministério das Relações Exteriores brasileiro acionou a Embaixada do Brasil, em Beirute, para apurar o caso. "Nossa representação está em contato com autoridades locais e hospitais", declarou uma fonte do governo.
Somente nesta quinta-feira (26), os ataques de Israel mataram 92 pessoas — 40 no sul do Líbano, 25 na região de Baalbek-Hermel (leste), 23 no Vale do Bekaa (leste) e quatro na área do Monte Líbano (centro-oeste). A aviação israelense voltou a cometer um assassinato seletivo. Filha de libaneses, a brasileira Sara Ali Melhem, 30 anos, escutou um barulho pouco comum sobre Beirute, na tarde de ontem. Da cidade de Bmikin, em uma área montanhosa de onde se avista toda a capital libanesa, a farmacêutica paranaense contou ao Correio que viu o momento em que o caça israelense lançou a bomba. "Vimos a fumaça subindo depois da explosão, que ocorreu por volta das 15h10 (9h10 em Brasília). Pela manhã, os aviões romperam a barreira de som três vezes e fizeram um grande estrondo", relatou.
O bombardeio matou três pessoas, entre elas, Muhammad Hussein Srour, chefe do Comando Aéreo do Hezbollah e responsável pelos drones lançados pela milícia xiita libanesa. "Srour dirigiu vários ataques terroristas pelo ar, inclusive de drones e mísseis direcionados ao povo de Israel. Nos últimos anos, comandou a fabricação de veículos aéreos não tripulados no sul do Líbano e criou sites de coleta de inteligência no país", afirmaram as Forças de Defesa de Israel (IDF), por meio de um comunicado.
Ainda segundo a nota, Srour se alistou ao Hezbollah na década de 1980 e desempenhou vários papéis nas fileiras da milícia, como o de comandante da unidade de mísseis terra-ar e da Unidade "Aziz" das forças de elite Radwan. "As IDF continuarão a operar para minar as capacidades do Hezbollah e para desmantelar o comando da organização."
Sem trégua
O premiê de Israel, Benjamin Netantanyahu, descartou um cessar-fogo de 21 dias, proposta feita por Estados Unidos, União Europeia e alguns países áranes. "Estamos continuando a golpear o Hezbollah com todo o nosso poder. Não pararemos até que alcancemos todos os nossos objetivos; em primeiro lugar, o retorno dos moradores do norte de Israel às suas casas", declarou, ao chegar em Nova York para a Assembleia Geral da ONU.
À noite, o Exército israelense informou ter interceptado um míssil disparado do Iêmen. "O míssil, que foi lançado do Iêmen, foi abatido com sucesso pelo sistema de defesa aérea 'Seta'. Foram ouvidas sirenes e explosões após a interceptação e a queda de escombros", afirmaram as Forças de Defesa de Israel.
Eytan Gilboa, professor de relações internacionais da Universidade de Bar-Ilan (em Ramat Gan), disse ao Correio que Israel emprega força limitada contra o Hezbollah. "Israel ataca, pelo ar, depósitos de mísseis e instalações militares, e mata comandantes de alto nível da organização terrorista. Uma operação terrestre para expulsar as forças do Hezbollah do sul do Líbano está sendo considerada", explicou. De acordo com ele, o principal propósito é deter os ataques contra cidades e vilarejos israelenses, que começaram há um ano, e permitir que 80 mil israelenses forçados a abandonar suas casas retornem em segurança.
Por sua vez, Habib C. Malik — historiador aposentado da Universidade Libanesa Americana (em Beirute) — disse à reportagem acreditar que, dado o sucesso das IDF em degradar o Hezbollah, talvez não seja necessária uma invasão terrestre, ou talvez apenas uma operação limitada e direcionada. "O Hezbollah ainda possui muitos mísseis e homens bem treinados, além de recurso militares. Eles ainda não estão destruídos, apesar de severamente danificados. Se houver um confronto armado, acho que travarão uma luta feroz", advertiu. Ele avaliou que o Hezbollah evoluiu muito desde o conflito de 2006. "Israel precisa ser muito cauteloso sobre na execução de uma incursão terrestre. O Hezbollah conhece o terreno, está bem familiarizado com as colinas e vales e ainda possui muitos truques na manga. Serão necessárias mais degradação e surpresas para tornar qualquer passo seguinte mais eficaz e bem-sucedido", observou Malik.
DEPOIMENTO
"Vidas inocentes são levadas"
"Uma coisa que está acontecendo aqui, no Líbano, é que, em meio ao despero, as pessoas vão ao mercado para abastecer suas casas com os produtos essenciais. No entanto, o valor das coisas triplicou. Os moradores que vieram do sul estão abrigados em escolas. Não existe mais colchão, nem travesseiro. Até mesmo quem pretende doar esses objetos não consegue encontrá-los no comércio. Muita gente está abrigada em uma mesma casa. Quem tenta alugar um imóvel mais longe, o valor quintuplicou. O aluguel que custava US$ 200, hoje está em torno de US$ 1 mil.
Estamos em uma casa de dois quartos e um banheiro. Somos eu, minha filha, mais 11 crianças e sete adultos dividindo o mesmo imóvel. Todos vieram do sul do Líbano. Ouvir a história de cada um é de cortar o coração. Há uma família aqui com sete filhos e que saíram só com a roupa do corpo. É desperador. Todo mundo tem medo aqui e se preocupa com familiares. Cada um foi para um canto. Em Beirute, não sobrou quase ninguém nos bairros xiitas. Vidas de inocentes estão sendo levadas."
Sara Ali Melhem, 30 anos, farmacêutica nascida em Foz do Iguaçu (PR). Morava em Kabrikha (sul do Líbano) e hoje está refugiada em Bmikin (perto de Beirute). Mãe de Iayla, 3 anos
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