Pelo segundo dia consecutivo, Israel manteve os bombardeios no sul e no leste do Líbano, no Vale do Bekaa, forçando a fuga de meio milhão de civis em direção ao norte e a Beirute. Do outro lado, a milícia xiita libanesa Hezbollah lançou, em um único dia, cerca de 300 foguetes contra o norte do território israelense. Até o fechamento desta edição, na noite de terça-feira (24/9), o número de libaneses mortos nos ataques aéreos chegava a 569, incluindo 50 crianças e 94 mulheres. Pelo menos 1.835 pessoas ficaram feridas.
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As forças israelenses também tornaram a realizar um assassinato seletivo na capital libanesa. Mísseis atingiram um prédio no bairro de Dahiyeh, subúrbio da região sul, e eliminaram Dahieh Ibrahim Mohamed Kobeisi, chefe da unidade de mísseis e foguetes do Hezbollah. Na sexta-feira passada (20/9), outro bombardeio em Beirute teria matado Ibrahim Aqil, líder da Radwan, a força de elite do grupo pró-Irã.
Em pronunciamento durante a abertura da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York, o secretário-geral, António Guterres, alertou que "o Líbano está à beira do abismo". O português também citou a invasão israelense à Faixa de Gaza, que completará um ano em 7 de outubro. "Gaza é um pesadelo permanente, que ameaça arrastar toda a região para o caos, a começar pelo Líbano", disse Guterres, ao pedir um cessar-fogo permanente em todo o Oriente Médio.
Yoav Gallant, ministro da Defesa de Israel, dirigiu-se a Guterres e admitiu que o pesadelo citado pelo chefe da ONU "é uma realidade". "A realidade é que o Hezbollah fez o Líbano refém e a ONU não reconhece as ações" do Hezbollah, "nem cumpre com sua obrigação" de exigir a aplicação da resolução 1701" do Conselho de Segurança, que pôs fim à guerra entre Israel e o movimento islamista libanês em 2006, acrescentou. O Conselho de Segurança se reunirá nesta quarta-feira, em caráter de emergência, para debater a escalada no Líbano e no norte de Israel. O encontro foi solicitado pela missão da Eslovênia na ONU, que atualmente ocupa a presidência rotativa do órgão.
Também no marco da Assembleia Geral, o presidente iraniano, Masoud Pezeshkian, usou a tribuna para avisar que os ataques israelenses ao Líbano "não ficarão sem resposta". "É imperativo que a comunidade internacional pare imediatamente a violência e estabeleça um cessar-fogo permanente em Gaza e ponha fim à barbárie desesperada de Israel no Líbano antes que ela envolva a região e o mundo", advertiu.
Para Nicholas Blanford, especialista em Hezbollah pelo instituto de pesquisas Atlantic Council baseado em Beirute, o conflito entre Israel e a milícia xiita ainda não adquiriu contornos de uma "guerra total". "Ambos os lados estão se atentando a alvos militares e ainda não expandiram os ataques à infraestrutura. O Hezbollah ainda não utilizou seus sistemas de armas mais avançados, como mísseis guiados de precisão, capazes de destruir prédios em Tel Aviv, por exemplo", explicou ao Correio, por e-mail. O estudioso acredita que isso somente não ocorreu até agora porque o Irã não deseja que o Hezbollah se envolva em um grande confronto com Israel. "Teerã aposta na reconstrução da milícia, a fim de que ela alcance a mesma força de antes, para continuar servindo como uma fonte de dissuasão."
Ainda segundo Blanford, é difícil mensurar os danos causados ao Hezbollah pelas explosões de pagers e walkie-talkies e pelos bombardeios israelenses. "O governo de Netanyahu tem falado sobre a quantidade de danos provocados na milícia, mas o Hezbollah ainda opera no sul do Líbano e dispara foguetes contra Israel todos os dias", lembrou. Professor de história aposentado da Universidade Libanesa Americana (em Beirute), Habib C. Malik não tem dúvidas: "Esta já é uma guerra completa — de quais mais evidências precisamos para chamar o conflito disso?".
Vulnerabilidades
De acordo com Malik, durante anos, Israel coletou dados precisos de inteligência sobre o Hezbollah e, ao contrário do que ocorre em relação ao Hamas, conhece muito de suas operações e vulnerabilidades. "Parece claro que Israel não está com disposição para se contentar com soluções malfeitas baseadas em garantias verbais. Quer garantias de que seus cerca de 80 mil cidadãos deslocados possam retornar em segurança para suas casas, no norte, e permaneçam ali, sem nenhuma ameaça à sua segurança", observou. Ele alertou que isso somente pode ser alcançado por meio de mudanças decisivas e de alterações na equação da dissuasão. "O Hezbollah está por conta própria, pois o Irã cuida, primeiro, de seus interesses."
Natural de Salvador, a mestranda Fatima Cheaitou, 26 anos, acordou ao som de bombardeios intensos, na segunda-feira, em Sour, perto da cidade de Tiro (sul do Líbano). "Eles deram 15 minutos para que todos saíssemos e começaram a atacar todas as cidades. Não deu tempo de fazer as malas. Estávamos guardando as coisas para sair de casa, quando as explosões ocorreram. Foi muito desesperador ter que sair de casa às pressas. No caminho, tive medo de bombas caírem sobre o nosso carro", contou ao Correio, por telefone. Durante a fuga, um míssil atingiu um alvo a apenas dois minutos de onde ela estava. "A casa de nossos vizinhos foi destruída depois que partimos", acrescentou a brasileira, que chegou a Beirute nesta terça-feira pela manhã.
No trajeto entre Sour e a capital, explosões e o barulho intermitente de sirenes de ambulâncias. Durante parte da viagem, foi impossível se comunicar com a família — os bombardeios cortaram as linhas de transmissão. Fatima e a família aguardam um plano de contingência do Ministério das Relações Exteriores brasileiro para deixarem o Líbano. "Não existem voos. Está difícil sair daqui", disse a filha de libaneses, que cursa mestrado em Paris e pretende voltar a viver no Líbano, onde passa uma temporada.
Do outro lado da fronteira, na cidade de Haifa (norte de Israel), o advogado paulista Carlos Eduardo Bekerman, 46, teve que se esconder em um bunker. "A situação aqui está meio tensa. Quando as sirenes tocaram, fui para o bunker e, de lá, ouvi as explosões do Domo de Ferro, que interceptou os foguetes do Hezbollah. O estrondo do abatimento foi um pouco forte", relatou o brasileiro, que vive no país desde fevereiro de 2020 e trabalha em uma fábrica em Qiryat Atta, a 14km de Haifa. "Hoje, houve quatro alertas de bombardeios em Qiryat Atta. Você tem 90 segundos para correr até o bunker e ficar lá por pelo menos cinco ou 10 minutos.
Confiança
A 40km de Haifa, em Hadera, a paulistana Jessica Cohen, 33, mãe de quatro filhos pequenos, convive com as ameaças de foguetes há 16 anos. "Este não é o primeiro conflito que passo em Israel. As sirenes antiaéreas não me colocam mais em situação de pânico ou pavor. Nós temos uma confiança muito grande nas Forças Armadas", disse à reportagem. "Na noite de segunda-feira, tivemos outra escalada. Foguetes chegaram a locais que não atingiram antes, como Karmel e a Cisjordânia. Hadera está bem no limite entre o norte e o centro de Israel. Então, por enquanto, aqui está mais silencioso. Por enquanto", relatou.
Jessica acredita que o conflito atual é uma guerra de maiores proporções. "É preciso entender que não estamos lidando com a cabeça da serpente, mas com pequenos soldadinhos. O Hamas e o Hezbollah são financiados pelo regime islâmico iraniano. Enquanto isso ocorrer, Israel continuará a luta em várias frentes", opinou. "Milícias no Iraque também têm lançado mísseis contra nós. Essa guerra está sendo contida pelos ataques precisos de Israel, que tenta minar o inimigo, para que não use armas contra os civis. É uma guerra muito tensa, e não vejo um fim próximo. A não ser que Israel mate o xeque Hassan Nasrallah e Yahya Sinwar, líderes do Hezbollah e do Hamas."
Aos 71 anos, o radiologista libanês Omar Khaled, morador de Tiro, preferiu ficar na cidade, de cerca de 100 mil habitantes, para ajudar no tratamento dos feridos. "Eu jamais saí em guerras anteriores, vi quase todas", admitiu ao Correio. Ele contou que recebeu mais de 60 feridos, dos quais cinco em estado grave. "São pessoas com traumatismo cerebral, torácico e abdominal. A maioria apresenta fraturas. Também tivemos seis mortos em nosso Hospital Hiram", disse.
VOZES DO FRONT
"Nossa viagem até Beirute foi muito cansativa. Geralmente, levamos apenas duas horas. Gastamos mais de dez horas. As estradas estão fechadas, e áreas próximas sofrem bombardeios. Foi muito angustiante. Você escutava o som das bombas, vias as fumaças e tinha que prosseguir viagem o mais rápido possível."
Fatima Cheaitou, 26 anos, mestranda, paranaense, visitava a cidade de Sour (sul do Líbano)
"A rotina aqui em Haifa é diferente. A cidade está bem vazia e o pessoal prefere ficar em casa. Parece que o Hezbollah vai aumentar os ataques aqui. A maior parte da minha família vive no Brasil. Vim para cá com um amigo e eu continuei. Os problemas ocorriam mais em Tel Aviv e nas cidades próximas. Agora, os ataques estão chegando até nós."
Carlos Eduardo Bekerman, 46 anos, advogado paulista, morador de Haifa (norte de Israel)
"Moro em Israel há 16 anos. Quando toca a sirene antiaérea, eu e meus quatro filhos vamos para um canto seguro da casa, onde as paredes são mais fortes. Não temos tempo para chegar a um bunker público. O que se faz é ter água mineral em casa e dormir com o celular ligado."
Jessica Cohen, 33, criadora de conteúdo, moradora de Hadera (norte de Israel)
"Os bombardeios ocorrem na periferia de minha cidade, Tiro, e nas aldeias da região. Muitas pessoas fugiram daqui, talvez 20% da população. Eu enviei minha família para Beirute. Sou médico e, por isso, decidi ficar no hospital. Minha especialidade, a radiologia, é importante. Cada ferido passa por mim, primeiro."
Omar Khaled, 71 anos, radiologista, morador de Tiro (sul do Líbano)
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