Líbano

O que se sabe sobre as explosões de pagers de militantes do Hezbollah

Pelo menos nove pessoas morreram, 2.750 ficaram feridas e 500 membros do grupo xiita pró-Irã perderam a visão. Dispositivos de mensagens foram detonados quase ao mesmo tempo. Milícia culpa Israel e promete "retaliação justa". ONU teme escalada do conflito

Câmera de segurança mostra explosão atingindo militante do Hezbollah (de boné), enquanto fazia compras em mercado de Beriute: aparelho estava guardado na bolsa -  (crédito: Threads/Reprodução)
Câmera de segurança mostra explosão atingindo militante do Hezbollah (de boné), enquanto fazia compras em mercado de Beriute: aparelho estava guardado na bolsa - (crédito: Threads/Reprodução)

O caos se instalou em redutos do Hezbollah, em Beirute e em outras regiões do Líbano, por volta das 15h30 desta terça-feira (9h30 em Brasília). Pagers — dispositivos para envio de mensagens — utilizados pela milícia xiita libanesa explodiram quase que de forma simultânea. Até o fechamento desta edição, as autoridades do país confirmavam cerca de nove mortos e 2.750 feridos, dos quais 400 estão em situação crítica. Pelo menos 500 militantes do Hezbollah perderam a visão.

O movimento apoiado pelo Irã acusou diretamente Israel pelo suposto ataque em massa sem precedentes e prometeu retaliação. "Nós consideramos o inimigo israelense completamente responsável por essa agressão criminosa. Israel certamente receberá sua punição justa por essa agressão pecaminosa", afirmou o Hezbollah, por meio de um comunicado, segundo o qual o líder máximo do grupo, xeque Hassan Nasrallah, não se feriu. 

Entre os mortos, está o filho de um deputado do Hezbollah, Ali Ammar. A agência de notícias France-Presse divulgou que uma menina de 10 anos morreu quando o pager do pai explodiu, no leste do Líbano. O embaixador do Irã em Beirute, Mojtaba Amani, sofreu lesões leves no incidente, que também feriu 14 pessoas na Síria. A maioria das vítimas teve ferimentos no rosto, mas mãos e no abdome. Há casos de pessoas que perderam todos os dedos.

A Organização das Nações Unidas advertiu para a gravidade do incidente. "Os acontecimentos de hoje (ontem) marcam uma escalada extremamente preocupante em um contexto já (...) volátil", alertou a coordenadora especial da ONU para o Líbano, Jeanine Hennis-Plasschaert. Ela instou "todas as partes envolvidas a se absterem de qualquer ação (...) que possa desencadear uma conflagração mais ampla".

Explosivos plásticos

A emissora Sky News Arabia divulgou que o Mossad, serviço secreto israelense, interceptou o carregamento de pagers do Hezbollah e inseriu tetranitrato de pentaeritritol — composto químico altamente explosivo — nas baterias, o quais foram detonados pelo aumento da temperatura. A tevê Al-Jazeera também citou fontes libanses que alegaram que os aparelhos foram "pré-equipados com explosivos". O ministro das Relações Exteriores do Irã, Abbas Araghchi, classificou as explosões como um "ato terrorista", culpou Israel e ofereceu ajuda ao chanceler libanês, Abdallah Bou Habib. O governo do premiê de Israel, Benjamin Netanyahu, não comentou o assunto. 

Diante dos hospitais de Beirute, o cenário era caótico. Médicos atenderam feridos em estacionamentos e moradores correram para doar sangue. "Eu nunca tinha visto algo assim na minha vida", contou à AFP Musa, que mora no subúrbio ao sul de Beirute. "Minha esposa e eu estávamos indo ao médico e de repente algo explodiu (...). Havia pessoas caídas no chão, ninguém sabia o que estava acontecendo", relatou. Nas redes sociais, circularam imagens das explosões e de pessoas feridas, inclusive sem os dedos.

"Quem mais poderia ter feito isso? É claro que foi a inteligência de Israel", afirmou ao Correio, por telefone, o jornalista israelense Yossi Melman, coautor de Spies against Armageddon (Espiões contra o Armageddon) e especialista em assuntos de inteligência. "Pode ter sido o Mossad, a Unidade 8200 da inteligência ou uma unidade de tecnologia. O Mossad opera fora dos limites de Israel. Acredito que essa operação seja obra de uma espécie de joint venture da inteligência israelense", disse. 

Para Melman, a detonação de pagers à distância é uma ação de baixa complexidade. "Israel sempre tem trabalhado como o Hezbollah, bloqueando, conspirando ou recrutando espiões. Para Israel, o Líbano é terra de ninguém", observou. "A operação de hoje (ontem) foi muito bem-sucedida e incomum, talvez a primeira em todo o mundo." Ele não descarta que a inteligência israelense tenha enviado softwares maliciosos (malware) para os pagers, ativados por meio de uma mensagem enviada a todos os aparelhos. O "comando" teria feito com que as baterias superaquecessem e explodissem.

"Inteligente"

Cientista político da Universidade Bar Ilan, em Ramat Gan (subúrbio de tel Aviv), Gerald Steinberg admitiu ao Correio que as explosões quase simultâneas de pagers foram uma "operaçao muito inteligente, em termos de planejamento e execução", somando-se ao assassinato de Ismail Haniyeh, líder do grupo extremista Hamas, em uma casa de hóspedes de Teerã, em 31 de julho passado. "É uma grande violação de segurança para o Hezbollah. A partir de agora, eles devem suspeitar de todos e de todas as ações, criando estresse e caos internos, e enfraquecendo-os, pelo menos no curto prazo", avaliou, por e-mail. 

Segundo Steinberg, as tensões entre Israel e Hezbollah atingiram o nível máximo há quase um ano. "Em 7 de outubro, imediatamente depois da carnificina perpetrada pelo Hamas no sul de Israel, o Hezbollah iniciou os ataques com foguetes contra comunidades do norte. Cerca de 60 mil civis israelenses do norte foram imediatamente retirados de suas casas e se transformaram em refugiados", explicou. "Netanyahu sabe que o seu governo deve destruir as forças do Hezbollah próximo à fronteira."

Para Eyal Zisser, vice-reitor da Universidade de Tel Aviv, as explosões dos pagers são uma "fonte de vergonha" para o Hezbollah e surtirão impacto sobre as capacidades operacionais da milícia nos próximos dias. "O Hezbollah vai retaliar, mas não necessariamente de uma forma que leve a uma escalada do conflito, porque não pode explicar aos libanses que os levará a uma guerra total por causa de pagers e por suspeitar de Israel", afirmou à reportagem.

EU ACHO...

Yossi Melman, especialista em inteligência e jornalista israelense
Yossi Melman, coautor de Spies against Armageddon (Espiões contra o Armageddon) e analista de inteligência (foto: Arquivo pessoal)

"Não foi a primeira a vez que a inteligência de Israel penetrou a rede de comunicações do Hezbollah. Depois da guerra de 2006, o Hezbollah percebeu que sua telefonia era interceptada, porque usava o sistema libanês. Após recomendações do Irã, eles criaram uma rede própria de comunicações. Dessa vez, eles decidiram ir adiante com um sistema auditado, difícil de detectar: os pagers. Quem hoje em dia usa pagers? Eles acreditavam que fosse algo mais seguro."

Yossi Melman, coautor de Spies against Armageddon (Espiões contra o Armageddon) e analista de inteligência

Gerald Steinberg
Gerald Steinberg, cientista político da Universidade Bar Ilan, em Ramat Gan (subúrbio de tel Aviv) (foto: Noam Moskowitz/geraldsteinberg site)

"Esta é uma mensagem muito poderosa para o Hezbollah e o regime iraniano. Suas forças estão penetradas por Israel e ambos estão vulneráveis. Ao mesmo tempo, os ferimentos e as mortes provocados pela explosão dos pagers não são um golpe estratégico, nem incapacitam as dezenas de milhares de mísseis apontadas para Israel. A guerra, provavelmente, continuará e aumentará."

Gerald Steinberg, cientista político da Universidade Bar Ilan, em Ramat Gan (subúrbio de tel Aviv)

Eyal Zisser, vice-reitor da Universidade de Tel Aviv e especialista em Oriente Médio
Eyal Zisser, vice-reitor da Universidade de Tel Aviv e especialista em Oriente Médio (foto: Arquivo pessoal)

"É uma grave e enorme violação de segurança que mostra que o Hezbollah, antes de tudo, não é uma organização tão sofisticada e avançada, sob o ponto de vista militar. Será difícil para o grupo lançar uma guerra por causa dos pagers. Não foi um míssil israelense lançado de um caça ou bombardeiro. Mas, é obvio que a operação teve as digitais de Israel."

Eyal Zisser, vice-reitor da Universidade de Tel Aviv e especialista em Oriente Médio

PARA SABER MAIS

Precursor do celular

Bastante populares nas décadas de 1980 e 1990, os pagers seguem sendo usados para a comunicação em locais como os hospitais devido à sua confiabilidade, mesmo com a proliferação de celulares que quase os levou à extinção. Esses aparelhos, no formato de pequenas caixas, permitem receber mensagens, alertas sonoros e números de telefone utilizando sua própria radiofrequência, sem passar pelas redes de telefonia móvel, que podem ser interrompidas, ter problemas de conexão ou serem interceptadas. 

Pager
Pager (foto: Wikipedia)

"Fique tranquilo que o sinal dos pagers penetra o aço como o metal, enquanto que o de um celular pode ser bloqueado", diz o site da empresa americana Spok, especializada neste produto. "Os sistemas de pagers representam um meio de comunicação mais confiável, por exemplo, em caso de avaria de uma rede wi-fi ou telefônica", assegura outro fabricante, a Discover Systems. 

O termo "pager" foi registrado oficialmente em 1959 pela Motorola, líder do mercado durante décadas. Segundo a Spok, 61 milhões de pagers estavam em circulação em todo o mundo em 1994 antes da popularização dos celulares. O primeiro pager da Motorola, chamado Pageboy 1, criado em 1964, permitia enviar um alerta sonoro. A partir dos anos 1980, era possível enviar mensagens de texto.

  • Yossi Melman, especialista em inteligência e jornalista israelense
    Yossi Melman, coautor de Spies against Armageddon (Espiões contra o Armageddon) e analista de inteligência Foto: Arquivo pessoal
  • Gerald Steinberg
    Gerald Steinberg, cientista político da Universidade Bar Ilan, em Ramat Gan (subúrbio de tel Aviv) Foto: Noam Moskowitz/geraldsteinberg site
  • Ambulâncias são cercadas por curiosos e familiares de vítimas, diante do Centro Médico da Universidade Americana de Beirute
    Ambulâncias são cercadas por curiosos e familiares de vítimas, diante do Centro Médico da Universidade Americana de Beirute Foto: Anwar Amro/AFP
  • Eyal Zisser, vice-reitor da Universidade de Tel Aviv e especialista em Oriente Médio
    Eyal Zisser, vice-reitor da Universidade de Tel Aviv e especialista em Oriente Médio Foto: Arquivo pessoal
  • Câmera de segurança mostra explosão atingindo militante do Hezbollah (de boné), enquanto fazia compras em mercado de Beirute: atingido pelos estilhaços de aparelho guardado na bolsa, homem caiu no chão
    Câmera de segurança mostra explosão atingindo militante do Hezbollah (de boné), enquanto fazia compras em mercado de Beirute: atingido pelos estilhaços de aparelho guardado na bolsa, homem caiu no chão Foto: Fotos: Threads/Reprodução
  • Pager
    Pager Foto: Wikipedia
  • Câmera de segurança mostra explosão atingindo militante do Hezbollah (de boné), enquanto fazia compras em mercado de Beriute: aparelho estava guardado na bolsa
    Câmera de segurança mostra explosão atingindo militante do Hezbollah (de boné), enquanto fazia compras em mercado de Beriute: aparelho estava guardado na bolsa Foto: Threads/Reprodução
  • Câmera de segurança mostra explosão atingindo militante do Hezbollah (de boné), enquanto fazia compras em mercado de Beriute: aparelho estava guardado na bolsa
    Câmera de segurança mostra explosão atingindo militante do Hezbollah (de boné), enquanto fazia compras em mercado de Beriute: aparelho estava guardado na bolsa Foto: Threads/Reprodução
Gostou da matéria? Escolha como acompanhar as principais notícias do Correio:
Ícone do whatsapp
Ícone do telegram

Dê a sua opinião! O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores pelo e-mail sredat.df@dabr.com.br

postado em 18/09/2024 06:00
x