Estados Unidos

Estados Unidos: Em Springfield, haitianos vivem entre medo e insegurança

Imigrantes baseados em Springfield, no estado de Ohio, relatam ao Correio o clima de indignação e de ódio provocado pelos rumores espalhados por Donald Trump de que os estrangeiros devoram animais domésticos, como cães e gatos

Eleitor de Trump exibe cartaz com imagem gerada por inteligência artificial, antes de comício em Tucson (Arizona):
Eleitor de Trump exibe cartaz com imagem gerada por inteligência artificial, antes de comício em Tucson (Arizona): "Faça seus pets seguros novamente" - (crédito: Rebecca Noble/AFP)

Vilbrun Dorsainvil, 34 anos, não esconde o medo. As notícias falsas espalhadas pelo candidato republicano Donald Trump de que haitianos, assim como ele, estariam devorando animais de estimação (cães e gatos) dos norte-americanos aumentaram a sensação de insegurança entre os imigrantes em Springfield, no estado de Ohio. Com 80 mil habitantes, a cidade — situada a 73km da capital estadual, Columbus — abriga cerca de 20 mil haitianos. "Por aqui, as pessoas podem comprar armas como se fossem biscoitos. E se ocorrer um tiroteio em massa contra os imigrantes haitianos? Além disso, como fica a nossa saúde mental?", questionou ao Correio o médico, que trabalha como auxiliar de enfermagem no Centro Médico Regional de Springfield e aguarda a licença para atuar como enfermeiro, prevista para maio de 2025. 

Vilbrun trocou Porto Príncipe pelos Estados Unidos em abril de 2021. "As declarações de Trump estão abaixo de um ex-presidente do mundo livre. Ele levou uma fake news para um debate presidencial. Foi algo ridículo", afirmou. "Mas, eu entendo, porque esse cara é racista e tenta causar danos aos imigrantes, especialmente aos haitianos, da forma que ele puder." Ele reconhece que a comunidade haitiana enfrenta desafios reais em Springfield. "Precisamos de ajuda. Essas notícias infundadas são criadas para fins de distração." Segundo Vilbrun, Trump decidiu propagar o rumor sobre os animais de estimação para deixar os haitianos de Springfield em uma situação ainda mais vulnerável. 

A rotina de Springfield mudou nos últimos dias. A pacata cidade de maioria branca, no nordeste dos EUA, foi sacudida por ameaças de bomba contra escolas em áreas habitadas pelos haitianos e contra a prefeitura. Um tradicional restaurante de comida creole precisou fechar as portas mais cedo, ante a insegurança. Neste sábado (14/9), dois hospitais, alvos de avisos sobre explosivos, foram isolados.

"Em Springfield, as pessoas (migrantes) que chegam comem os cachorros, comem os gatos, comem os animais de estimação", declarou Trump, durante o debate de 10 de setembro, levando o mediador a corrigi-lo imediatamente. Na sexta-feira (13), o presidente democrata Joe Biden pediu a Trump que pare de alimentar as tensões. "Isso tem que parar, o que ele está fazendo, tem que parar. Não há lugar nos Estados Unidos para o que ele está fazendo", avisou. No mesmo dia, Trump avisou que fará uma deportação em massa de migrantes haitianos e venezuelanos, em Springfield e em Auroca (Colorado), caso eleito em 5 de novembro. Também no sábado, voltou a falar que Springfield foi "tomada" por imigrantes ilegais.

Racistas

Outro haitiano em Springfield que não quis se identificar desqualificou as acusações do magnata republicano. "Acho que as declarações de Trump são desumanas e racistas. Uma expressão de ódio contra os haitianos. São absolutamente falsas", disse à reportagem, por meio do WhatsApp. "Agora, muitos haitianos querem abandonar a cidade, por causa do ódio e do racismo. Eles não se sentem mais seguros."

Por sua vez, Vilès Dorsainvil, 38, diretor executivo do Centro de Apoio e Ajuda à Comunidade Haitiana de Springfield, admitiu ao Correio que ficou "chocado" e "triste", ao mesmo tempo, com as alegações de Trump. "É bom que tais declarações tenham sido rejeitadas pelas autoridades municipais, especialmente pelo prefeito, e pelo Departamento de Polícia de Springfield", reforçou, por meio do WhatsApp.

Irmão de Vilbrun, Vilès defendeu que as pessoas em posição de poder nos EUA deveriam controlar a retórica. "O que dizem afeta o país inteiro, a comunidade e a saúde mental das pessoas, especialmente de um grupo vulnerável. Nós acreditamos na humanidade. Cremos que líderes possam fazer melhor." Ele adverte que os haitianos estabelecidos em Springfield ou em outras cidades estão sujeitos a "todo o tipo de perigo imaginável", após a fala de Trump. "A polícia tem trabalhado para evitar uma escalada e para responder em tempo hábil, em caso de alguma ocorrência com a nossa comunidade."

Harold Herald, 40, voluntário do centro comandado por Vilès, fez questão de frisar ao Correio: "Não estamos comendo gatos nem cachorros, nenhum animal doméstico". "Essa afirmação foi um choque para nós. O fato de termos escutado isso de um ex-presidente causou-nos estresse e nos incentivou a defender a nossa condição de seres humanos", explicou, por telefone. Ele citou prejuízos mentais aos haitianos. "Muitos de nós queremos abandonar Springfield. Eu e outras pessoas temos recebido ameaças, seja por meio de mensagens no celular ou verbalmente. São avisos, como: 'Você tem que deixar a cidade. Você não é bem-vindo aqui."

Herald acredita na força das instituições norte-americanas para a garantia da proteção dos haitianos. "Precisamos de pessoas que nos ajudem a nos defender da desinformação. Sabemos que os EUA são uma nação que respeita dos direitos humanos, as liberdades civis. O futuro parece ameaçador, mas apostamos na democracia", acrescentou o haitiano, que nasceu em Porto Príncipe e mora em Springfield desde 2022.

EU ACHO...

Vilbrun Dorsainvil, médico haitiano em Springfield (Ohio)
Vilbrun Dorsainvil, médico haitiano em Springfield (Ohio) (foto: Arquivo pessoal )

"Donald Trump sempre nos vê como imigrantes ilegais, mesmo que estejamos aqui legalmente. O cara tem tanto ódio que não pode ver o quanto contribuimos com a sociedade. Na condição de enfermeiro, posso dizer que precisamos de mais pessoas (imigrantes) na indústria médica e em outras áreas. A nossa deportação surtiria um impacto negativo sobre a sociedade. E seria uma ameaça à liberdade e aos direitos civis."

Vilbrun Dorsainvil, 34 anos, auxiliar de enfermagem, natural de Porto Príncipe. Mora em Springfield desde 2021

Vilès Dorsainvil, 38 anos, diretor executivo do Centro de Apoio e Ajuda à Comunidade Haitiana de Springfield
Vilès Dorsainvil, 38 anos, diretor executivo do Centro de Apoio e Ajuda à Comunidade Haitiana de Springfield (foto: Roberto Schmidt/AFP)

"Nós estamos aqui legalmente. Não sei como Trump vai deportar mais de 1 milhão de haitianos e outros imigrantes. Aqui em Springfield, cada um dos haitianos se sente menos seguro desde que Trump começou a disseminar o boato. Eu me incluo nessa parcela. As alegações dele são péssimas para a nossa comunidade."

Vilès Dorsainvil, 38 anos, diretor executivo do Centro de Apoio e Ajuda à Comunidade Haitiana de Springfield  

A ORIGEM DOS BOATOS

Uma publicação na rede social X — banida no Brasil — acabou replicada por políticos do Partido Republicano e inspirado Trump a mentir durante o debate de 10 de setembro. O texto alega, sem qualquer evidência, que "a filha da amiga de um vizinho" viu um gato pendurado em uma árvores para ser estripado e devorado. Segundo a mensagem, a cena terria sido vista do lado de fora de uma casa de uma família de haitianos. Ela estava acompanhada de uma foto de um homem negro carregando o que parece ser um ganso. 

  • Vilbrun Dorsainvil, médico haitiano em Springfield (Ohio)
    Vilbrun Dorsainvil, médico haitiano em Springfield (Ohio) Foto: Arquivo pessoal
  •  Vilés Dorsainvil, the Executive Director of the Haitian Community Help and Support Center, speaks during an interview in Springfield, Ohio, on September 12, 2024 and explains the growing tensions that have engulfed the Haitian community in Springfield and recently exploded when former US President Donald Trump used the presidential debate to spread debunked rumors that Haitians were stealing pets and eating them. Bomb threats are being called into schools and businesses are closing at sundown in Springfield, Ohio, after the small US town has become the center of racist conspiracy theories targeting its Haitian immigrant community -- leaving some in fear for their lives. The mostly white city in the American Midwest has seen a boom in population in recent years, fueled mostly by Haitians attracted by its economic revival, and new businesses happy to attract laborers. (Photo by ROBERTO SCHMIDT / AFP)
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    Vilès Dorsainvil, 38 anos, diretor executivo do Centro de Apoio e Ajuda à Comunidade Haitiana de Springfield Foto: Roberto Schmidt/AFP
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postado em 15/09/2024 06:00
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