Bianca Martins é formada em educação física, faz uma pós-graduação na área e dá aulas como personal trainer há mais de seis anos.
Mesmo assim, ela conta que é constantemente atacada nas redes sociais por considerarem que ela não passa credibilidade suficiente para fazer seu trabalho — e já houve até mesmo alunos que a trocaram por outros instrutores pelo mesmo motivo.
Mas as críticas e desconfiança direcionadas a Bianca não questionam seu conhecimento sobre exercícios físicos ou apontam falhas que ela poderia ter cometido.
O comentário mais recorrente é que ela não tem um corpo considerado “atlético” ou “padrão” para quem é personal.
“Jamais aceitaria conselhos de alguém que eu achei que o corpo não é o qual eu quero atingir!”, diz um dos comentários feitos nas redes sociais de Bianca.
Ela mesma diz que não tem problema como isso e se define como uma personal fora do padrão que ajuda outras mulheres “a aceitarem seus corpos por meio do exercício físico”.
Bianca conta que já se acostumou com as críticas ao seu corpo, porque isso acontece desde que ela era criança, mas diz que hoje é diferente e incomoda mais.
“Sempre sofri bullying. Quando eu era criança, sofria na escola, depois no relacionamento. Então, eu sempre tive isso na minha vida”, diz Bianca à BBC News Brasil.
“Mas agora são comentários de pessoas que nunca me viram, não me conhecem e não sabem da minha história e da minha capacidade. Então, o que eu fico mais chateada é quando a pessoa não sabe do meu processo e vem jogar essas ofensas.”
‘É um erro se basear na aparência’
Casos como o de Bianca são comuns, segundo Fabio Britto, coordenador da rede de academias Bioritmo, porque o corpo do personal funciona como uma espécie de vitrine para o aluno.
A forma física do instrutor acaba muitas vezes se tornando um ideal a ser buscado por quem contrata esse tipo de profissional e que, por isso, esse critério pesa na escolha.
Britto conta que, em 20 anos de experiência na área, já viu excelentes personal trainers serem preteridos por outros que ele considerava menos preparados, mas que tinham “o corpo perfeito”.
“Trabalhei com várias pessoas que não tinham um corpo assim por questão hormonal, não por falta de cuidado ou conhecimento. São pessoas que treinam bastante e se alimentam de forma adequada, mas que não têm resultado (físico) por questões de saúde”, diz Britto.
Ele diz que é muito mais importante escolher o personal pela sua formação e filosofia de trabalho e com base em como ele lida com os alunos.
“É um erro a pessoa se basear apenas na aparência. Tem que avaliar o conhecimento e como o instrutor se comporta. Se ele fica usando o celular durante a aula e se presta atenção no aluno durante os exercícios”, diz Britto.
'Sou obesa, mas sou saudável'
A personal trainer carioca Cinthya Albuquerque, de 43 anos, diz que já foi preterida por “não ter uma barriga trincada e um corpo torneado”.
“O que eu vejo na academia são olhares. Mulheres que procuram personal e olham para mim, mas acham que eu não vou ajudar. Eu simplesmente não ligo e abstraio”, conta Cynthia, que é formada em educação física há 15 anos.
Ela diz que já nasceu bem acima do peso normal para um bebê e que sempre lutou contra a balança.
Cinthya diz que se inspira em sua própria história de uma vida lidando com a obesidade para ajudar outras mulheres
“O público que quero ajudar não é para shape [ter um corpo torneado]. Meu objetivo é cuidar de mulheres, visando primeiro a saúde e depois a estética", diz a personal.
"Já fiz dieta do ovo, fiquei dias sem comer e tive orientações erradas sobre como emagrecer. Já pesei muito menos, mas minha saúde não estava legal. Quero ajudar pessoas que também passaram pelo mesmo.”
Cynthia reconhece que muita gente não pensa desta forma e se guia mais pela estética.
“As pessoas não querem melhorar a saúde, querem o gominho da blogueira, a cinturinha da blogueira. Isso está piorando, mas não por nossa culpa. É mais por conta do que a mídia vende, que é o estereótipo à frente da saúde."
Ela diz que usa suas redes sociais para servir de exemplo como alguém que, embora esteja acima do peso, segue uma rotina de exercícios, tem uma alimentação saudável e está com os exames em dia.
“Eu sou obesa, mas tenho saúde, não sou hipertensa, não tenho colesterol alterado", diz ela.
"O único problema que tenho é um nódulo em uma parte da minha cabeça que me faz produzir menos testosterona e exige cuidados.”
'Não existe obesidade saudável'
Marcio Mancini, vice-presidente do departamento de obesidade da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), alerta, no entanto, que os exames mais básicos podem não detectar problemas de saúde relacionados à obesidade.
“Não existe obesidade metabolicamente saudável", diz Mancini, autor de Tratado de Obesidade (Guanabara Koogan, 2020),
"O fato de alguns exames estarem normais não significa que a saúde da pessoa está normal, porque o próprio aumento da gordura leva à produção de substâncias no tecido adiposo — chamadas de adipocinas. Muitas delas são inflamatórias e contribuem para a aterosclerose."
A aterosclerose é uma doença causada pelo acúmulo de gordura e cálcio nas paredes das artérias e veias do corpo humano.
Mancini afirma que doenças como a aterosclerose muitas vezes se desenvolvem de maneira silenciosa justamente porque não são detectadas nos exames de rotina.
"A carga do peso em cima das articulações causado pela obesidade também danifica a cartilagem. A apneia do sono também não é identificada por exame de sangue, mas sim do acúmulo de gordura no pescoço. Há aumento do risco de cânceres ligados à obesidade, ligados à insulina alta", enumera o especialista.
O médico afirma que a pessoa obesa está exposta a uma série de riscos, mesmo que exames apontem para uma normalidade.
"A pessoa com peso excessivo tem risco maior de desenvolver mais de 200 doenças, como diabetes, hipertensão, demência, Alzheimer, gota, problemas articulares e apneia do sono. Não é possível aceitar a obesidade como algo normal."
O médico afirma que, desde 2013, a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a associação médica americana consideram a obesidade uma doença e não um fator de risco para o desenvolvimento de outros problemas de saúde.
Por outro lado, Mancini alerta que ser magro também não é necessariamente sinônimo de ser saudável.
O médico explica que pessoas que tem um peso dentro dos parâmetros considerados normais também podem ter problemas de saúde.
"Normalmente, isso está associado ao acúmulo de gordura na região abdominal", afirma Mancini.
"São pessoas que têm um pequeno ganho de peso e, em vez dessa gordura ser distribuída pelo corpo, esse ganho vai para a região interna da barriga, se acumulando no fígado, nos rins e no pericárdio [em volta do coração]."
‘Tudo é visto aos olhos da gordofobia’
Criadora da feira Pop Plus, voltada para pessoas gordas, Flávia Durante, de 47 anos, diz que as críticas a personal trainers como Bianca Martins e Cynthia Albuquerque por estarem fora do "padrão" são um reflexo da gordofobia, o preconceito contra quem está acima do peso.
“A sociedade toda é gordofóbica, então, tudo vai ser visto aos olhos da gordofobia”, diz Durante.
“A gordofobia faz com que o corpo gordo seja visto logo de cara como incapaz, preguiçoso, sujo, mole e incompetente. Você pode ter o melhor currículo e a melhor capacidade, mas, se você é gordo, já tá descartado até em concurso público.”
Ela considera que a gordofobia é mais difícil de combater do que outras formas de discriminação que são consideradas crime, como o racismo e a LGBTfobia.
Mesmo assim, defende a empresária, pessoas consideradas acima do peso devem buscar que seus direitos sejam respeitados quando há preconceito.
“As pessoas gordas devem entender que elas podem, sim, praticar uma atividade física. É direito delas. Assim como ter acesso à saúde, ao transporte e ao mercado de trabalho. Porque uma pesquisa [do Grupo Catho] aponta que 65% dos empresários têm restrições para contratar pessoas gordas.”
‘Academia é um ambiente hostil’
Bianca conta que a maior parte das pessoas a procuram como personal trainer não apenas por estarem descontentes com seus corpos e rotinas de exercícios, mas também para buscar conselhos para se aceitarem como são.
Uma das principais queixas é de que a academia é um ambiente hostil, no qual pessoas gordas são julgadas, nem sempre com palavras, mas olhares e comportamentos de rejeição e descrédito.
“A academia deveria ser um ambiente acolhedor, principalmente para pessoas com sobrepeso que precisam estar ali para melhorar sua saúde, mas infelizmente isso não acontece”, afirma Bianca.
“As mulheres sentem muita vergonha de frequentar esse ambiente, principalmente porque pessoas que têm um corpo no padrão da sociedade ficam julgando.”
Bianca afirma que nem todos que fazem musculação querem ter um corpo musculoso ou emagrecer.
“Tem gente que está ali só para ter uma qualidade de vida, melhorar a alimentação ou para esquecer um pouco dos problemas do dia a dia”, diz Bianca.
“São muitas mulheres que pagam uma mensalidade igual a todas as outras pessoas e precisam estar ali pela saúde delas. São pessoas que buscam autonomia para se locomover sem precisar da ajuda dos filhos e sem necessariamente serem magras”.
A personal trainer recomenda que algumas de suas alunas iniciem os exercícios em casa e só depois migrem para uma academia, para irem se ambientando aos poucos.
Ela explica que as aulas em domicílio podem até ajudar, mas apenas um local estruturado terá todos os aparelhos necessários para executar os exercícios de maneira completa.
“Estou trazendo para elas esse começo em casa, mas com foco para entrar numa academia e para tirar esse bloqueio da cabeça delas. Até porque não faz muito sentido isso”, diz Bianca.
“A academia é justamente um local onde você vai para para melhorar o condicionamento físico, não ser julgado pelo seu peso.”
Terapia e visibilidade
Bianca conta que faz terapia para manter a saúde mental em dia para lidar com tanta agressividade e diz que faz questão de responder aos comentários de quem desconfia que uma mulher acima do peso pode ser personal trainer.
Ela usou em suas redes sociais o exemplo da judoca brasileira Beatriz Souza, medalhista de ouro na Olimpíada de Paris neste ano, para dizer que a conquista dela pode incentivar outras pessoas.
“Que sua vitória motive muitas outras a buscar uma vida mais saudável e ativa. Obrigado por nos mostrar que o impossível é apenas uma questão de perspectiva”, escreveu em um post.
“Eu não sei quem inventou esse padrão de falar qual o certo. Porque o certo é você estar bem consigo mesma. O certo, entre aspas, ou o padrão é você ser feliz”, diz Bianca.
“O padrão é você ser saudável para você ter uma vida leve, boa, porque quem é feliz, quem está bem, não enche o saco de terceiros.”
A personal diz que os ataques acabam dando mais visibilidade para ela. “Estou tirando proveito disso para alcançar o meu propósito de alcançar mais mulheres que se identificaram comigo e estão vindo me pedir ajuda para lidar com seus problemas.”
Alvo de tantas críticas e debates, Bianca Martins diz que apenas não quer ser julgada por sua aparência.
“Eu sei do meu potencial. Se você quer emagrecer, eu consigo te ajudar. Se você quer ganhar massa, eu posso também. Eu sempre estudei muito para que a minha aparência não seja algo que leve as pessoas a desconfiarem do meu trabalho”.
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