“Há erros dos dois lados que estão se retroalimentando”, afirma Pablo Ortellado, professor de gestão de políticas públicas na USP, sobre o imbróglio entre o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), e o bilionário Elon Musk.
Na sexta-feira (30/8), Moraes suspendeu o X (antigo Twitter), que pertence a Musk desde outubro de 2022, em todo o Brasil.
O STF havia determinado que o bilionário nomeasse um representante legal no Brasil e cumprisse uma série de ordens de bloqueio de conteúdo e usuários. Mas Musk se recusa a acatar os pedidos, sob o argumento de liberdade de expressão e acusa o judiciário brasileiro de ser uma ameaça à democracia.
Moraes aponta que "Musk confunde liberdade de expressão com uma inexistente liberdade de agressão".
O ministro afirma que a postura adotada por Musk incentiva discursos extremistas e antidemocráticos.
Logo após a suspensão da rede, Musk reagiu em sua conta no X. Ele disse que “a liberdade de expressão é a base da democracia e um pseudo-juiz não eleito no Brasil está destruindo-a para fins políticos”.
Para Ortellado, a suspensão da rede foi “inevitável”, porque considera que a postura de Musk ao desobedecer pedidos judiciais foi uma “afronta à Justiça”.
Mas o professor da USP critica o modo como o ministro do STF conduz os inquéritos dos movimentos antidemocráticos, principalmente na parte em que trata sobre as publicações de conteúdos nas redes sociais como o X.
“Acho que a maneira como o Moraes está conduzindo tudo isso é arrogante. Existem poderes excepcionais que não se justificam nessas ações”, diz.
Ortellado se refere principalmente a diversos pedidos de Moraes para derrubar perfis na plataforma de Musk. “Pedir para retirar uma conta por causa de uma publicação é uma censura prévia”, avalia.
O STF disse em nota à BBC News Brasil que não irá comentar as críticas de Ortellado. O X também foi procurado e não respondeu aos questionamentos.
Moraes X Musk
O embate entre Moraes e Musk prejudica a democracia brasileira, aponta Ortellado.
“É uma disputa que está tão polarizada que as pessoas estão tendo dificuldades para encontrar as nuances. O pessoal que vê a postura de Musk com preocupação tende a justificar todas as medidas de Moraes e vice-versa”, acrescenta.
Sobre a conduta de Moraes nos inquéritos antidemocráticos, que apuram a disseminação de fake news, milícias digitais e atos golpistas,Ortellado argumenta que a exclusão de perfis por causa de uma publicação pode ser considerada uma medida abusiva.
“Antes da crise do Bolsonaro, havia um entendimento consolidado de que se havia uma publicação ilícita, era preciso ir à Justiça e a publicação era excluída e poderia haver outras implicações jurídicas a partir dela, até mesmo criminais. Mas o perfil não era excluído, porque isso seria partir do entendimento de que se a pessoa fez aquela publicação fará outra igual no futuro. Isso é censura prévia, é completamente abusivo”, diz.
Ortellado, estudioso sobre o bolsonarismo, explica que esse entendimento mudou por causa dos constantes ataques à democracia e dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023.
“Diante de tudo isso, começou a pedir a suspensão das contas. Naquelas circunstâncias, honestamente, esses pedidos eram justificáveis porque havia uma campanha organizada para desestabilizar a democracia brasileira e havia contas fazendo múltiplas postagens por dia. A Justiça não dava conta de excluir só uma postagem, seria enxugar gelo.”
No entanto, segundo o professor da USP, esses pedidos para excluir perfis continuaram, mesmo após as investigações e prisões dos envolvidos nos atos antidemocráticos de janeiro de 2023.
“As pessoas foram identificadas, as prisões foram feitas, houve trabalho da Polícia Federal e todo mundo foi indiciado. Não havia mais motivos para continuarem excluindo contas. Deveriam ter regredido ao entendimento anterior, de que fazer isso é censura prévia”, afirma.
Ortellado frisa que os inquéritos antidemocráticos tramitam em segredo e as decisões de Moraes sobre as exclusões dos perfis não costumam ser publicizadas, o que dificulta o entendimento sobre as motivações das medidas tomadas pelo ministro.
“As pessoas que são alvos desses inquéritos dizem que não são notificadas para que possam se defender. Mas claro, é preciso tomar cuidado, porque as partes que estão sofrendo isso são politicamente motivadas, mas está tudo em segredo de Justiça”, diz.
Sem detalhamentos do STF, Ortellado frisa que muitos podem se apegar ao que é dito por Musk, que classifica Moraes como um ditador que quer excluir os perfis de seus opositores.
“Mas o Musk é politicamente motivado. Não acredito que ele seja defensor da liberdade de expressão. Essa postura dele parece uma fachada, que depende do regime e do governo com o qual está lidando”, diz o professor da USP.
Ortellado cita decisões judiciais na Índia e na Turquia em que Musk, apesar de uma resistência inicial, acolheu pedidos de exclusões de perfis no X por conteúdos considerados inapropriados.
“Eu acho que ele (Musk) está fazendo isso politicamente motivado, atacando o governo de esquerda e a Justiça brasileira, que ele entende que está alinhada ao governo de esquerda.”
As consequências do embate
Ainda que questione a conduta de Moraes, Ortellado frisa que a postura de Musk não deixou outra alternativa que não fosse a suspensão da rede social. O professor pondera que o bilionário poderia questionar a conduta do ministro somente na Justiça, não por meio de publicações jocosas nas redes e descumprimento de decisões judiciais.
“A maneira como o Musk agiu foi absurda e ilegal. Ele começou a desobedecer a decisão judicial, destituiu os representantes legais do X e começou a caçoar da Justiça. E a Justiça endureceu porque tinha que endurecer. Foi um absurdo, completamente moleque”, declara.
“E a expectativa é de que por ele ter afrontado a Justiça e não ter seguido as leis brasileiras, não há chances de que um recurso dele (contra o bloqueio do X) seja favorável neste momento, porque senão vai parecer que os juízes respaldam alguém que está afrontando a Justiça brasileira”.
“Tudo o que vem da Justiça depois dessa postura dele, como a proibição do X no Brasil, é completamente razoável.”
Ele aponta que todo esse imbróglio causará prejuízos para a plataforma do bilionário, já que o Brasil é o sexto maior mercado do X no mundo. Segundo a plataforma global de dados e estatísticas Statista, o país tinha 21,5 milhões de usuários da rede, ficando atrás de EUA, Japão, Índia, Indonésia e Reino Unido.
“Mesmo para alguém que tem muito dinheiro, isso não é algo inexpressivo. Não é pouca coisa que ele está jogando fora. Talvez ele esteja medindo força para ver até onde o Alexandre de Moraes vai, mas isso causa várias implicações pro Musk, uma das principais é a financeira, porque ele está perdendo muito dinheiro”, avalia.
Os problemas de Musk com a Justiça brasileira, segundo Ortellado, acenderam um alerta em todo o mundo.
“Não existe uma percepção mundial de que o Brasil se juntou a países como a China, a Rússia e o Irã ao suspender o X. A percepção é de que o X foi proibido em um país democrático, porque ele desafiou a justiça local. Uma coisa é a rede ser banida em um país autoritário, outra coisa é em um país democrático”., diz.
“Isso deve ter repercussão no ambiente regulatório de todos os países, inclusive nos Estados Unidos, onde sabem da relação próxima entre Musk e Trump (candidato à presidência) e já podem imaginar algo semelhante ocorrendo”, acrescenta.
Mas a Justiça brasileira também deve sentir as consequências do episódio com Musk, avalia Ortellado.
Ele aponta que faltou detalhamento à população sobre os pedidos de derrubada dos perfis, além de as notificações ao X sobre a possível suspensão da plataforma não terem sido divulgadas abertamente com antecedência.
“O STF se sente respaldado porque muitas pessoas têm receios e dedos de fazer críticas a ele, dado ao papel fundamental que teve para assegurar a democracia.”
“Acontece que manter esses poderes excepcionais em situações em que não se justifica faz com que o STF perca a legitimidade na sociedade brasileira. Me preocupa que um Supremo não tenha a confiança de 40% da sociedade brasileira”, diz.
Ortellado se refere à pesquisa “A Cara da Democracia”, do Instituto da Democracia (IDDC-INCT), deste ano. O levantamento revelou que o STF desperta “muita confiança” em 15% das pessoas, enquanto 45% afirmam confiar "mais ou menos" ou "pouco". Já os que não confiam são 37% – o índice chegou a 43% em 2021, durante o governo Jair Bolsonaro, que proferia inúmeros ataques à Corte.
“O Supremo precisa resgatar a legitimidade com os brasileiros. É preciso que essa máquina volte a funcionar de maneira mais normal para que as pessoas resgatem a confiança na Justiça”, afirma Ortellado.
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