As mulheres só foram autorizadas a participar da segunda edição dos Jogos Olímpicos de 1900, em Paris, na França. Mais de 120 anos depois, a Olimpíada de Paris foi celebrada como a primeira com paridade total de gênero, com o Comitê Olímpico Internacional (COI) alocando exatamente 50% das vagas nas cotas para atletas femininas.
Mas uma modalidade de luta ainda permanece um reduto exclusivamente masculino nos Jogos.
A luta greco-romana é um dos dois estilos disputados no wrestling - esporte antes chamado de luta olímpica -, ao lado da luta livre. O estilo livre conta com categorias feminina e masculina, mas a modalidade mais antiga e tradicional do esporte ainda é reservada apenas para homens.
“Estão promovendo Paris 2024 como a Olimpíada da igualdade, mas a verdade é que a disparidade continua com as mulheres sendo proibidas de disputar o estilo greco-romano”, diz Aline Silva, ex-atleta da luta feminina e vice-presidente da Confederação Brasileira de Wrestling (CBW).
“A tradição machista continua escancarada nas nossas caras.”
A luta é um dos esportes mais antigos da história da humanidade – se não o mais antigo. A modalidade greco-romana foi um dos nove esportes disputados na primeira edição dos Jogos Olímpicos na Era Moderna, em 1896, e esteve em todos os Jogos desde então.
O esporte surgiu oficialmente na França entre o final do século 18 e início do 19, tendo como principal inspiração representações clássicas gregas e romanas da luta disputada nos Jogos Olímpicos da Antiguidade.
E enquanto a luta greco-romana da atualidade segue um estilo baseado no esporte antigo, a chamada luta livre é disputada em um formato mais moderno.
E enquanto a luta livre masculina faz parte do programa olímpico desde os Jogos de Antuérpia em 1920, as mulheres só foram incluídas no programa nos Jogos de Atenas de 2004.
Mas atletas e ex-atletas ainda veem a falta de representação feminina nas competições de greco-romana como um atraso para o qual não há justificativa lógica.
“Nunca sequer tentaram explicar porque não podemos participar”, afirma Dailane Reis, atleta e treinadora de luta livre e greco-romana.
“Sempre ouvi ‘que isso aqui é para homem e pronto, acabou. Não vai mudar’”.
Procurado, o Comitê Olímpico Internacional afirmou à reportagem por meio de um porta-voz que “está empenhado em promover e integrar a igualdade de gênero no esporte e para além dele”.
A entidade afirmou também que o programa de eventos da Olimpíada é definido pelo Conselho Executivo do Comitê Olímpico Internacional, mediante recomendações da Comissão do Programa Olímpico e em cooperação com as Federações Internacionais e o respectivo Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos.
“Mais especificamente, qualquer proposta para um novo evento apresentada pela respectiva Federação Internacional passa por um processo de revisão e tomada de decisão muito rigoroso, liderado pela Comissão do Programa Olímpico, que envolve representantes de atletas, Federações Internacionais e Comitês Olímpicos Nacionais”, afirmou.
A federação internacional responsável pelo esporte atualmente é a União Mundial de Wrestling, ou United World Wrestling (UWW), em inglês.
A BBC Brasil entrou em contato com a organização em busca de esclarecimentos sobre a exclusividade masculina na luta greco-romana, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.
Incompatibilidade física?
A inclusão das mulheres na luta greco-romana já foi discutida em diversas ocasiões, por pressão de atletas e patrocinadores.
O presidente da UWW, Nenad Lalovi?, chegou a dizer em entrevista que “poderia ser viável” adotar novas categorias nos Jogos de Paris, mas nada foi concretizado.
Ao invés disso, a União submeteu uma candidatura ao COI para incluir a luta de praia, ou Beach Wrestling, nos Jogos de 2024. A ideia era que apenas mulheres pudessem competir na modalidade, de forma a igualar o número de atletas do sexo feminino e masculino inscritos na luta.
Mas a proposta foi rejeitada pela Comitê Olímpico e tudo permanece da mesma maneira.
Para Aline Silva, da CBW, as justificativas para a falta de mulheres na modalidade greco-romana são insuficientes e não fazem sentido.
“A confederação internacional não quer ceder o estilo greco-romano para manter a tradição machista que se praticava na época Jogos Olímpicos da Antiguidade, quando as mulheres nem podiam entrar nos ginásios”, diz.
Segundo a ex-atleta, extraoficialmente muitos ainda recorrem ao argumento de incompatibilidade física para explicar a questão, ainda que esse tema nunca tenha aparecido em documentos oficiais.
“Ouvi a minha vida inteira e ainda ouço de dirigentes e atletas que mulheres não podem lutar greco-romana porque vão machucar os seios e ficar estéril”, diz. “Mas isso é um absurdo que não se justifica tecnicamente.”
A professora da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (EEFE-USP) e coordenadora do Grupo de Estudos Olímpicos Katia Rubio concorda que a proibição se baseia em uma dominação masculina no esporte que deveria ser extinta.
No passado, atletas do sexo feminino já foram impedidas de praticar outros esportes com base em justificativas semelhantes. No Brasil, um decreto aprovado em 1941, durante o regime de Getúlio Vargas, proibia o futebol e outros esportes considerados mais duros, como qualquer tipo de luta, para as mulheres.
“A questão não é machucar, porque existem várias proteções para os seios em outras modalidades que poderiam ser aplicadas”, diz Rubio. “O esporte olímpico nasce como um campo de força masculina. E todas as modalidades em que as mulheres podem competir hoje passaram por um processo de muita luta. Nunca foi uma concessão.”
“É como se ainda precisasse haver uma um bastião de resistência do mundo masculino onde mulher não entra.”
E apesar de muitas atletas e dirigentes do esporte brasileiro já terem se pronunciado sobre a questão, não há um movimento integrado e organizado com outras nações.
“Apesar de alguns países tentarem fomentar o feminino com campeonatos informais e a gente ter até técnicas mulheres de greco-romana dando aula no masculino, o esporte ainda é extremamente dominado e regido por homens”, diz Silva.
‘O que mais eu poderia ter ganhado?’
Nas Olimpíadas de Paris, a luta greco-romana é disputada em seis categorias masculinas divididas por peso. A luta livre masculina e feminina também tem seis categorias de peso cada.
Enquanto na greco-romana o competidor só pode usar os braços e a parte superior do corpo para atacar o oponente acima da cintura, a luta livre é uma forma mais aberta do esporte, na qual os atletas também utilizam as pernas e podem segurar os oponentes acima ou abaixo da cintura.
No entanto, o objetivo é o mesmo em ambos os estilos. Os lutadores devem usar as mãos limpas para prender os dois ombros do oponente no tapete sem segurá-lo pela camiseta ou, se nenhuma queda for realizada durante a luta, precisam ter mais pontos no final do tempo regulamentar a partir de movimentos de queda e de reversão.
Como não existe oficialmente a versão feminina de greco-romana, não há competições e, consequentemente, são poucas as atletas que se desenvolvem na categoria.
Mas os praticantes do esporte acreditam que muitas mulheres no Brasil teriam condições de crescer no esporte se pudessem competir.
Aline Silva iniciou sua carreira no judô e depois migrou para a luta olímpica por intermédio de um treinador. Por seu passado, afirma que sempre manteve um estilo de luta mais baseado no tronco do que nas pernas.
Ela foi a primeira atleta brasileira a subir ao pódio em campeonatos mundiais, tem três medalhas de Jogos Pan-Americanos e participou das Olimpíadas do Rio e de Tóquio.
“Eu não atacava muito a perna e todo mundo que me conhecia falava ‘nossa, se você fosse da greco-romana ein…’”, conta.
“Então para o resto da minha vida eu vou me perguntar ‘e se eu fosse permitida a lutar greco-romana? O que mais será que eu teria ganhado?’”.
O mesmo é verdade para Dailane Reis, que sempre treinou ao lado de homens e sempre se destacou por sua força no tronco.
“Quando eu iniciei na modalidade, aos 13 ou 14 anos, era a única menina em uma equipe de greco-romana”, conta. “Então vivenciei o estilo minha vida toda e tive que adaptar para a luta feminina.”
Reis afirma que as habilidades adquiridas na greco-romana a ajudam como atleta da luta feminina, apesar de não poder usar os mesmos golpes. “Mas como sempre me destaquei por minha força e corpo, acho que poderia ter me dado bem na greco-romana se tivesse oportunidade de competir.”
Além de ainda participar de campeonatos nacionais de luta livre, a carioca também tem sua própria equipe de luta, com atletas do sexo masculino e feminino.
“Tenho uma aluna que adora greco-romana e sempre luta com os meninos - e ganha muitas vezes”, diz. “E mesmo para as que só lutam feminina gosto de ensinar alguns princípios da greco-romana, porque sei que isso vai ajudar elas no futuro.”
Desenvolvimento atrasado
A luta greco-romana é a única modalidade de luta disputada na Olimpíada que só permite homens.
O judô, por exemplo, se tornou elemento permanente do programa olímpico em 1972 e o evento feminino foi introduzido 16 anos depois.
Já o boxe feminino só foi introduzido no programa em Londres 2012, apesar da modalidade masculina ser disputada desde 1904.
“As mulheres sempre encontraram maior resistência nas lutas do que em outros esportes”, diz Katia Rubio, da USP.
No Brasil, o decreto de 1941 que proibia a participação das mulheres em diversas modalidades só foi revogado em 1979. Anos depois, muitas das lutas restritas ainda não haviam sido devidamente regulamentadas.
“Esses impedimentos atrasam o desenvolvimento das modalidades feminina. No judô, por exemplo, os resultados só começaram a aparecer de forma mais clara entre as atletas mulheres recentemente, depois de mais de 30 anos de proibição”, afirma Rubio.
Além da luta greco-romana que é exclusividade masculina, a Olimpíada de Paris 2024 também mantém outros poucos esportes em que não há igualdade total de gênero.
O heptatlo, por exemplo, é disputado apenas pelas mulheres, enquanto no decatlo só os homens competem. Ambos incluem diversas disputas de modalidades do atletismo, mas são compostos por provas diferentes.
Em 2024, os homens foram autorizados a competir pela primeira vez no nado artístico.
Conforme as mudanças nas regras anunciadas pelo Comitê Olímpico Internacional em dezembro de 2022, no máximo dois homens poderiam fazer parte da disputa de equipes de oito atletas. No entanto, nenhum homem foi selecionado entre os 96 atletas de 18 países que disputam a modalidade.
Já a ginástica rítmica se mantém uma modalidade exclusivamente feminina.
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