A família que criou Imane Khelif — a boxeadora argelina cuja participação na Olimpíada foi ofuscada por uma disputa sobre sua elegibilidade para competir — disse à BBC que "Imane nasceu mulher e viveu como mulher".
Khelif venceu o ouro na competição feminina de boxe no peso médio nesta sexta (9/8).
Antes da conquista, Rachid Jabeur, tio da atleta, falou com exclusividade à BBC News Arabic.
Para ele, a infância difícil de Imane Khelif na Argélia lhe deu a força mental necessária para lidar com a enorme pressão vivida durante essa Olimpíada.
Khelif é uma das duas boxeadoras que estão competindo em Paris 2024 mas que tinham banidas do Campeonato Mundial no ano passado pela Associação Internacional de Boxe (IBA).
A argelina e a taiwanesa Lin Yu-ting foram desclassificadas do Campeonado Mundial depois de terem sido alegadamente reprovadas em testes hormonais, uma situação que gerou grande controvérsia.
Em 2024, Khelif sofreu perseguição da extrema-direita após alegações falsas de que ela seria uma mulher trânsgênero viralizarem na internet. O episódio aconteceu após Khelif derrotar a italiana Angela Carini nas oitavas de final em apenas 46 segundos.
Khelif sempre competiu na divisão feminina e é reconhecida pelo COI Internacional como uma atleta feminina.
"A boxeadora argelina nasceu mulher, foi registrada como mulher, viveu sua vida como mulher, lutou boxe como mulher, tem um passaporte feminino", disse o porta-voz do COI, Mark Adams.
"Este não é um caso envolvendo transgênero. Houve alguma confusão de que, de alguma forma, seria um homem lutando contra uma mulher. Este não é o caso. Sobre isso, há consenso, cientificamente: este não é um homem lutando contra uma mulher."
Rachid, o tio da lutadora, falou com a BBC da cidade de Tiaret, no noroeste da Argélia.
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Da coleta de sucata até quase desistir do boxe
Foi somente após deixar sua aldeia remota para viver com seu tio e sua tia que Imane conseguiu superar o estigma social e construir sua carreira como boxeadora.
A mais velha de seis irmãs e um irmão, ela cresceu em Ain Mesbah, uma aldeia rural onde tradicionalmente apenas meninos brincavam ao ar livre, e meninas raramente saíam de casa.
O talento esportivo de Imane foi descoberto por um treinador de boxe local enquanto ela jogava futebol na rua com os meninos. O técnico a convidou para treinar em um centro esportivo, a cerca de 10 km de sua aldeia natal.
O pai de Imane, Amar Khelif, concordou em deixar sua filha participar do treinamento. A mãe de Imane vendia sucata e cuscuz para pagar a passagem de ônibus para a viagem de ida e volta ao centro.
Rachid Jabeur disse à BBC que não demorou muito para que rumores e fofocas começassem a se espalhar na aldeia natal de Imane. Os moradores começaram a questionar a decisão da família de deixar Imane ir sozinha: "Por que uma garota da idade dela viajaria sem a família?".
Isso levou o pai de Imane, um pastor e ferreiro, a mudar de ideia e pedir à filha que parasse de treinar.
Imane estava prestes a desistir de suas aspirações esportivas. Mas então Rachid e sua esposa contataram o pai de Imane para dizer que cuidariam dela, pois moravam mais perto do centro esportivo.
"Nós a recebemos em nossa casa na cidade [Tiaret], onde cuidamos dela com refeições especiais e treinamento esportivo", disse Rachid.
Um futuro no boxe para Imane só seria possível se ela morasse com seu tio e sua tia.
"Nós a apoiamos e a encorajamos como parte de nossa família", disse o tio de Imane, Rachid.
Assim como sua mãe, Imane também vendia sucata de cobre para cobrir seus custos de treinamento, mas ainda enfrentava assédio porque era incomum uma garota participar do boxe, mesmo em uma cidade maior.
“Eu sempre pedia aos meus filhos para acompanharem as sessões de treinamento para protegê-la”, disse Rachid.
As habilidades de boxe de Imane melhoraram rapidamente.
Três anos depois de se mudar para a casa de seu tio e de sua tia, ela se juntou à seleção argelina e competiu no Campeonato Mundial Feminino de 2018, onde ficou em 17º lugar após ser eliminada na primeira rodada.
'Ela está sempre tentando superar esse bullying'
Um ano depois, ela provou ser uma boxeadora profissional de sucesso e começou a sustentar sua família financeiramente e a apoiar instituições de caridade em sua cidade natal.
Rachid disse que acredita que sua educação difícil deu a Imane a força para lidar com a controvérsia que a cercou nas Olimpíadas.
"Ela está sempre tentando superar esse bullying, e há pessoas ao seu redor que a apoiam", disse. "Ela não acredita em perder e não se importa com esses boatos."
Rachid aconselhou Imane a evitar seu celular e mídias sociais durante a controvérsia.
Imane enfrentará a tailandesa Janjaem Suwannapheng, que derrotou a favorita Busenaz Surmeneli — atleta turca campeã olímpica de 2021 — na semifinal da categoria peso meio-médio nesta terça-feira (6/8).
Mesmo se perder, ela deixará os Jogos de Paris com uma medalha de bronze.
Imane e Lin Yu-ting receberam grande apoio do Comitê Olímpico Internacional (COI), que administra as competições de boxe nos Jogos, em meio a um tenso debate.
O presidente do COI, Thomas Bach, disse que "nunca houve dúvidas" de que as suas são mulheres.
Imane chegou à final do Campeonato Mundial do ano passado antes de ser desqualificada pela IBA, uma organização liderada pela Rússia e que foi suspensa pelo COI em 2019 devido a preocupações com suas finanças, governança, ética, arbitragem e julgamento.
A IBA disse que Imane "não conseguiu atender aos critérios de elegibilidade para participar da competição feminina, conforme estabelecido e disposto" em seus regulamentos, enquanto o COI disse que a dupla foi "repentinamente desqualificada sem nenhum devido processo".
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