O estudante Lucas dos Anjos, de 22 anos, vivia na Argentina desde 2019, mas, há seis meses, decidiu mudar de país, porque os aumentos dos preços na capital, Buenos Aires, onde ele vivia, deixaram seu orçamento apertado demais.
O aluguel, que custava R$ 300 quando chegou ao país, já estava em R$ 2 mil no início deste ano.
Ele havia saído de Suzano, no interior de São Paulo, para estudar medicina na Argentina porque não tinha condições financeiras de arcar com uma faculdade particular no Brasil.
Mesmo com a inflação que assola o país há anos, Lucas diz que o custo de vida em Buenos Aires era menor do que no Brasil, mas, depois da pandemia, os preços começaram a subir significativamente.
Isso piorou, segundo Lucas, após a posse do novo presidente Javier Milei, em dezembro.
"Subiu tudo. Um arroz que a gente pagava R$ 2 foi para R$ 10. Um absurdo", diz Lucas, que viu seus custos mensais passarem de R$ 3 mil, bem mais do que os R$ 600 com que conseguia viver na Argentina há cinco anos.
A Argentina, sob o comando de Milei, enfrenta um rigoroso ajuste econômico. Herdando um país em recessão, com inflação descontrolada e dívida pública crescente, Milei implementou um corte abrangente de gastos públicos em uma tentativa de estabilizar a economia.
Desde que assumiu a Presidência, paralisou obras federais e interrompeu o repasse de verbas para as Províncias.
Subsídios a serviços essenciais, como água, gás, luz e transporte público, foram eliminados, resultando em um aumento significativo de preços ao consumidor.
Essas medidas de austeridade geraram uma resposta mista, com muitos argentinos e brasileiros sentindo o peso no bolso do encarecimento de itens essenciais e do mercado imobiliário.
Por causa disso, Lucas decidiu que era o momento de ir embora. “Em um mês arrumei tudo, consegui trazer meu gato e me mudei com o meu namorado”, conta Lucas, que hoje vive em Ciudad del Este, no Paraguai.
"Aqui consigo comer bem, sem ter o desespero se eu vou ter comida no fim do mês. Aqui é bem mais barato."
Ele não é um caso isolado. A BBC News Brasil conversou com outros brasileiros que já deixaram a Argentina ou que pretendem se mudar em breve, principalmente, pelo aumento do custo de vida.
Disparada de preços
Um levantamento do Centro de Estudos Scalabrini Ortiz, que analisa índices socioeconômicos na Argentina, mostrou que inquilinos enfrentaram no país no último ano, de janeiro a dezembro, aumentos de 285% a 309% nos aluguéis de imóveis de um a três quartos.
Isso ocorreu porque uma legislação que estava em vigor desde a pandemia foi extinta.
A Lei do Aluguel, aprovada em 2020 pelo Congresso argentino, impunha limites aos aumentos dos aluguéis e havia estendido a duração dos contratos de dois para três anos.
O objetivo era proteger os inquilinos durante a crise sanitária e social provocada pela covid-19.
Já nesta época, muitos proprietários de imóveis optaram por vender em vez de alugar ou priorizam as locações por temporada, consideradas mais rentáveis, explica Gustavo Perego, diretor da ABCEB, consultoria de gestão e desenvolvimento de negócios da América Latina.
Isso gerou uma crise no mercado imobiliário, porque reduziu o número de imóveis disponíveis para locação.
"Os poucos que estavam para alugar subiam o preço, então, era caro e tinha poucos", afirma Perego.
Os preços subiram ainda mais depois que Milei chegou ao poder. O novo governo revogou em dezembro de 2023, por meio do Decreto de Necessidade e Urgência (DNU), a lei que limitava o aumento do aluguel — assim como outras medidas de controle de preços.
Os contratos passaram a poder ser negociados livremente, explica Perego, e os proprietários também puderam passar a cobrar em dólar, tornando oficial uma prática que já ocorria informalmente.
O economista Alberto Ajzental, coordenador do curso de Negócios Imobiliários da Fundação Getúlio Vargas (FGV), explica que, com a lei anterior, os valores dos aluguéis ficaram defasados porque não puderam ser reajustados conforme a inflação.
“Isso prejudicou os proprietários e desestimulou a oferta de imóveis", diz Azental.
"Agora, com a liberação, os proprietários estão buscando atualizar os valores para o patamar de mercado, o que gera um aumento considerável nos preços."
Embora o país viva com a crise imobiliária há anos, além da lei de aluguéis que contribui para esse aumento, segundo especialistas, o problema também faz parte de uma crise imobiliária global.
A pandemia de covid-19 causou um grande impacto no mercado imobiliário, segundo Ajzental, com a diminuição da renda das famílias em contraponto com um aumento do preço dos imóveis.
Com a compra da casa própria mais distante, explica o economista, a locação se tornou a principal alternativa para muitas famílias, aumentando a demanda e, consequentemente, os preços dos aluguéis.
A disparidade entre o câmbio oficial e o paralelo na Argentina impactou o mercado de aluguel no país, segundo Perego.
Na Argentina, o câmbio oficial é a taxa controlada pelo governo, enquanto o paralelo, também conhecido como "dólar blue", é uma taxa informal negociada fora dos canais oficiais.
Contratos de locação em pesos, atrelados ao câmbio oficial e à inflação, tornaram-se desvantajosos para os proprietários, explica o diretor da ABCEB.
A possibilidade de alugar por curtos períodos em dólares, via plataformas como o Airbnb, mostrou-se mais lucrativa, especialmente em áreas turísticas.
Ainda de acordo com Perego, os novos preços são uma realidade do país e ficarão bem parecidos com os das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro.
Para o especialista, a queda no valor dos aluguéis vai acontecer, mas será gradual.
'A Argentina está inviável'
A médica brasileira Amanda Oliveira vive há 14 anos em Buenos Aires com o marido, que é argentino, e não tinha planos de voltar a morar no Brasil, porque viver na capital argentina era mais barato do que no Rio de Janeiro
Mas ela diz que essa realidade mudou no primeiro semestre deste ano com o encarecimento do custo de vida. Agora, o casal está cogitando seriamente se mudar para o Brasil.
Só no aluguel, o aumento foi de mais de 270%, de uma só vez. O valor passou de R$ 500 para R$ 1,75 mil, o que ela considera caro para um apartamento de 40 m² em Palermo, bairro nobre da capital.
“Nosso contrato ainda estava na lei antiga. Para se ter uma ideia, ele vencia dia 30 de abril, e a gente só soube qual seria o valor novo dois dias antes”, conta Amanda.
“Deram duas opções para a gente. Pagar um valor semestral fixo em dólar ou um aumento a cada três meses conforme a inflação.”
Desde a publicação do DNU, os preços dos convênios também dispararam. No caso de Amanda, o aumento foi de 89%.
“Ficamos meio sem parâmetro, porque tudo aumentou”, diz a médica.
Após a escalada nos preços dos planos, o governo determinou em maio que as mensalidades não podem subir acima da inflação.
Com todas essas mudanças, Amanda, que se formou em medicina na Argentina, está estudando para fazer a prova do Revalida no Brasil, exame que médicos formados no exterior precisam fazer para poder trabalhar no Brasil.
Se conseguir a pontuação necessária, seu plano é voltar ao Brasil até o final do ano.
“Por mais que a gente goste de morar aqui, para nós, que somos jovens, não temos o que projetar para o futuro. É tudo imprevisível”, lamenta Amanda.
Leonardo Souza, de 44 anos, é outro brasileiro que está de malas prontas, depois de viver 15 anos na Argentina.
Ele pretende deixar o país mesmo tendo apartamento próprio e um salário que considera bom para os padrões argentinos.
Leonardo trabalha no departamento financeiro de uma empresa, já pediu transferência e está só esperando para saber onde vai morar agora com a mulher e as duas filhas.
Ele conta que o valor do plano de saúde para a família toda quadruplicou desde que Milei assumiu.
Os alimentos também encareceram bastante. Um litro de leite, que custava R$ 2,50 em dezembro, agora sai por R$ 7,50, conta Leonardo.
“A Argentina está inviável. Com R$ 4 mil, você conseguia viver bem antes, hoje não consegue mais”, diz ele.
“Buenos Aires está mais ou menos como seria o custo de Rio de Janeiro e São Paulo. Acredito que esteja até mais cara.”
Transformação drástica na economia
Desde a posse de Javier Milei, em dezembro de 2023, a Argentina tem vivenciado um período de transformação econômica.
Autodeclarado libertário, Milei chegou ao poder prometendo cortar drasticamente os gastos públicos, desregular a economia e privatizar empresas estatais.
Suas propostas também incluíam o fechamento do Banco Central, a redução de impostos e a eliminação das indenizações por demissão.
Antes de Milei assumir, a Argentina enfrentava uma forte recessão. O governo anterior, liderado por Alberto Fernández, continuou com políticas de intervenção estatal, como subsídios para serviços essenciais e controle de preços.
No entanto, segundo especialistas, essas medidas não conseguiram conter a inflação crescente e a deterioração econômica, agravadas pela pandemia de covid-19, que trouxe desafios adicionais.
Ao assumir, o novo presidente implementou uma política de austeridade que fez a vida dos consumidores encarecer expressivamente.
Por outro lado, Milei obteve o primeiro superávit orçamentário desde 2008 no primeiro trimestre de 2024, como parte de sua meta de alcançar o "déficit zero" até o final do ano.
Embora o superávit represente um avanço significativo, a inflação ainda é uma preocupação constante.
Os dados mais recentes mostram que a inflação na Argentina ficou em 4,6% em junho de 2024, conforme o Índice de Preços ao Consumidor (IPC) divulgado pelo Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec), no início do mês de julho.
O resultado quebrou uma sequência de cinco meses seguidos de desaceleração. Em maio, a inflação ficou em 4,2%.
Em termos anuais, os preços aumentaram 271,5% nos últimos 12 meses.
Embora tenha havido uma desaceleração em relação aos 25,5% de inflação registrados em dezembro de 2023, a taxa permanece alta, com 79,8% acumulados no primeiro semestre deste ano.
Com a hiperinflação que atinge a Argentina, o consumidor perde a noção dos preços de forma rápida, explica o economista Alberto Ajzental, da FGV.
Apesar dessas mudanças, a queda nas taxas de inflação ainda não se reflete em uma diminuição dos preços de serviços públicos, transporte e alimentos, de acordo com brasileiros que vivem no país.
Contudo, segundo os especialistas, isso já era esperado, porque os preços praticados antes no país não eram “reais” devido às políticas praticadas pelo governo anterior.
“A economia ainda vai demorar um ano para mais até estabilizar”, destaca Roberto Dumas, professor de economia do Insper.
“Os preços de antes não refletiam a realidade, mas agora tendem a estabilizar. Não é que o preço vai cair, mas significa que vai aumentar menos.”
Nova vida no Paraguai
O Paraguai, país com a terceira maior comunidade de brasileiros no exterior, segundo o Itamaraty, foi a escolha de vários dos brasileiros ouvidos pela reportagem que decidiram deixar a Argentina.
Desirée Pacheco, de 29 anos, se mudou para lá com seu companheiro em junho deste ano.
Vivendo agora na cidade de Santa Rita, eles dizem que sentiram uma melhora na qualidade significativa nos gastos mensais e na qualidade de vida.
As compras de supermercado e outras despesas ficaram mais baratas no Paraguai e, mesmo pagando um pouco mais de aluguel do que em La Rioja, no interior da Argentina, onde o casal vivia, ela diz que, no fim, a troca compensou.
“Eu não tinha muito luxo e eu estava no interior. Mas, quando o Milei assumiu, as coisas começaram a ficar mais caras, e o câmbio começou a não acompanhar a subida do preço”, diz Desirée.
A decisão de mudar veio depois que a conta de luz deixou de ser subsidiada pelo governo, a faculdade passou a aumentar todo mês e o aluguel, a cada seis meses — em ambos os casos, os reajustes eram antes anuais.
Desirée conta que seus custos mais do que dobraram em três meses. Ela afirma que a incerteza de não saber se ia dar para continuar pagando as contas e o preconceito contra brasileiros a levaram a mudar.
“Eu costumo dizer que não estava pagando com dinheiro, estava pagando com a minha saúde mental”, diz Desirée.
“Os professores na Argentina eram preconceituosos, tinha episódios de xenofobia. Eu tinha a documentação toda, estava legal no país, mas mesmo assim não contratavam.”
Agora, ela e o marido complementam a renda fazendo trabalhos extras enquanto seguem com os estudos no Paraguai.
A estudante Thaís Rabelo, de 29 anos, também conseguiu aumentar sua renda ao se mudar para Santa Rita, no Paraguai.
“Eu tinha toda documentação para trabalhar na Argentina, mas não compensava”, diz Thaís.
“Para fazer esses tipos de trabalho de atendente, de caixa, mas ganha-se mal. Você vai perder seu horário de estudo ali e não vai conseguir pagar nem metade da faculdade.”
Ela trocou o apartamento pequeno em que vivia em La Rioja, na Argentina, por uma casa grande com quintal no Paraguai, pela qual ela e seu companheiro pagam cerca de 40% a menos de aluguel.
Thais conta que a faculdade de medicina sai um pouco mais cara, mas que, no final das contas, a vida ficou mais confortável porque consegue trabalhar.
Ela diz que também sentiu uma melhora no convívio com as pessoas no seu dia a dia.
“Falam dessa rixa entre Argentina e Brasil, e tem mesmo. A gente pôde sentir na pele ser estrangeiro lá”, diz Thais.
“Aqui, onde estamos agora, tem uma comunidade grande de brasileiros e todos são bem receptivos com a gente.”
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