Um novo escândalo no Reino Unido levanta suspeitas sobre a resposta das instituições eclesiásticas aos casos de padres acusados de abuso sexual de menores.
Desta vez, o alvo é a Igreja Anglicana. Uma investigação da BBC revelou que a instituição pagou R$ 1,6 milhão, em um acordo financeiro, para um religioso considerado um risco potencial para crianças e jovens.
O cônego Andrew Hindley — que trabalhou na diocese de Blackburn, na Inglaterra, de 1991 a 2021 — foi alvo de cinco investigações policiais, inclusive sobre denúncias de agressão sexual.
Ele nunca foi acusado de nenhum crime, e diz que nunca apresentou qualquer risco à segurança de ninguém.
Um alto membro da equipe da Catedral de Blackburn renunciou por causa do acordo — e disse que as preocupações em relação ao padre eram "um segredo conhecido" entre o alto clero.
O ex-bispo de Blackburn Julian Henderson descreveu o acordo financeiro quando estava no cargo como a "única opção" que restava à Igreja "para proteger as crianças e os jovens vulneráveis ??do risco que o cônego Hindley representava".
Os arcebispos de Canterbury e York disseram à BBC que "ainda estão trabalhando" para adequar os procedimentos da Igreja — e "precisam aprender" com os erros do passado.
Embora várias pessoas abordadas pela BBC não estivessem dispostas a falar, a investigação de dois anos também descobriu que:
- As restrições a Hindley, proibido de frequentar o coral e visitar escolas, nunca foram monitoradas;
- O arcebispo de Canterbury, Justin Welby, apoiou um plano para fechar a Catedral de Blackburn se o padre voltasse ao trabalho após a suspensão;
- Três bispos de Lancashire reclamaram que "pauzinhos foram mexidos, e redes foram usadas para efetivar o ministério contínuo do cônego Hindley".
- Houve tentativas anteriores de pagar o padre para sair, que remontam a mais de 15 anos.
O acordo
Em 2022, Hindley recebeu uma oferta de £ 240 mil (cerca de R$ 1,6 milhão), segundo a investigação da BBC. Não sabemos o valor final pago porque as partes assinaram acordos de confidencialidade, mantendo a quantia em sigilo.
A Igreja Anglicana disse que o acordo era para resolver uma ação judicial movida pelo padre em resposta a uma decisão anterior da Igreja de forçá-lo a se aposentar.
Mas a BBC teve acesso a evidências de que a Igreja tentou várias vezes ao longo dos anos pagar para Hindley sair.
Foi o "momento decisivo" para Rowena Pailing, que renunciou ao cargo de vice-decana e chefe de salvaguarda da catedral, encerrando uma carreira de quase 20 anos na Igreja Anglicana.
"Eu não podia trabalhar para uma organização que coloca sua própria reputação e a proteção de supostos abusadores acima da proteção, do cuidado e da escuta de vítimas e sobreviventes", afirmou ela à BBC, falando publicamente pela primeira vez sobre o caso.
A mensagem que este pagamento envia às vítimas e sobreviventes é "absolutamente terrível... Fiquei arrasada".
Pailing diz que quando ofereceram o emprego a ela em 2018, foi alertada sobre "sérias preocupações e alegações de salvaguarda" em relação a um sacerdote, abrangendo "um longo período de cerca de 25 anos".
Mas, segundo ela, garantiram que havia um plano para lidar com a situação. Depois que ela assumiu o cargo, "ficou bem claro que não havia um plano" — e ela rapidamente percebeu que a Igreja Anglicana estava guardando um segredo que era conhecido.
Ela relembra um evento no Palácio de Lambeth, residência oficial do arcebispo de Canterbury:
"Havia um bispo de outra diocese que se referiu ao cônego em questão pelo nome, e perguntou se ele ainda estava fazendo seus velhos truques".
Documentos internos da Igreja Anglicana, aos quais a BBC teve acesso, mostram que havia preocupações há anos a respeito da Catedral de Blackburn.
Em 2009, uma inspeção na catedral concluiu que Hindley "podia ??representar uma ameaça aos jovens" e para o nome da catedral.
Ao longo dos anos, a polícia de Lancashire abriu cinco investigações contra Hindley:
- 1991: foi acusado de manter relação sexual com um garoto de 17 anos, quando a idade de consentimento para homens gays era 21 anos.
- 2000: acusado de manter relação sexual com um garoto de 15 anos, quando a idade de consentimento era 16 anos.
Ambas as investigações foram encerradas depois que as supostas vítimas e o religioso negaram as acusações.
A polícia não tomou nenhuma ação adicional em três outras investigações. Hindley negou as acusações em cada uma delas:
- 2001: foi acusado de agredir sexualmente um adolescente três anos antes. Um relatório posterior encomendado pela Igreja mostrou que Hindley havia sido acusado de dar álcool à suposta vítima, encorajá-la a assistir pornografia e tocar seus órgãos genitais.
- 2006: acusado de fazer comentários para um garoto de 15 anos.
- 2018: acusado de cometer agressões sexuais em uma festa no jardim da catedral.
A polícia de Lancashire diz que avaliou todas as informações disponíveis, e "onde havia evidências disponíveis, investigações foram realizadas e consultas foram feitas ao Crown Prosecution Service (o Ministério Público britânico)", mas que "isso não resultou em nenhuma acusação".
Além das investigações policiais, os líderes da igreja, que têm o dever de cuidar dos fiéis e dos funcionários, encomendaram várias avaliações de risco de especialistas para saber se Hindley representava um risco à segurança.
A falha reiterada em tomar uma atitude definitiva em relação às descobertas destas avaliações de risco e outros alertas está no centro da investigação da BBC.
A Catedral suspendeu Hindley pelo menos duas vezes, e o proibiu de frequentar o coral, grupos de jovens e fazer visitas escolares. Mas, de acordo com um documento ao qual a BBC teve acesso, "as restrições nunca foram monitoradas".
'Sacerdote de Teflon'
Por anos, ele permaneceu como sacristão canônico, planejando cultos e gerenciando os sacristãos e serventes, enquanto morava em uma residência da catedral.
Uma análise das modalidades de residência da catedral, de 2020, revelou que os colegas o apelidaram de "Teflon" (material antiaderente), sugerindo que reclamações ou acusações contra ele nunca seriam aceitas.
Hindley alega que foi submetido a uma campanha para expulsá-lo da igreja "que foi motivada pela homofobia e interesses pessoais". Segundo ele, "a Igreja permitiu que seus procedimentos de salvaguarda fossem sequestrados, transformados em armas e utilizados indevidamente".
Também em 2020, um relatório de um psicólogo clínico concluiu que havia um "risco baixo a moderado de comportamento sexual inapropriado futuro", e que o risco aumentava se Hindley passasse "períodos prolongados de tempo sozinho na companhia de jovens do sexo masculino".
Esta foi a última de uma série de avaliações de risco.
Treze anos antes, a instituição beneficente infantil NSPCC havia dito que Hindley apresentava "um risco de dano significativo a crianças e jovens", e aconselhou que ele "não deveria ter contato sem supervisão com crianças ou jovens".
Também recomendou que ele participasse de um programa para criminosos sexuais, e que seu risco fosse reavaliado — e se ele não cooperasse, a Igreja deveria pensar em encerrar seu vínculo empregatício com a instituição.
O sacerdote contestou as conclusões.
Em 2007, uma análise que ele encomendou a um pesquisador da área de serviço social indicou que "seria difícil sustentar um argumento de comportamento predatório direcionado", mas reconheceu que Hindley precisava "de apoio para desenvolver limites em relação ao trabalho com crianças".
Um juiz também fez algumas críticas ao relatório da NSPCC, enquanto analisava um processo não relacionado com o caso. Referindo-se às críticas, Hindley disse à BBC que o juiz concluiu que os autores do relatório não haviam entendido adequadamente seu papel e competência, e pareciam "equiparar a homossexualidade a um risco de abuso pedófilo".
Em 2017, Hindley recebeu uma oferta de emprego em outra diocese — mas ela foi retirada após uma avaliação de risco encontrar "riscos significativos de salvaguarda". Ele permaneceu no cargo em Blackburn.
Falta de atitude
O especialista em proteção infantil Ian Elliott diz que a investigação da BBC revela uma falha clara em tomar uma atitude com base nas informações apresentadas por profissionais experientes que haviam alertado sobre o potencial de danos significativos.
"Quando você encomenda uma avaliação de risco, você faz isso por um motivo", diz Elliott, que realiza análises de salvaguarda de instituições religiosas em todo o mundo.
"Não acho que a Igreja Anglicana seja segura."
Como forma de destituir Hindley, o conselho do colegiado da catedral votou em janeiro de 2021 para aposentá-lo por motivos de saúde, usando uma lei sem jurisprudência de 1949. Mas ele entrou com uma ação na Suprema Corte pedindo a revisão judicial desta decisão.
A catedral deu início então aos processos legais para retirá-lo da residência eclesiástica, aos quais ele também se opôs.
Esta resistência pode explicar por que os líderes da igreja não tomaram uma atitude antes. Documentos internos mostram que eles já haviam cogitado demitir Hindley, mas estavam preocupados com ações judiciais.
Ele era um dos poucos clérigos que ocupavam o que é chamado de cargo permanente, que foi abolido para novos sacerdotes em 2007, e que desfruta de mais proteção do que um funcionário regular.
Rowena Pailing diz que para o alto clero e a equipe jurídica da Igreja, "o medo que sempre foi mencionado, era o medo de litígio".
A diocese de Blackburn afirmou à BBC que, antes da aposentadoria forçada, "explorou todas as opções" para destituir Hindley, mas a única maneira de isso ter acontecido era se uma denúncia contra ele tivesse sido confirmada em um tribunal interno da igreja.
Foram feitas várias tentativas de levar as denúncias aos tribunais, mas todas tiveram permissão negada para prosseguir.
Se as alegações tiverem pelo menos um ano, é necessária a permissão de um juiz designado pela Igreja para que possam ser apresentadas perante um tribunal. Várias denúncias contra Hindley tiveram permissão negada por esses juízes, incluindo duas em 2020.
Isso levou Pailing e outros altos funcionários da catedral a escrever aos arcebispos de Canterbury e York manifestando sua "profunda preocupação", e pedindo que interviessem.
A Igreja Anglicana disse à BBC que "não havia como eles [os arcebispos] intervirem legalmente" em "uma decisão judicial tomada por um juiz independente".
Hindley afirma que sempre que seu caso foi analisado objetivamente por um juiz independente, ele "sempre foi exonerado".
Ele alega que as "falsas alegações infinitamente recicladas" eram todas parte de uma campanha homofóbica contra ele.
Hindley era um padre assumidamente gay em uma catedral que algumas pessoas com quem conversamos descrevem como "conservadora".
Mas conversamos com ex-colegas que acreditam que ele usou parte da homofobia que sofreu para desviar os questionamentos sobre seu próprio comportamento.
Suposta vítima foi orientada a 'seguir em frente'
Uma parente próxima de uma das supostas vítimas de Hindley disse que a Igreja estava com medo de tomar uma atitude.
Ela não quis ser identificada, e preferiu não falar sobre as acusações de seu parente contra Hindley.
Joan (nome fictício) contou que quando seu parente fez uma denúncia de conduta sexual imprópria contra o sacerdote, "a primeira reação pareceu ser de medo de assumir a situação".
"Esse medo parecia girar em torno da possibilidade de a Igreja ser derrubada por isso."
Ela se lembra de uma carta de um ex-bispo de Blackburn aconselhando a família "a seguir em frente".
"Achei que era algo bastante ofensivo para nos dizer. Era como varrer a sujeira para debaixo do tapete."
Segundo ela, a família se sentiu "completamente consternada" por sua denúncia nunca ter sido nem sequer contemplada.
"Não sabemos qual teria sido o resultado. Mas ninguém tentou."
Vazamento para a imprensa
Em 2020, um ano após ser alertado pela primeira vez sobre as preocupações em relação a Hindley, o arcebispo Welby tentou intervir.
Andrew Graystone, defensor de sobreviventes de abuso na Igreja Anglicana, diz que foi chamado por um membro do alto clero da Catedral de Blackburn.
"O arcebispo [de Canterbury] havia dito a eles que os advogados da Igreja não seriam capazes de resolver isso, e o próprio arcebispo sugeriu que uma maneira de afastar esse clérigo seria, efetivamente, vazar a história para a imprensa", diz ele.
A BBC pediu à Igreja Anglicana que comentasse a sugestão de vazar para a imprensa, mas não obteve resposta.
Por fim, a ideia foi descartada. Mas os líderes da Igreja tomariam medidas ainda mais drásticas — enquanto Hindley pressionava para voltar ao trabalho, após ter sido suspenso enquanto aguardava a investigação policial sobre as denúncias de agressão sexual na festa no jardim da catedral.
Em julho de 2021, o então bispo de Blackburn, Julian Henderson, escreveu a Hindley dizendo que o teria demitido se pudesse, após a avaliação de risco final ter considerado "o risco de comportamento sexual inapropriado para outros como baixo a moderado".
"Isso nunca deveria ser dito de um clérigo em Ordens Sagradas", afirmou Henderson, fazendo uma ameaça inesperada — se Hindley voltasse a trabalhar, ele estava “preparado para fechar o ministério da Catedral”, com o consentimento do decano e dos arcebispos de Canterbury e York.
Ian Elliott diz que fechar uma catedral "para que você possa marginalizar alguém contra quem denúncias de abuso foram feitas é terrível e ridículo".
"E se você não consegue enxergar isso, então existe um problema."
Henderson afirmou à BBC que não havia como Hindley ser autorizado a voltar à catedral, e se ele não pudesse ser impedido de retornar, então a única opção, embora drástica, era fechar o ministério da catedral.
"Era o último recurso disponível que nos restava."
A BBC também teve acesso a uma carta de maio de 2020 assinada por todos os três bispos de Lancashire, reclamando aos arcebispos que "pauzinhos foram mexidos, e redes foram usadas para efetivar o ministério contínuo de Hindley".
Quando perguntamos a que isso se referia, Henderson nos disse que era "quase impossível entender" como uma denúncia contra Hindley não havia chegado ao tribunal eclesiástico.
"Portanto, era natural se perguntar se outros fatores sobre os quais não sabíamos nada estavam em jogo."
Por fim, a solução da Igreja para se livrar de Hindley foi dispensá-lo por motivos de saúde, seguido de um acordo financeiro.
O caso "destacado na BBC hoje é complicado e muito difícil para todos os envolvidos", diz.
Mas a BBC encontrou evidências de várias tentativas anteriores de pagar o sacerdote para deixar o ministério, que remontam pelo menos a 2008. Em uma ocasião fracassada, "a quantia oferecida foi considerada muito baixa" por Hindley, de acordo com um documento da Igreja ao qual a BBC teve acesso.
"Este indivíduo recebeu uma quantia em dinheiro da Igreja para se aposentar do cargo e, para todos os efeitos, não foi responsabilizado de forma alguma", diz Elliott.
Em conversa com a BBC, o atual bispo de Blackburn, Philip North, afirmou: "Não acho que ninguém possa ficar muito feliz com a maneira como esta situação foi resolvida".
Ele não ocupava o cargo atual na época do acordo, e não disse se era normal um sacerdote ser pago após se aposentar em tais circunstâncias.
"O que realmente importa é o aprendizado a partir deste caso, e as medidas que devemos tomar como Igreja para estarmos mais seguros no futuro", declarou.
No centro disso tudo, estão as avaliações de risco.
A Igreja Anglicana afirmou que está revisando atualmente os regulamentos e orientações para isso.
"Os padres podem ter uma avaliação de risco que possa indicar um nível de risco" — e "os poderes de um bispo diocesano são limitados", explica o bispo.
"Agora, para mim, esta é uma área de fragilidade significativa."
"Quando uma avaliação de risco indica que um sacerdote representa um risco, devemos ser capazes de tomar uma atitude."
Em declaração conjunta com Peter Howell-Jones, decano da Catedral de Blackburn, ele disse que a Igreja precisa ouvir "mais atentamente do que nunca" os sobreviventes de abuso "para garantir que a Igreja agora, e no futuro, não seja impedida por seus próprios processos de agir rápida e adequadamente em questões sérias de salvaguarda. Só assim esta pode ser realmente uma Igreja segura para todos".
Mas Rowena Pailing, que agora está se adaptando à vida fora do ministério, observa: "Os bispos têm muito poder, e se eles querem fazer algo, eles conseguem fazer".
"[Então] eu acho que, no caso de muitos desses altos clérigos, quando eles dizem que não poderiam fazer isso, o que isso significa é que eles não foram corajosos o suficiente para fazer."
"Eles tiveram 25 anos para resolver isso. Francamente, se você nunca começar o processo de mudança, é claro que nunca vai acontecer."
*Reportagem adicional de Kirstie Brewer e Fergus Hewison.
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