A seleção feminina que trouxe a prata para o Brasil neste sábado (10/8), nos Jogos Olímpicos de Paris 2024, reúne três gerações muito diferentes de jogadoras.
A geração de Gabi Portilho, de 29 anos, faz a ligação entre a geração mais nova, de Aline Gomes, de 19 anos, com a mais antiga, de Marta, de 38 anos.
Em 2023, quando substituiu a melhor jogadora do mundo na final da copa Finalíssima (disputa entre as seleções vencedoras da Copa América e do Campeonato Europeu femininos), Gabi disse em uma entrevista que ainda não tinha encontrado Marta pessoalmente — e que queria muito conhecê-la.
Em 2024, as duas já jogavam juntas e trouxeram a prata para o Brasil em um ano em que as expectativas para futebol na Olimpíada eram muito baixas.
"Não existe uma jogadora das novas gerações que não tenha sonhado em conhecer a Marta, se inspirado nela", afirma Renata Mendonça, comentarista de futebol do SporTV e um das fundadoras do site Dibradoras.
"Jogar com ela é jogar com uma entidade."
Marta representa um geração feminina do futebol que teve que lutar por tudo, explica Mendonça.
Não havia sequer um campeonato feminino permanente quando Marta saiu do interior do Alagoas, aos 13 anos, com o sonho de jogar futebol, em 1990.
No ano seguinte, aos 14 anos, ela já jogava pelo Vasco da Gama — mas a situação das meninas era muito diferente daquela dos meninos nas categorias de base masculinas.
"Não havia estrutura, não havia um campeonato consistente, as jogadoras sequer tinham um contrato de trabalho permanente", explica Mendonça.
Marta chegou aonde chegou — escolhida seis vezes melhor jogadora do mundo e maior artilheira da seleção brasileira (incluindo a masculina) — através de seu talento. Mas, para desenvolver o futebol no país, é preciso mais do que isso.
"Para a geração da Marta, os resultados eram na base do talento, mas só o talento hoje não dá conta. É preciso ter investimento em preparo físico, estrutura, condições de trabalho", afirma Mendonça.
Marta e outras jogadoras de sua geração lutaram muito pra conquistar esse espaço.
Na geração seguinte, de Gabi Portilho, o futebol feminino já estava muito mais desenvolvido.
"Hoje temos o mínimo: liga, campeonato recorrente com premiação, clubes com times femininos, pagamento igual na seleção brasileira", afirma Mendonça.
"São conquistas que a Marta e as outras da sua geração lutaram muito pra ter, e agora, como ainda estão jogando, elas também conseguem desfrutar."
Já Gabi Portilho é símbolo da geração seguinte a essa geração desbravadora, a primeira geração que percorreu um caminho um pouco mais pavimentado.
"Para a nova geração de meninas, o sonho de jogar futebol profissional já é uma possibilidade, é um sonho possível", diz Mendonça.
O fato de Gabi jogar em um time brasileiro, o Corinthians, é um grande exemplo dessas mudanças, afirma a comentarista.
Na geração anterior, as mulheres que queriam viver de jogar futebol precisavam ir para fora pois a maioria dos clubes no Brasil sequer tinha um time feminino.
Marta, por exemplo, construiu grande parte de sua carreira no Umeå IK, da Suécia, e hoje joga no Orlando Pride, nos EUA.
Pressão social
Além dos resultados obtidos por jogadoras talentosas apesar de todas as dificuldades, a estruturação da modalidade feminina do futebol no Brasil também é resultado de uma mudança na sociedade e uma grande pressão social no país nos últimos anos, aponta Mendonça.
"Um momento muito simbólico desse questionamento do por que não estamos olhando para o futebol feminino é aquela foto que viralizou de um garoto com uma camisa do Neymar com o nome riscado e escrito 'Marta', em 2016, quando o time masculino estava indo mal na Olimpíada e o feminino estava indo muito bem", lembra Mendonça.
Ela afirma que mudanças mais amplas na sociedade geraram uma grande pressão social sobre os clubes e entidades esportivas que os obrigaram a agir.
"Houve uma aumento do interesse, da visibilidade, e com isso vem o interesse das marcas em patrocinar", diz a comentarista. "Mas são conquistas muito recentes, o campeonato feminino só começou a passar na televisão aberta a partir de 2019."
Embora a geração de Gabi Portilho já tenha um mínimo de estrutura, ela ainda enfrenta muitas batalhas por equidade no futebol feminino no Brasil.
"Sempre tentaram impedir as mulheres de jogar no Brasil. E hoje o desenvolvimento do futebol feminino ainda esbarra no preconceito dos dirigentes", afirma Mendonça.
"Quando a Conmebol [Confederação Sul-Americana de Futebol] passou a exigir equipes femininas para os clubes que queiram disputar campeonatos regionais, alguns times reclamaram de mais uma exigência, da obrigação de ter um time feminino, dizendo 'daqui a pouco vão exigir que tenhamos equipe de natação', mas é muito diferente", diz Mendonça.
"Para criar equipes de outros esportes, você precisa de estrutura, mas para ter a modalidade feminina do futebol você só precisa ceder espaço na agenda para o uso dessa estrutura gigantesca que os times já têm, que já existe."
O que ainda falta é os clubes e dirigentes tratarem o futebol feminino como um negócio, e não como uma obrigação, diz ela, como fazem países como Espanha e Inglaterra.
"E quando se trata de um negócio, precisa de planejamento, precisa de tempo até dar resultado, então é possível se houver planejamento. Não é de um dia para o outro", diz Mendonça.
Momentos de destaque na performance das jogadoras brasileiras são essenciais para ampliar essa discussão e trazer visibilidade para o futebol feminino, diz Mendonça.
A prata conquistada em Paris é um desses momentos.
As expectativas para a seleção eram muito baixas por causa do desempenho fraco na última Copa do Mundo — quando o Brasil foi eliminado ainda na primeira fase do campeonato —, o que fez a ida do time para a final olímpica ser ainda mais comemorada.
"Se não fosse essa prata, talvez a gente só voltasse a falar mais de futebol feminino muito próximo da Copa de 2017, que vai ser no Brasil, o que vai ser muito importante", afirma Mendonça.
"E para termos um bom desempenho, precisamos começar a nos preparar já, precisamos investir desde já."
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