RELAÇÕES EXTERIORES

EUA dependem do Brasil e aliados para achar uma saída para Venezuela, diz ex-embaixador Shannon

Ex-embaixador dos EUA no Brasil, Thomas Shannon, diz que a crise na Venezuela é transfronteirça e seus reflexos podem ocorrer nas áreas econômica, social e até política dos Estados Unidos.

Opositores a Maduro durante protesto no dia 3 de agosto em Caracas -  (crédito:  Fausto Torrealba/Reuters)
Opositores a Maduro durante protesto no dia 3 de agosto em Caracas - (crédito: Fausto Torrealba/Reuters)

A Venezuela vive uma escalada de tensão enquanto opositores e parte da comunidade internacional cobram que o Conselho Nacional Eleitoral (CNE), composto por uma maioria próxima ao governo, apresente as atas das urnas da eleição do mês passado. Segundo os dados oficiais, Nicolás Maduro foi reeleito em 28 de julho.

A oposição — representada eleitoralmente por Edmundo González Urrutia, mas cuja liderança mais popular é María Corina Machado — afirma ter contabilizado mais de 80% das atas, e que seus resultados apontam para a vitória de González, com 67% dos votos.

Com base nessa contagem paralela, González exige ser declarado presidente da Venezuela.

Enquanto isso, Maduro enviou a Força Nacional às ruas para reprimir as manifestações que, desde o dia 29 de julho, ocorrem em Caracas e em outras cidades venezuelanas.

Segundo informou o governo, mais de duas mil pessoas já foram detidas em ações que a oposição classifica como arbitrárias.

A crise no país latino-americano tem impacto transfronteiriço. As consequências dos movimentos do xadrez venezuelano podem afetar economicamente, socialmente e até politicamente países de toda a América.

Por isso, os países estão agindo. Brasil, México e Colômbia, que não reconheceram a vitória de Maduro, cobram as atas ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) venezuelano enquanto tentam liderar uma possível mediação entre governistas e oposição. Já um grupo liderado pela Argentina rejeitou os resultados e não tem mais laços formais com Caracas.

Na tarde da quinta-feira (8/8), os países emitiram um segundo comunicado conjunto a respeito da crise.

Após uma reunião virtual entre os ministros das Relações Exteriores dos três governos, a nota afirma que os países "consideram fundamental a apresentação pelo Conselho Nacional Eleitoral da Venezuela (CNE) dos resultados das eleições presidenciais de 28 de julho de 2024 desagregados por mesa de votação".

O texto prossegue afirmando que "as soluções da situação atual devem surgir da Venezuela".

"Nesse sentido, [os ministros] reiteram sua disposição de apoiar os esforços de diálogo e busca de entendimentos que contribuam à estabilidade política e à democracia no país."

A imagem mostra uma multidão em torno de um pequeno caminhão de som com algumas pessoas em cima e uma delas com um microfone na mão.
Fausto Torrealba/Reuters
Opositores a Maduro durante protesto no dia 3 de agosto em Caracas

Mais ao norte, os Estados Unidos, que instituíram sanções econômicas à Venezuela que podem ser afrouxadas ou incrementadas de acordo com o desenrolar da situação, pisam em ovos em pleno ano eleitoral.

O presidente democrata Joe Biden telefonou para Luiz Inácio Lula da Silva e os dois países também pediram em conjunto o detalhamento do voto dos venezuelanos.

Dias depois e após alguns ruídos, os EUA explicitaram seu posicionamento: disseram reconhecer a vitória da oposição, mas não afirmaram que González será tratado como presidente.

A nuance tem importância porque, na análise do ex-embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Thomas Shannon, Washington não quer, de novo, apoiar um presidente oposicionista autodeclarado que, na prática, não tem e nem terá poder.

Isso já aconteceu em 2019, quando o líder da oposição, Juan Guiadó, se autodeclarou presidente após a dissolução dos poderes da Assembleia pelo chavismo, mas não teve poder para governar ou decidir. Na época, não só os EUA, mas a União Europeia e o Brasil, então sob Jair Bolsonaro, reconheceram Guaidó.

"Os Estados Unidos preferem encontrar outra saída para esta crise. Por isso dependem do que Brasil, Colômbia e México consigam fazer", disse Shannon em entrevista à BBC News Brasil.

Ocupante do mais alto posto diplomático dos EUA para a América Latina na administração Barack Obama, Shannon avalia que haverá muita cautela de Washington na hora de aprovar possíveis novas sanções a Caracas.

O motivo, segundo ele, é que as sanções aplicadas ainda no governo de Donald Trump não atingiram seu objetivo, ou seja, não retiraram Maduro do poder. Além disso, a penúria econômica teve reflexos na onda migratória venezuelana que se espraiou pela região, inclusive pelos EUA.

"A Venezuela desempenhará um papel muito importante, não tanto nas eleições presidenciais, mas nas eleições para a Câmara dos Representantes [em novembro deste ano]", diz ele, que também foi conselheiro político na Embaixada dos Estados Unidos em Caracas entre 1996 e 1999, deixando o país no primeiro ano de Hugo Chávez na presidência.

Confira a seguir os principais pontos da entrevista de Shannon, que conversou com a reportagem por videoconferência no escritório de advocacia Arnold & Porter, em Washington, onde trabalha.

BBC News Brasil - Como o senhor vê a situação da Venezuela agora? Maduro está reprimindo os protestos, enquanto a oposição não dá sinais de que aceitará a vitória declarada pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNE). O que esperar? E no que a situação de agora se difere de outras crises no passado?

Thomas Shannon - Acho que a principal diferença, a essa altura, é a própria eleição. E também o fato de a oposição ter participado nestas eleições, o que deu uma oportunidade ao povo venezuelano de dizer o que pensa. E, com base nas provas de que todos dispomos, é bastante claro que o povo venezuelano escolheu o candidato da oposição, por cerca de dois [votos para Edmundo González] para um [voto para Nicolás Maduro]. Isso cria um ambiente político muito diferente para o governo, para o presidente Maduro e para a oposição.

BBC - O Brasil, juntamente com a Colômbia e o México, está tentando ser um mediador nesta crise. Mas qual é a influência que o Brasil realmente pode exercer agora? E como o senhor avalia essa estratégia?

Shannon - Creio que o Brasil tem uma influência considerável na Venezuela, tal como a Colômbia e o México, devido à liderança do presidente Lula, do presidente [Gustavo] Petro e do presidente [Antonio Manoel] López Obrador, que estão tentando usar a sua credibilidade e a relação que construíram ao longo do tempo com o governo venezuelano para encontrar uma saída para um impasse que, neste momento, parece quase insolúvel.

BBC - Os Estados Unidos publicaram uma nota reconhecendo a vitória de González ao mesmo tempo em que Biden apoia Lula pedindo a divulgação das atas. Como a campanha eleitoral e seu calendário podem impactar os caminhos da Casa Branca nesta questão ?

Shannon - Os comentários do secretário [Antony] Blinken à imprensa tinham dois objetivos. Reconhecer uma realidade, que é o fato de todas as provas, como referi, indicarem que Edmundo González ganhou as eleições. Mas o segundo ponto tem a ver com a política interna dos Estados Unidos. Porque a Venezuela vai se tornar um problema. Quer dizer, já é um problema. E desempenhará um papel muito importante, não tanto nas eleições presidenciais, mas nas eleições para a Câmara dos Representantes [em novembro deste ano].

Os democratas estão buscando uma forma de reconquistar a Câmara dos Representantes e por isso não querem ser retratados pelos republicanos como sendo brandos com alguém como o presidente Maduro, que em primeiro lugar, roubou as eleições. E, em segundo lugar, está ocupado reprimindo as pessoas que estão protestando contra essa eleição roubada.

Dito isto, os Estados Unidos têm mantido uma comunicação muito estreita com o Brasil, a Colômbia e o México. Os EUA apóiam o que o Brasil, a Colômbia e o México estão tentando fazer, que é, em primeiro lugar, convencer os venezuelanos a divulgarem os seus boletins de voto. E isso eles nunca farão, porque vai mostrar o que já sabemos: que o presidente Maduro perdeu as eleições.

BBC - O senhor acha que as atas de votação nunca serão apresentadas?

Shannon - Não. A razão pela qual pediram ao Supremo Tribunal para resolver esta questão é porque não querem que o CNE resolva a questão. Mas vale a pena registrar que o porta-voz do Departamento de Estado [dos EUA] veio a público e acrescentou um comentário adicional ao que o secretário Blinken tinha dito.

Ele afirmou que os Estados Unidos não reconhecem Edmundo González como presidente da Venezuela, em primeiro lugar, porque a posse do presidente não vai acontecer até o ano que vem [será em janeiro de 2025]. Mas, em segundo lugar, o governo dos Estados Unidos não quer voltar a cair em uma experiência semelhante, quando os EUA declararam Juan Guaidó presidente [em janeiro de 2019] e depois ficaram limitados a apoiar um presidente que não tinha autoridade para governar e nem poder.

Agora, os Estados Unidos preferem encontrar outra saída para esta crise. Por isso dependem do que o Brasil, a Colômbia e o México consigam fazer.

A imagem mostra três pessoas no primeiro plano, uma delas utilizando uma grande máscara de Nicolás Maduro, com bigode e cabelo curto preto.
Ronald Pena R/EPA
Militante usa máscara em apoio a Nicolas Máduro Em Caracas

BBC - O senhor acredita que novas sanções dos EUA sobre a Venezuela estariam sobre a mesa agora?

Shannon - Provavelmente, mas dependerá muito dos níveis de violência em Caracas. Mas se houver sanções, acredito que o governo dos EUA será muito cuidadoso na forma como elas serão aplicadas. Acho que uma das lições aprendidas com a campanha de pressão máxima da administração [Donald] Trump é que a dureza das sanções, em primeiro lugar, não atingiu seu objetivo. Em outras palavras, não foram capazes de expulsar Maduro do poder. Também não romperam a relação entre Maduro e as forças armadas.

Em segundo lugar, causaram um sofrimento realmente significativo na população venezuelana e aceleraram a migração que já estava ocorrendo. Essa aceleração ocorreu de uma forma que prejudicou os nossos parceiros na região, como Colômbia, Equador, Peru, Brasil, Chile e Panamá.

Ao mesmo tempo, criou uma espécie de crise para os Estados Unidos na nossa fronteira sudoeste, porque os venezuelanos começaram a imigrar para os Estados Unidos. Se houver uma segunda onda de imigração, os venezuelanos não vão perder seu tempo indo para países da América do Sul. Virão diretamente para os Estados Unidos.

BBC - Publicamente, o Brasil e os Estados Unidos parecem ter adotado abordagens diferentes, em relação à crise, já que os EUA reconhecem a vitória de González, enquanto o Brasil, não. Ao mesmo tempo, Biden se referiu a Lula como uma espécie de líder regional nessa questão. O senhor vê alguma coordenação acontecendo?

Shannon - Eu não faço parte disso, mas com certeza há muita coordenação ocorrendo, muita comunicação entre os dois países. E, como sabem, o Brasil, a Colômbia e o México decidiram adotar uma linha de ação que atribui a si próprios a responsabilidade de colocar um fim à crise venezuelana.

E houve uma oportunidade, na reunião do Conselho Permanente da OEA na semana passada, de envolver a OEA nesta questão e tentar construir uma abordagem hemisférica, mas o Brasil e a Colômbia se abstiveram na votação desta resolução e o México sequer participou. E a resolução não foi bem sucedida.

Eu entendo por que eles escolheram se abster. Compreendo por que é que o México optou por não ir para a OEA. E compreendo que considerem que a OEA foi uma plataforma inadequada para resolver esta questão.

Mas como foram eles que efetivamente acabaram com a possibilidade de um papel da OEA, pelo menos na negociação de um fim para o conflito, eles assumiram a responsabilidade de fazê-lo. E isso é corajoso, mas também é desafiador.

BBC - E quais são as consequências para o Brasil de incitar a essa via de diálogo quando Maduro não dá sinais de estar aberto à negociação, nem de apresentar as atas?

Shannon - Antes de mais nada, acho que o Brasil está agindo de boa fé. Em segundo lugar, o Brasil deixou claro que não tem qualquer intenção de fazer aquilo a que nós, em inglês, chamamos de whitewashing [acobertar] a fraude conduzida pelo CNE. Ou seja, o Brasil não vai participar dessa fraude.

E, talvez o mais importante, eu não creio que o Brasil queira participar da repressão nas ruas. Por isso, penso que vão trabalhar arduamente para tentar encontrar uma forma de iniciar as negociações entre o governo de Nicolás Maduro e a oposição sobre o resultado das eleições.

E onde é que essas negociações vão dar, eu não sei. Mas acho que é importante compreender que, apesar de o Brasil, a Colômbia e o México terem assumido essa responsabilidade, e apesar de terem se empenhado e tentado encontrar uma forma de resolver esta crise política e limitar a violência que poderia resultar da crise, a responsabilidade final pelo resultado é do governo do presidente Maduro. Não é dos mediadores.

E acho que há duas coisas que têm de ser claramente entendidas aqui, e acredito que o Brasil compreende isso. Em primeiro lugar, a responsabilidade final cabe ao governo do presidente Maduro. E, em segundo lugar, isto é mais do que uma mera negociação entre a oposição e o governo. Porque o novo ator aqui é o povo venezuelano.

São os milhões de venezuelanos que foram votar na esperança de que a sua voz fosse ouvida e que pudessem escolher o seu governo.

Por isso, todas as partes envolvidas, os Estados Unidos, o Brasil, a Colômbia, o México e todos os outros países da região, mas não só da região, têm de compreender que, no fim das contas, o povo venezuelano é o ator soberano. E precisa ser respeitado.

BBC - Como seria uma transição política na Venezuela? Quem ou quais grupos seriam capazes de realizá-la?

Shannon - Penso que se trata de uma solução internacional e, ao mesmo tempo, nacional. Quer dizer, há uma saída para isto, mas requer criatividade, requer alguma paciência e requer muito trabalho árduo.

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BBC
Marina Rossi - Da BBC News Brasil em São Paulo
postado em 09/08/2024 06:44 / atualizado em 09/08/2024 10:54
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