Tarja das olimpiadas
OLIMPIADAS 2024

Como Zé Roberto Guimarães pode se tornar único brasileiro tetracampeão olímpico

Após sucesso com seleção masculina em 1992, em Barcelona, o técnico brasileiro venceu o ouro olímpico com a seleção feminina em outras duas Olimpíadas.

Primeiro campeonato olímpico mudou o patamar do vôlei brasileiro -  (crédito: ARQUIVO PESSOAL)
Primeiro campeonato olímpico mudou o patamar do vôlei brasileiro - (crédito: ARQUIVO PESSOAL)

Caso suba ao pódio na Olimpíada de Paris 2024, José Roberto Guimarães pode se tornar o único brasileiro tetracampeão olímpico e o primeiro treinador tetracampeão olímpico da história.

Em seu currículo, o técnico carrega três medalhas de ouro olímpicas: uma com a seleção masculina, em 1992, e outras duas com o time feminino (2008 e 2012).

Com a seleção feminina, Zé Roberto, como é mais conhecido, conquistou ainda uma prata nos Jogos de Tóquio em 2021, após derrota para os Estados Unidos na final da competição.

Com 70 anos completados no último dia 31 de julho, o técnico chegou a anunciar que se aposentaria após os Jogos de Tóquio, mas voltou atrás.

"Enquanto eu tiver essa energia e gostar de ensinar e de estar em quadra, essa é a minha vida. Com todas as lutas, vamos continuar, vamos embora", disse então.

Ele prosseguiu, renovou parcialmente o time, trouxe a central Thaisa Daher de volta, após ela sofrer uma séria lesão e ficar de fora dos Jogos de Tóquio, contando com grande apoio do técnico para voltar a jogar.

Agora, Zé Roberto chega à sua nona Olimpíada – em 1976, participou como jogador, e em 1992, 1996, 2004, 2008, 2012, 2016 e 2021, como técnico – com a possibilidade de levar a equipe feminina à segunda final olímpica consecutiva.

O último obstáculo para esse feito é a semifinal desta quinta-feira (8/8), quando o time feminino enfrenta novamente os Estados Unidos que tiraram o ouro do peito brasileiro em 2021.

Se for vitoriosa, a seleção enfrenta Turquia ou Itália na grande final, no domingo.

Agora, Zé Roberto, único brasileiro tricampeão olímpico e responsável por levar o Brasil à elite do vôlei mundial, pode mais uma vez fazer história.

De jogador a técnico da seleção

Nascido em Quintana, no interior de São Paulo, Zé Roberto começou a carreira como jogador de vôlei. Foi exceção na família — seu pai e um dos irmãos foram jogadores de futebol.

"Eu não queria saber de jogar vôlei. Eu gostava mesmo era de futebol", lembrou em entrevista ao site da Confederação Brasileira de Vôlei (CBV).

Mas ele começou a frequentar os treinos de vôlei de uma namorada da escola, e um amigo que viu ele dando alguns toques na bola sugeriu que fizesse um teste para um time de Santo André (SP), onde morava.

Zé Roberto agradou o técnico Lázaro de Azevedo Pinto e, um mês depois, já estava em quadra no primeiro jogo.

"Esse cara foi quem me ensinou a amar o esporte. Ele me colocou debaixo do braço e saiu comigo pelo mundo, me dando força, me ajudando. Eu não fazia a menor ideia de que eu tinha talento para o vôlei."

Talento que rendeu uma convocação para a seleção paulista, depois para a seleção brasileira juvenil até chegar à seleção adulta.

Ele disputou a primeira Olimpíada como atleta, em Montreal, em 1976. Era o levantador, responsável por armar as jogadas. A equipe ficou em sétimo lugar.

Zé Roberto parou de jogar depois de 21 anos, mas continuou no esporte. Em 1988, foi trabalhar como assistente do técnico Bebeto de Freitas na seleção masculina.

Bebeto tinha conquistado quatro anos antes, em Los Angeles, a primeira medalha olímpica do vôlei brasileiro, uma prata.

"Ele me inspirou muito. Esteva à frente do seu tempo. A intensidade, vontade, determinação. Crie, inove, faça coisas diferentes. Não copie. Ele dizia. Sistema defensivo, bloqueio, como ser ofensivo, como trabalhar com os jogadores, como cobrar. Ensinamentos que eu carrego até hoje", disse Zé Roberto ao Globo Esporte.

Bebeto, que morreu em 2018, deixou a seleção após romper com Carlos Nuzman, então presidente da CBV. Aos 38 anos, Zé Roberto foi escolhido para comandar uma equipe tão jovem quanto ele.

Assumiu em 1992, ano dos Jogos de Barcelona, quando o vôlei brasileiro conquistou sob seu comando o primeiro título olímpico da história.

Uma 'revolução' no vôlei brasileiro

Foi uma campanha quase perfeita. O Brasil terminou os oito jogos invicto e perdeu só três sets em toda a competição.

Marcelo Negrão, responsável pelo ponto de saque que fechou a partida final contra a Holanda, explica que Zé Roberto deu continuidade ao trabalho de Bebeto de Freitas, mas que uma decisão do novo técnico foi chave para o campeonato olímpico.

"Ele fez uma grande mudança", disse o jogador à BBC News Brasil. Negrão era até então o oposto, que é normalmente o principal atacante de um time e costuma cortar a partir das extremidades da rede ou saltando do fundo da quadra.

Zé Roberto propôs que ele passasse à posição de central, que é mais responsável pelo bloqueio e, quando ataca, faz isso do meio da rede.

Negrão assumiu a posição, mas cortava tanto pelas pontas da rede quanto pelo meio. Acabou eleito o melhor atacante e o melhor jogador daquela edição.

"O Zé quis surpreender os adversários e aproveitou que eu sabia jogar em outras posições. Foi uma sacada muito inteligente", disse Negrão.

Zé Roberto com jogadores da equipe campeã de 1992
ARQUIVO PESSOAL
Primeiro campeonato olímpico mudou o patamar do vôlei brasileiro

A mudança também tornou o time mais agressivo, porque tinha quatro atacantes de ponta em quadra em vez de três — entre eles, Giovane Gávio, hoje técnico da seleção masculina sub-21.

"O Zé criou um novo modelo de jogo em 1992. Quando ele optou por quatro atacantes no time, me deu uma oportunidade única. Aquilo mudou minha vida", disse Giovane à BBC News Brasil.

O título em Barcelona transformou a seleção masculina de vôlei em uma sensação e vários de seus jogadores, em celebridades.

"Foi uma revolução, a gente não conseguia andar na rua, parecia que a gente era os Beatles", lembra Negrão.

Aquele título também colocou o Brasil em outro patamar no vôlei — e o vôlei, em outro patamar no Brasil.

"O ouro era o que faltava para o esporte vingar, ter patrocinador, ser transmitido na TV, ter campeonato forte. O vôlei explodiu", diz Negrão.

"Quando o Zé se encontra com a gente, ele sempre agradece muito, mas a gente diz que nós é que temos que agradecer. Afinal, ele é que é o Mister Olimpíada."

Um recomeço difícil

Zé Roberto permaneceu com a seleção masculina por mais um ciclo olímpico, mas, depois do quinto lugar em Atlanta 1996, ele deixou a equipe.

Ele voltou à seleção em 2003, mas, desta vez, a feminina. Assumiu após o conturbado comando de Marco Aurélio Motta, que gerou uma crise com as jogadoras.

A seleção feminina vinha de dois bronzes consecutivos, em Atlanta e Sydney, mas não voltou ao pódio em Atenas 2004, a primeira Olimpíada de Zé Roberto com a equipe.

O Brasil chegou como favorito à competição, mas caiu na semifinal contra a Rússia, em uma partida traumática.

Quando tinha uma vantagem de dois sets a um, o Brasil chegou a estar a um ponto de fechar a partida, mas tomou a virada no quarto set e perdeu o quinto. Na disputa pelo bronze, perdeu para Cuba e ficou em quarto.

"Foi muito difícil. A gente demorou muito para superar", disse a jogadora Fofão, levantadora reserva da equipe na época, à BBC News Brasil.

"O Zé ficou muito mal depois, no canto dele, isolado, pensativo, refletindo, tentando entender o que aconteceu, porque foi um momento em que tudo poderia dar certo e deu tudo errado."

Fofão acredita que a partir dali houve uma mudança na filosofia do técnico da seleção.

Ela conta que, quando aceitou o convite dele para seguir na equipe, como titular, encontrou um Zé Roberto diferente.

"Foi como se 2004 tivesse servido de lição. Ele tinha confiado muito nas titulares, não usou todo o time, eu mesma fui muito pouco utilizada. Ele mudou, tanto no comportamento quanto nas palavras, e passou a dar mais importância para o grupo, a valorizar todo mundo", disse Fofão.

O bicampeonato olímpico

Hoje técnica da seleção feminina sub-17, Fofão foi a capitã do time que conquistou em Pequim 2008 o primeiro título olímpico do vôlei feminino do Brasil de forma irrepreensível.

A equipe perdeu um único set e só na final, contra os Estados Unidos. Foi a terceira medalha olímpica de Fofão — ela tem dois bronzes — e a consagração da sua carreira.

"Eu não teria a história que tive se não fosse pelo olhar diferente que o Zé teve comigo", disse a jogadora, que era atacante e virou levantadora depois que o técnico a viu atuar de forma improvisada na posição em uma partida.

"Ele veio meio que na brincadeira e disse: 'Jogou direitinho, hein?'. Devo ter feito algo que ele gostou. Mas eu demorei para aceitar. Não foi de primeira não."

Fofão sabia bem como Zé Roberto costuma ser calmo, mas exigente com seus times, especialmente com seus levantadores, porque ele próprio jogava nessa posição.

É comum nos pedidos de tempo que ele puxe a levantadora de lado para falar só com ela enquanto o assistente orienta o resto da equipe.

"Uma das coisas que aprendi com ele foi a raciocinar o jogo, que é algo que quase nenhum técnico ensina. Por ter sido levantador, ele tem uma visão de jogo diferente."

Mas foi fora de quadra que a líbero Fabi Alvim acredita que a seleção brasileira teve seu momento mais marcante na campanha do primeiro campeonato olímpico.

Foi na véspera da final, quando Zé Roberto chamou todas as jogadoras para uma conversa.

"Ele tinha vivido por muito tempo com as consequências daquela derrota em Atenas e disse: 'Chegou a hora de eu resgatar a minha identidade. Quero voltar a ser inteiro e quero pedir a ajuda de vocês para fazer isso'", contou Fabi, que ganhou duas vezes o ouro olímpico ao lado de Zé Roberto.

Quatro anos depois, em Londres 2012, uma outra conversa sincera do técnico com suas jogadoras reverteu o que se encaminhava para ser mais uma decepção na trajetória da seleção — e culminou no segundo título olímpico.

A equipe começou mal e perdeu dois dos três primeiros jogos. Thaisa Daher, bicampeã olímpica com Zé Roberto, diz que uma reunião convocada pelo técnico mudou o rumo do campeonato.

"Fizemos um círculo, e ele falou o quanto confiava em cada uma de nós, falou da qualidade de uma por uma, e depois cada uma falou um pouco. Ali, ele se abriu pra equipe, e a gente se sentiu abraçada. Foi a virada de chave para tudo fluir como deveria", contou Thaisa.

O Brasil saiu da fase de grupos em quarto e cruzou mais uma vez nas quartas-de-final com a Rússia, que tinha sido a melhor colocada do outro grupo.

A partida contra as russas foi mais uma vez decidida em cinco sets, mas agora a favor do Brasil. A seleção venceu o Japão na semifinal e ganhou mais uma vez dos Estados Unidos na decisão.

Decepção em casa

Foi uma das cenas mais marcantes — e tristes — do Brasil na Rio 2016.

Após sair invicta da fase classificatória, a seleção brasileira feminina de vôlei, uma das favoritas, perdeu nas quartas-de-final para a China — que venceria o torneio.

Zé Roberto tentava assimilar aquele resultado depois da partida, sentado em um dos bancos ao lado da quadra, visivelmente abatido pela eliminação em casa.

De repente, seu neto Felipe saiu correndo da arquibancada no Maracanãzinho, enrolado na bandeira brasileira, e abraçou forte o avô.

O técnico abraçou o menino e o consolou: "Chora não, chora não…"

"A derrota se tornou mais difícil por causa disso. Quando ele chegou chorando ali, lógico que o coração aperta mais. Mas o avô precisa ficar firme", disse ele em entrevista coletiva depois do jogo.

"Eu expliquei para ele que isso faz parte da vida, que um dia a gente ganha, um dia a gente perde. O outro time foi melhor, ele tinha que aprender isso, e que a gente precisa treinar mais para ganhar."

Futuro em aberto

Thaisa foi uma das jogadoras que estava na seleção que foi eliminada diante da China no Maracanãzinho.

"Doeu tanto no Zé quanto na gente. Todos nós sofremos muito, porque a gente sabia que podia ir além", diz a jogadora.

Ela acredita que a decisão do técnico de continuar com a equipe é reflexo "da mentalidade de um campeão".

"O Zé é muito persistente", concorda Fofão. "Sempre achei que ele ia continuar na seleção para tentar reverter aquela situação — e reverteu."

Agora, em Paris 2024, o Brasil chega à semifinal mais uma vez e novamente invicto.

A seleção feminina chegou um tanto mordida a essa Olimpíada, após fazer uma campanha excelente na Liga das Nações (VNL, na sigla em inglês) e perder a semifinal para o Japão e o bronze para a Polônia – a VNL é o único título que Zé Roberto não ganhou; ganhou o Grand Prix, versão anterior da VNL, mas depois que o campeonato mudou de nome e formato, não ganhou.

Para chegar à semifinal olímpica, o Brasil derrotou Japão e Polônia na fase classificatória e agora enfrenta os EUA, numa revanche da última final olímpica, em que o Brasil ficou com a prata.

A campanha até agora é irretocável, não perderam nenhum set. Se vencer nesta quinta-feira, a seleção terá ido à forra contra três algozes de uma só vez.

Elas terão ao lado delas um técnico tricampeão olímpico, e Zé Roberto já mostrou mais de uma vez que ele pode fazer a diferença.

Reportagem originalmente publicada em agosto de 2021 e atualizada com informações dos Jogos Olímpicos de Paris 2024.

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BBC
Rafael Barifouse - Da BBC News Brasil em São Paulo
postado em 08/08/2024 05:28 / atualizado em 08/08/2024 11:11
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