Aborto, assunto debatido abertamente na campanha eleitoral norte-americana e priorizado pela pré-candidata democrata Kamala Harris, é tratado em outro patamar no Brasil, cujo tema é tabu e visto como um risco político para quem fizer uma manifestação mais ousada na adoção de políticas nesse sentido. O Correio ouviu especialistas, ativistas e uma parlamentar sobre o assunto e buscou comparar como o tema é tratado no país. Em junho, a Câmara dos Deputados esteve prestes a votar um projeto que equipara a mulher que aborta a uma criminosa.
Nos Estados Unidos, uma postulante a ocupar a Casa Branca trata o assunto sem rodeios e numa posição não punitiva e acolhedora. Uma das idealizadoras da campanha Nem presa nem morta por aborto, Laura Molinari lembra que o aborto, até a decisão recente da Suprema Corte norte-americana, foi um direito assegurado por quase 50 anos. “Foram 50 anos que permitiram os estados a desenvolverem políticas públicas de saúde e de cuidados de atenção ao abortamento”, observa. “Esse período permitiu que a sociedade civil e a academia produzissem informações para tratar o aborto não num lugar permeado por estigma e tabu, como ocorre no Brasil, onde a criminalização e a restrição são realidades”, acrescenta.
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No Brasil, a Câmara dos Deputados chegou a pautar proposta do deputado e pastor Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) que equiparou a homicídio uma mulher fazer um aborto após a 22ª semana de gravidez. A pressão da sociedade, contudo, barrou a votação do texto. Pesquisas entre a população demonstraram discordância da maioria com esse projeto do parlamentar fluminense. Molinari diz que nos Estados Unidos e no Brasil há estratégias semelhantes contrárias ao aborto. E cita como exemplo aprovação de leis estaduais. “No Texas, tem a lei que obriga a gestante a ouvir o batiamento cardíaco do feto antes de realizar um aborto legal. No Brasil, em Goiás, foi aprovada uma lei nesse sentido. Ou seja, existem propostas políticas dos grupos antiabortos, lá e aqui, muito parecidas”, acredita.
Filiada ao PSol, a deputada Samia Bomfim (SP) vê uma orquestração da direita com reflexos no Brasil. “Não à toa, negar o direito ao aborto, ou retroceder nas poucas exceções à proibição no Brasil, é parte central das bandeiras da extrema-direita em nosso país. Sem dúvida estão embalados no avanço dos conservadores norte-americanos sobre o tema”, observa a parlamentar.
Para a deputada, a discussão do tema vai avançar muito na campanha eleitoral norte-americana. “A compreensão do aborto como direito nos EUA é muito mais avançada que no Brasil. Acredito que Kamala aposte nesse tema como um elemento de forte mobilização nacional das mulheres e como um tema democrático de amplo respaldo”, afirmou Bomfim ao Correio.
“Já no Brasil, a proibição faz o tema ser tabu. A maioria dos políticos tem receio de abordar o tema, pela pressão de lideranças religiosas. Acredito que o PL 1.904 (que equipara quem aborta a homicida) tenha evidenciado que há uma maioria social que é contra retroceder nos casos previstos em lei, mas o aborto legal irrestrito ainda é um tema tabu que lutamos para fazer avançar”, completou a parlamentar.
Para Jolúzia Batista, articuladora política do Cfêmea (Centro Feminista de Estudo e Assessoria), Kamala Harris trata da questão do aborto com “certo conforto e desenvoltura” e disposta a fazer esse debate de forma franca. E diz que, no Brasil, a própria esquerda, teoricamente mais avançada que a direita para levar adiante o debate, se esquiva.
“No Brasil, é um debate político que a esquerda se recusa a fazer ou protagonizar. E, sempre que aparece no processo eleitoral, ou a esquerda tenta ir pela tangente ou jogar o assunto para debaixo do tapete. Ou acaba respondendo a provocações de candidaturas que vem do campo conservador, de extrema-direita, fundamentalista e reacionário. Mas o Brasil vive um momento interessante de dar uma virada, vide exemplo da derrubada do projeto que criminaliza quem aborta”, afirmou Jolúzia Batista.
Referência no tema, a antropóloga Debora Diniz, professora da Universidade de Brasília (UnB), concorda que há dificuldade no debate eleitoral sobre o aborto no Brasil e falou como esse assunto é abordado nos Estados Unidos, também envolto na questão religiosa.
“Nos Estados Unidos, a questão da justiça reprodutiva, dos direitos reprodutivos e do aborto vêm sendo uma tentativa recente de uma colonização, de uma apropriação da política anglicana, sobretudo na Suprema Corte. E a história da política não tinha tão fortemente, ao menos na questão do aborto, um atravessamento religioso, um atravessamento evangélico. E, agora, o renascimento católico que os Estados Unidos estão vivendo”, afirma Debora Diniz.
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