O partido ultraconservador Reagrupamento Nacional (RN), de Marine Le Pen e do candidato a premiê Jordan Bardella, é o grande derrotado do segundo turno das eleições legislativas francesas. De forma surpreendente, o cordão sanitário montado para impedir o avanço da ultradireita funcionou: a coalizão Nova Frente Popular (NFP) — formada pelos partidos da esquerda e pelos Verdes — obteve o maior número de assentos na Assembleia Nacional (Parlamento): 182 de um total de 577. A aliança de centro-direita Juntos, do presidente Emmanuel Macron, fez 163 cadeiras. O RN e aliados terão 143 deputados e não poderão oficializar Bardella como primeiro-ministro.
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Como ninguém conquistou a maioria absoluta do Parlamento (289 assentos), Macron precisará negociar a formação do novo governo com o NFP e a França Insubmissa (LFI), partido de esquerda radical de Jean-Luc Mélenchon. Especialistas preveem duras tratativas, à medida que o próprio Macron descartou ter Mélenchon como premiê por considerá-lo tão radical quanto Bardella. A estratégia de Macron de se unir à NFP e concentrar o voto no candidato com mais chances de derrotar o RN em cada circunscrição eleitoral pôs fim às pretensões ultradireitistas.
Uma das eleições mais tensas da história também foi marcada pelo maior índice de comparecimento às urnas desde 1997: 67,5% dos franceses aptos a votar participaram do processo democrático. Menos de uma hora e meia depois do fechamento das seções eleitorais, o premiê Gabriel Attal fez um discurso nas escadarias do Hôtel Matignon, a residência oficial do chefe de governo. "Nesta noite, nenhuma maioria absoluta pode ser liderada pelos extremos. Ser primeiro-ministro é a honra da minha vida. Fiel à tradição republicana e de acordo com meus princípios, amanhã pela manhã apresentarei minha renúncia ao presidente da República", anunciou.
Mélenchon celebrou a vitória histórica da esquerda e defendeu que a NFP deve "governar", mas sem iniciar negociações com a coalizão de Macron. "Nosso povo rejeitou, claramente, o pior cenário possível", disse. "O presidente da República deve nomear um primeiro-ministro da Nova Frente Popular. Então, será responsabilidade dos nossos adversários não tornar a França ingovernável", acrescentou. De acordo com o líder esquerdista, a "França deve ser a nova França, aquela que vira a página do machismo, do racismo, da islamofobia, do antissemitismo e do ódio a qualquer religião".
Marine Le Pen reconheceu a derrota, mas comemorou o desempenho do Reagrupamento Nacional. "Nós dobramos o nosso número de deputados. Temos demasiada experiência para eu ficar desiludida com um resultado em que duplicamos a bancada no Parlamento", lembrou. "A maré está subindo. Não subiu o suficiente desta vez, mas continua subindo. Nossa vitória foi apenas adiada." Por sua vez, Bardella denunciou a "aliança de desonra" entre Macron e Mélenchon, que "atira a França nos braços da extrema esquerda". "Mais do que nunca, o Reagrupamento Nacional encarna a única alternativa. Nada poderá deter um povo que recuperou a esperança."
Tratativas
O ministro do Interior, Gérald Darmanin, após reeleger-se como deputado, advertiu que "ninguém pode dizer quem ganhou a eleição"e recomendou ao governo que abra negociações com o partido de direita Os Republicanos (LR), que obteve 45 assentos. Caso o RN ganhasse maioria absoluta, formaria o primeiro governo de extrema direita na França desde a libertação da Alemanha nazista, durante a Segunda Guerra Mundial. Enquanto a votação ocorria, o papa Francisco fazia uma advertência contra as "tentações ideológicas e populistas", sem mencionar nenhum país.
Para Alberto Alemanno, professor de direito da União Europeia na Escola de Altos Estudos Comerciais de Paris (HEC Paris), os resultados das urnas provam que a decisão de Macron de convocar eleições antecipadas não foi uma aposta, mas uma escolha estratégica. "Como o seu governo de minoria estava prestes a perder apoio político, enquanto enfrentava uma extrema direita em ascensão, ele decidiu acelerar o processo como o melhor antídoto contra sua plena realização. Os resultados deste domingo provam que ele estava certo", afirmou ao Correio, por e-mail. Apesar das incertezas que permeiam a formação do próximo governo, o estudioso entende que o partido político de Macron permanecerá na cena política, depois de revelar uma força inescapável no processo eleitoral. "Não era exatamente isso que o presidente procurava com a sua atitude inesperada?", questionou.
Impasse
Alemanno prevê "meses de impasse político". "O cenário mais provável é uma fragmentação da esquerda, com as partes mais moderadas dos socialistas e dos Verdes formando um governo com a aliança de Macron", opinou. Ele reconhece um crescimento da esquerda e um desempenho aquém das expectativas da extrema direita. "A ideia de unir a esquerda e o centro para combater a direita funcionou melhor do que se esperava", disse.
Cientista político do Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, em Paris, Jean-Yves Camus descarta qualquer possibilidade de o Reagrupamento Nacional compor o novo governo. "Eles não têm nenhum aliado. No entanto, podem esperar um fracasso do próximo governo e depositar confiança em uma vitória de Marine Le Pen em 2027, quando Macron não será capaz de buscar um terceiro mandato", explicou à reportagem. Camus acha importante averiguar se Macron poderá reunir uma maioria ao seu redor. "Se ele conseguir fazê-lo, emergirá como um bom estrategista."
Em visita a Paris, Mabel Berezin — diretora do Instituto de Estudos Europeus da Universidade Cornell (EUA) — avalia que os próximos desdobramentos da política francesa dependerão da habilidade de Mélenchon de convencer o eleitorado de que ele é a melhor opção como premiê. "Por enquanto, é bastante improvável que a extrema direita nomeie um primeiro-ministro ou um presidente. Ela seguirá como uma força política, mas será difícil vê-la ir mais longe do que isso. Para mim, a eleição deste domingo parece o fim da estrada para o Reagrupamento Nacional", disse ao Correio.
VOZES DOS ESPECIALISTAS
"A França está entrando em uma nova era com o rearranjo do sistema partidário ao longo do eixo convencional esquerda-direita. Paradoxalmente, o homem que quebrou este eixo o traz de volta. Duas alternativas ao macronismo estão postas à mesa: a extrema direita, do Reagrupamento Nacional, ou uma esquerda vitoriosa, mas em grande parte desunida."
Alberto Alemanno, professor de direito da União Europeia na Escola de Altos Estudos Comerciais de Paris (HEC Paris)
"O resultado das eleições é uma enorme surpresa. O Reagrupamento Nacional é o derrotado, pois carece de militantes de base capazes de convencer os eleitores entre os dois turnos. Também porque o partido mostrava-se muito confiante na vitória. Mélenchon não é aceitável como o próximo premiê, por ser extremista. Macron terá que trabalhar com os social-democratas e com a direita moderada."
Jean-Yves Camus, cientista político do Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, em Paris
"A França terá que travar algumas negociações difíceis. O resultado deste domingo não foi o pior. Ele mostrou que a esquerda foi capaz de se mobilizar. No fim, isso é algo bom. Haverá poder de barganha."
Mabel Berezin, diretora do Instituto de Estudos Europeus da Universidade Cornell (EUA)