A imensa maioria dos argentinos não o conheceu. E as pessoas que chegaram a presenciar seu lendário surgimento e ainda vivem têm hoje mais de 80 anos.
No entanto, meio século após sua morte, o ex-presidente da Argentina Juan Domingo Perón (1895-1974) continua sendo uma das referências políticas mais populares do país.
O movimento fundado por Perón em 1945 – o peronismo – fez com que ele fosse o único presidente argentino eleito três vezes, dominando o cenário político do país desde então.
O peronismo manteve sua influência até mesmo durante as quase duas décadas em que esteve proscrito – e também nas poucas vezes em que um líder não peronista chegou ao poder na Argentina durante o período democrático, como é o caso atual.
O economista outsider Javier Milei surpreendeu ao vencer o candidato peronista Sergio Massa, nas eleições presidenciais de novembro de 2023. Mas, mesmo com a relevância adquirida pelo atual presidente, a força do peronismo certamente continua mantendo sua mão firme sobre as rédeas do poder.
A maioria detida pela bancada peronista na Câmara dos Deputados e no Senado argentino explica por que o presidente Milei levou mais de seis meses para aprovar sua primeira lei, o que só ocorreu no último dia 28 de junho. E também justifica por que a chamada Lei de Bases acabou sendo uma versão muito diluída da proposta original do governo libertário.
Mas a teia do Partido Justicialista (PJ, o nome formal do partido peronista) se estende para muito além do Legislativo. Apesar da sua derrota nas eleições presidenciais, o partido governa um terço das províncias e a maioria das prefeituras do país.
E não é só ali que reside o seu poder. O peronismo também está nas bases do movimento sindical, que detém muita força na Argentina desde seu surgimento no país.
Não existe passeata ou protesto na Argentina – um país onde dificilmente se passa um dia sem que haja passeatas ou protestos – que não seja dominado por cartazes, cantos e discursos com menções ou alusões a Perón e à sua famosa segunda esposa, Eva Duarte, ou Evita (1919-1952), o principal símbolo do peronismo.
O peronismo é tão presente no dia a dia dos argentinos que é difícil encontrar alguém que se sinta alheio à sua influência, seja para o bem ou para o mal.
Para cada peronista, existe um antiperonista (apelidado localmente de "gorila"). E esta divisão se mantém até hoje, 50 anos depois da morte do "General".
A base do seu poder
Mas por que a figura de Perón se mantém até hoje com tanta relevância?
Segundo a historiadora especializada em peronismo María del Mar Solis Carnicer, da Universidade Nacional do Nordeste (UNNE), na Argentina, Perón conseguiu gerar a "adesão emocional" de uma parte massiva do eleitorado – que, até então, havia sido ignorada. Com isso, segundo ela, ele provocou um nível de veneração que transcendeu gerações.
Da mesma forma que Milei, o ex-militar surgiu de fora do mundo político e criou sua própria base de apoio.
Perón se aproximou do poder pela primeira vez ao participar do primeiro golpe de Estado ocorrido na Argentina, em 1930. Mas foi um segundo levante, em 1943, que o levou a ocupar seu primeiro cargo político, como chefe do Departamento Nacional do Trabalho.
A partir daí, a ascensão de Perón foi meteórica.
Em apenas seis meses, foi nomeado secretário do Trabalho e Previdência, acumulando posteriormente os cargos de ministro da Guerra e, por fim, vice-presidente do país.
Segundo Solis Carnicer, foi seu primeiro trabalho público que permitiu a Perón estabelecer sua popularidade.
"Ele foi construindo seu espaço de poder a partir do Departamento do Trabalho, que, com ele, depois se transforma em secretaria", diz a historiadora. "É o lugar que irá impulsioná-lo e fazer com que ele fique conhecido. A partir dali, [Perón] começa a ter contato com os trabalhadores, que formarão sua base de sustentação."
Foram os trabalhadores – que Evita logo chamaria de "descamisados" – que se mobilizaram no dia 17 de outubro de 1945 para exigir sua libertação, quando o presidente de fato da Argentina, Edelmiro Farrell (1887-1980), preocupado com o poder acumulado por Perón, ordenou sua prisão.
Este evento passaria a ser comemorado como o Dia da Lealdade Peronista, celebrado até hoje. Ele marcou o início do peronismo como força política, embora Perón só tenha conseguido formar o seu partido (o PJ) posteriormente.
Nas eleições democráticas de 1946, Perón foi eleito presidente por quase 54% dos argentinos. Ele iniciava um período de dois mandatos consecutivos, que seria interrompido pelo terceiro golpe de Estado sofrido no país em 1955, chamado de "Revolução Libertadora".
A partir dali, o peronismo foi proibido, o que levou seu líder a se exilar por 18 anos.
Esse longo intervalo só chegaria ao fim em 1973, com o regresso triunfal de Perón à Argentina, com 78 anos. Ele cumpriria então um terceiro e último governo, interrompido pela sua morte depois de apenas oito meses de mandato.
Estado de bem-estar
Mas o que fez Perón para que seu legado perdurasse por tanto tempo, gerando idolatria e ódio entre os argentinos até hoje?
Segundo vários acadêmicos, sua principal política foi a "democratização do bem-estar".
"Perón ampliou os direitos dos trabalhadores, estabelecendo as férias remuneradas e o 13º salário, além de firmar contratos coletivos de trabalho com os sindicatos", diz Solis Carnicer.
"Ele estendeu a grande parte da população os direitos e benefícios que, até aquele momento, eram inatingíveis, já que apenas uma parcela muito pequena da sociedade tinha acesso a eles."
Ele garantiu, por exemplo, o pleno emprego, com a industrialização e a nacionalização de empresas privadas, criando mais empregos públicos.
Perón também redistribuiu a renda, ampliando o acesso à moradia e congelando os alugueis. Isso permitiu que os assalariados tivessem um valor excedente, que poderia ser empregado para que tivessem acesso a artigos como eletrodomésticos, segundo a historiadora.
"Os salários aumentaram muito durante a primeira presidência de Perón", afirma ela.
O Estado de bem-estar peronista também forneceu saúde e educação aos setores mais desfavorecidos da população.
Perón criou o Ministério da Saúde, que realizou campanhas de vacinação em massa contra epidemias, de forma gratuita.
Ele também ampliou o acesso à educação, decretando, em 1949, o ensino universitário gratuito, que permanece até hoje. Este sistema causou, há alguns meses, o maior protesto enfrentado pelo governo Milei, devido às denúncias das universidades públicas de que o Estado estaria reduzindo seu financiamento.
Em 1951, graças a uma lei impulsionada pelo peronismo, as mulheres puderam votar pela primeira vez, nas eleições que reelegeram Perón como presidente, com mais de 63% dos votos.
O antiperonismo
Enquanto gerações de argentinos comemoram até hoje e defendem seus direitos adquiridos, existe também uma grande parcela da população que acusa o peronismo de fazer clientelismo político, com medidas "populistas".
Segundo esta visão, a justiça social peronista, que levou à criação de um imenso Estado de bem-estar, deixou os cofres argentinos constantemente no vermelho. Isso gerou a emissão desenfreada de dinheiro e o endividamento do Estado.
Este seria o motivo das constantes crises de dívida sofridas pelo país e da forte inflação da Argentina, que é a mais alta do mundo.
"O conceito de justiça social é uma aberração – é roubar de alguém para dar ao outro", afirmou Milei.
Segundo Solis Carnicer, o antiperonismo não surgiu apenas entre as elites, que tiveram seus privilégios reduzidos, e os empresários prejudicados pelas suas políticas. Grande parte da oposição a Perón questionava seu estilo autoritário.
"Eles o consideravam um espécie de Mussolini e o peronismo, um fascismo crioulo", conta a historiadora. Ela se refere ao líder italiano que se aliou a Adolf Hitler durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
"Paralelamente ao desenvolvimento de uma política de ampliação de direitos sociais e políticos, Perón também foi construindo um culto ao líder – tanto da sua figura, quanto de Eva Perón – e fez com que seu partido se tornasse extremamente personalista."
"No peronismo, não havia como ter opiniões contrárias", diz Solis Carnicer. "O partido era absolutamente vertical e o que Perón dizia precisava ser feito. Não havia discussões internas."
Perón também não permitia divergências fora do peronismo.
"Ele perseguiu os opositores de outros partidos, prendendo dirigentes políticos por simplesmente criticá-lo", segundo a historiadora. "Ele também limitou o direito à liberdade de expressão, censurando a imprensa e expropriando meios de comunicação, como o jornal La Prensa."
Perón também foi criticado por práticas clientelistas, como o doutrinamento das crianças nas escolas e a repartição dos empregos públicos entre seus partidários.
São questionamentos que, décadas depois, continuaram sendo feitos aos governos peronistas que o sucederam.
Personagem único
Não há dúvida de que, além das suas políticas, um dos grandes motivos que levaram a figura de Perón a transcender tantos anos foi a sua enorme personalidade.
"Não houve na Argentina outro líder político com as características de Perón", afirma Solis Carnicer. "Houve líderes carismáticos, houve dirigentes com presença importante, mas não houve ninguém como ele."
Este magnetismo e o apego emocional que muitos argentinos ainda sentem por Perón explicam por que tantos dirigentes apelam à sua figura e às suas frases lendárias, nos seus atos políticos. A mais famosa de todas é: "Para um peronista, não existe nada melhor do que outro peronista."
O peronismo chegou a atrair políticos com ideias diametralmente opostas às do seu fundador. É o caso do ex-presidente Carlos Menem (1930-2021), que governou a Argentina entre 1989 e 1999 e ficou conhecido pelas suas políticas neoliberais.
"Perón teve tantos rostos e tantas facetas que qualquer pessoa pode encontrar nele o que estiver procurando", afirma a historiadora. Ela destaca que a principal característica de Perón foi o seu pragmatismo.
"É por isso que setores da mais extrema esquerda até a mais extrema direita conseguem conviver no peronismo."
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