Enquanto muitas pessoas na Somália se espremiam em casa e nas cafeterias na noite de um domingo de julho para assistir à final da Eurocopa, centenas de elegantes moradores da capital somali, Mogadíscio, se reuniam no Elite Hotel, à beira da praia, para outra competição: o concurso de Miss Somália.
A cerca de 1 km dali, um carro-bomba explodiu no lado de fora do restaurante Top Coffee, que estava repleto de torcedores de futebol. O incidente só enfatiza os imensos contrastes da vida naquele país africano.
Enquanto as participantes do concurso de beleza desfilavam no hotel, pelo menos cinco pessoas foram mortas e cerca de 20 ficaram feridas na explosão. O grupo militante islâmico al-Shabab, que controla grande parte da Somália há mais de 15 anos, assumiu a responsabilidade pelo ataque.
O concurso Miss Somália foi criado em 2021.
A criadora foi Hani Abdi Gas, em uma decisão considerada corajosa em um país culturalmente conservador, que enfrenta problemas com os militantes islâmicos.
A Somália é frequentemente mencionada no topo da lista dos piores países do mundo para ser mulher.
Gas foi criada no campo de refugiados de Dadaab, no Quênia, como centenas de milhares de outros cidadãos somalis que fugiram da guerra civil e da seca. Ela voltou ao seu país em 2020.
O concurso é sobre beleza, mas Gas afirma que sua inspiração foi promover as vozes das mulheres e retirá-las do isolamento. Para ela, o concurso "incentiva a unidade e o empoderamento".
Gas acredita que está na hora da Somália se unir ao resto do mundo, em relação aos concursos de beleza.
"Quero enaltecer as aspirações das mulheres de diversas origens, fortalecer sua confiança e dar a elas a possibilidade de mostrar a cultura somali para o mundo", diz ela.
O concurso deste ano representou mulheres com diferentes trajetórias. Uma das participantes, por exemplo, era policial.
Muitas pessoas na Somália acham revoltante a ideia de promover concursos de beleza. Alguns consideram que é uma afronta ao Islã e à cultura somali. E outros defendem que é mais uma forma de violência de gênero, que reduz as mulheres a objetos.
"Estou revoltado com a ideia de ver as nossas jovens concorrerem nesse concurso terrível", declarou Ahmed Abdi Halane, líder do seu clã. "Isso vai contra a nossa cultura e a nossa religião."
"Se uma menina vestir roupas justas e aparecer no palco, ela irá trazer vergonha para sua família e para o seu clã", afirma ele. "As mulheres devem ficar em casa e usar roupas modestas."
Algumas mulheres também se opõem aos concursos de beleza.
"É bom apoiar a juventude somali, mas não de forma conflitante com a nossa religião", declarou a estudante Sabrina, que não quis revelar seu sobrenome. "Não é apropriado para uma mulher aparecer em público sem cobrir o pescoço, como fizeram as concorrentes do Miss Somália."
Ao contrário dos mantos e véus com cores sóbrias usados por muitas mulheres somalis, as concorrentes ao título de Miss Somália usaram vestidos considerados justos e exuberantes.
Usando um longo vestido dourado com mangas que caíam até o chão, Aisha Ikow, de 24 anos, foi coroada Miss Somália.
Ela levou para casa um prêmio em dinheiro de US$ 1 mil (cerca de R$ 5,5 mil).
Ikow é estudante universitária e maquiadora. Ela representou o Estado do Sudoeste da Somália. As outras finalistas foram as vencedoras regionais da Jubalândia, no sul, e de Galmudug, no centro do país.
"Usarei esta oportunidade para combater o casamento infantil e promover a educação das meninas", declarou a vencedora. "O concurso homenageia a cultura e a beleza somali, e prepara um futuro brilhante para as mulheres."
Os seis jurados – cinco mulheres e um homem – tiveram dificuldade para escolher a vencedora.
O júri incluiu a criadora do concurso, Hani Abdi Gas, uma representante do Ministério da Juventude, e a Miss Somália 2022. Eles avaliaram a beleza física das concorrentes, seu desfile na passarela, suas roupas e como elas falavam em público.
Houve também uma votação online, aberta para o público. Cada pessoa pagava US$ 1 (cerca de R$ 5,50) para votar.
O dinheiro arrecadado será usado para cobrir os custos do evento em Mogadíscio e as viagens internacionais para os concursos Miss África, Miss Mundo e Miss Universo.
O concurso foi realizado à noite em um hotel de luxo com vista para o mar – um panorama muito distante da maioria das pessoas da Somália, especialmente as mulheres.
Quatro milhões de somalis – cerca de 25% da população – foram forçados a sair de suas casas e vivem em outros lugares do país. As Nações Unidas estimam que 70% a 80% dessas pessoas sejam mulheres.
Em 2024, pela primeira vez em três décadas, foram coletados dados suficientes para incluir a Somália no Índice de Desenvolvimento Humano da ONU. O país ficou em último lugar.
A Somália é o quarto pior país do mundo no Índice de Desigualdade de Gênero das Nações Unidas. Os grupos de assistência afirmam que 52% das mulheres do país já sofreram violência de gênero e cerca de 98% sofreram mutilação genital feminina.
Tradicionalmente, quando um homem comete um estupro, sua "punição" é se casar com a mulher de quem ele abusou sexualmente. O comportamento em relação ao estupro e outras formas de abuso contra as mulheres não foi muito alterada nos últimos anos.
Em 2013, uma mulher em Mogadíscio foi condenada a um ano de prisão, por denunciar ter sofrido estupro por membros das forças de segurança.
Na autodeclarada república da Somalilândia, líderes religiosos revogaram uma lei sobre abusos sexuais, quase imediatamente após a sua sanção em 2018. A versão revisada não protege as mulheres contra o casamento infantil, casamento forçado, estupro ou outras formas de abuso sexual.
Mas o fato de que o concurso de Miss Somália pôde ser realizado em Mogadíscio, ainda que a 1 km de distância de um ataque suicida, demonstra que o país está mudando em termos de comportamento e segurança.
Poucos anos atrás, seria impensável realizar ali um concurso de beleza, especialmente quando o al-Shabab controlava a capital.
A multidão só deixou o Elite Hotel nas primeiras horas da manhã. Eles não ouviram os sons do ataque no restaurante próximo, que foram abafados pelo ruído das ondas do Oceano Índico quebrando na praia.
* Kiin Hassan Fakat é repórter da Bilan Media, uma agência de notícias totalmente feminina da Somália.
Mary Harper é autora de dois livros sobre a Somália, incluindo "Everything You Have Told Me Is True" ("Tudo o que você me disse é verdade", em tradução livre), uma visão da vida sob o regime do al-Shabab.
- O que prega o grupo extremista islâmico suspeito de ataque que matou 76 pessoas na Somália
- As mulheres jovens dependentes de opioides em país africano
- O homem que sobreviveu a cinco atentados suicidas
Gostou da matéria? Escolha como acompanhar as principais notícias do Correio:
Dê a sua opinião! O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores pelo e-mail sredat.df@dabr.com.br