Nunca antes na história dos Estados Unidos um candidato desistiu da disputa pela Casa Branca faltando tão pouco tempo para a eleição. A 107 dias da votação, Joe Biden deixa a corrida presidencial de forma melancólica. Praticamente sem apoio dos principais nomes do Partido Democrata e com as doações de campanha em queda. O senador Joe Manchin foi o último a se somar às vozes pedindo a renúncia, poucas horas antes de Biden publicar a carta na rede social X. Em 27 de junho, durante o debate com o republicano Donald Trump, Biden teve dificuldades de se expressar e, algumas vezes, interrompeu a linha de raciocínio. Foi duramente criticado pelo próprio partido e pela imprensa.
- Decisão de Biden gera expectativa global e autoridades repercutem desistência
- À espera da reação dos mercados no primeiro dia após a desistência de Biden
"Depois do debate, Biden viu seu capital político claramente entrar em declínio. Ao abandonar a disputa neste momento, a um mês antes da Convenção Nacional Democrata, ele tem a chance de salvar a própria reputação, independentemente de como as coisas acabem", assegurou ao Correio Charles Stewart III, professor de ciência política do Instituto de Tecnologia de Massachusetts. De acordo com ele, Biden ganhará muito crédito por ter desistido e se tornará um estadista tão respeitado no partido quanto Bill Clinton e Barack Obama. "O presidente também será um defensor mais eficaz da chapa democrata. Ele não terá que estar em campanha todos os dias e poderá lembrar aos americanos a diferença entre Trump e os democratas, todos os dias, até 5 de novembro", concluiu.
"Pato manco"
Eric Heberlig, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade da Carolina do Norte em Charlotte, pensa diferente. "A desistência transforma Biden em um 'pato manco' em Washington", afirmou à reportagem, citando uma expressão usada para designar um líder sem poder. Apesar de reconhecer que os últimos dias de campanha sempre são marcados pela quantidade de projetos de lei apresentada no Capitólio. "Imagino que a decisão de Biden ajudará a solifidicar sua imagem junto aos historiadores. Os apoiadores dirão que ele colocou os interesses do país acima dos seus."
Há quem acredite que Biden emergirá da crise como uma das mais raras figuras da política norte-americana: o herói abnegado. "Você não pode odiá-lo porque ele envelheceu demais, e parte de sua popularidade será transferida para Kamala", disse ao Correio John C. Coffee, professor de direito da Universidade Columbia (em Nova York). Apesar de não prever a vitória de Kamala, ele crê que a eventual candidatura dela poderá fazer com que Trump se embarace na campanha, ante o histórico misógino.
Para Timothy Hagle, professor de ciência política da Universidade de Iowa, os danos causados ao legado de Biden estão feitos. "Por ainda ser o presidente, ele terá algum crédito por ter tomado a decisão certa sobre a campanha, e os democratas certamente tentarão enfatizar isso. Mas tudo dependerá de como ele concluirá o seu governo. Independentemente de quem os democratas escolham como candidato, os republicanos certamente criticarão as políticas e os resultados do governo", avaliou, por e-mail.
As munições de Trump
Donald Trump não perdeu tempo e tripudiou sobre o agora ex-adversário. "O corrupto Joe Biden não era apto para se candidatar como presidente, e certamente não é apto para servir (como tal) — E nunca foi!", publicou em sua rede, Truth Social. O magnata republicano descreveu o democrata como, "de longe, o pior presidente da história". Segundo Trump, Biden somente alcançou a posição de presidente por mentiras, fake news, "e por não sair de seu porão". "Todos ao seu redor, incluindo seu médico e a mídia, sabiam que ele não era capaz de ser presidente", acrescentou. Sem base empírica, Trump acusou Biden de permitir a entrada de "milhões de pessoas" na fronteira, "totalmente sem controle e sem verificação". A equipe de campanha do republicano assegurou que será mais fácil derrotar Kamala Harris.
Charles Stewart III, cientista político do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), disse ao Correio que as declarações de Trump fazem parte da "fanfarronice da campanha". "Trump está essencialmente dizendo que, se as pessoas pensam que Harris é uma candidata mais forte do que Biden, então subestimam a sua força e as hipóteses de vitória. É parte de sua fanfarronice pela qual ele é conhecido", explicou.
Para Stewart, Trump manterá o mesmo comportamento do início da campanha, após a decisão de Biden. "Ele argumentará que é incrivelmente popular e que a única maneira de perder é se houver fraude", comentou. Com a desistência de Biden, o professor do MIT acredita que o Partido Democrata retomará o fluxo de arrecadações de campanha. "Kamala Harris tem o endosso de Biden e terá dos principais líderes democratas do país. Trump a atacará com muita força, mas ele faria isso com qualquer outro democrata que entrasse na corrida pela indicação."
Por sua vez, James Green — historiador político da Universidade Brown (em Rhode Island) — vê na reação de Trump uma "bravura embutida em racismo subterrâneo". "Trump é misógino, racista, tem um desprezo total pela comunidade afroamericana. Qualquer coisa que ele disser contra Kamala Harris vai mobilizar uma base importante do Partido Democrata contra ele, assim como as mulheres brancas da classe média que estão indecisas. Elas identificarão em Kamala uma pessoa que defende seus interesses", disse ao Correio.
Saiba Mais
Gostou da matéria? Escolha como acompanhar as principais notícias do Correio:
Dê a sua opinião! O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores pelo e-mail sredat.df@dabr.com.br