Cartazes foram espalhados pelas igrejas católicas há 75 anos, informando os frequentadores que o comunismo estava terminantemente proibido e seus praticantes, automaticamente excomungados.
Com pequenas variações conforme a diocese, os textos informavam basicamente que era "pecado grave" "inscrever-se no Partido Comunista ou em qualquer outro partido ou associação que tenha causa comum a ele", "favorecê-lo de qualquer modo, inclusive com o voto", "ler a imprensa comunista" e "propagar a imprensa comunista".
"Está excomungado quem, inscrito ou não no Partido Comunista, aceita a doutrina marxista, mesmo que seja cristão em aparência, e a propaga. Será afastado da fé e não poderá ser absolvido pela Santa Sé", diziam ainda esses cartazes, alertando que "esconder este pecado em confissão" significa "cometer um sacrilégio".
Tais comunicados ainda costumavam ser encerrados com uma mensagem piedosa. "O senhor ilumine e conceda aos culpados em matéria grave o verdadeiro arrependimento, enquanto estão em perigo da eterna salvação" é um exemplo.
Conhecido popularmente como "decreto contra o comunismo," o documento do Vaticano foi registrado nas Atas da Sé Apostólica no dia 1º de julho de 1949 e se tornou mais divulgado a partir da publicação no jornal L’Osservatore Romano no dia 16 do mesmo mês. Nos dias subsequentes, diversos artigos do periódico tornaram mais claras as determinações, discutindo os pontos do ato oficial.
O texto em si era lacônico e simples e trazia a aprovação do papa, Pio 12 (1876-1958) a quatro questionamentos discutidos pelo Santo Ofício — órgão herdeiro do famigerado Tribunal da Santa Inquisição, medieval, e atualmente chamado de Dicastério para a Doutrina da Fé. As questões eram:
- É permitido aderir ao Partido Comunista ou favorecê-lo de alguma maneira?
- É lícito publicar, divulgar ou ler livros, revistas, jornais ou tratados que sustentam a doutrina e a ação dos comunistas, ou escrever neles?
- Fiéis cristãos que consciente e livremente fizeram o que está em 1 e 2 podem ser admitidos aos sacramentos?
- Fiéis cristãos que professam a doutrina materialista e anticristã do comunismo, e sobretudo os que a defendem ou a propagam, incorrem pelo próprio fato, como apóstatas da fé católica, na excomunhão reservada de modo especial à Sé Apostólica?
As respostas da congregação foram "não" para as três primeiras e "sim" para a última. "O comunismo é de fato materialista e anticristão, embora declarem às vezes em palavras que não atacam a religião, os comunistas demonstram de fato, quer pela doutrina, quer pelas ações, que são hostis a Deus, à verdadeira religião e à Igreja de Cristo", argumentou o texto do Vaticano.
Estavam, portanto, de acordo com a vontade e a anuência explícita de Pio 12, excomungados os comunistas.
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Contexto histórico
Para compreender a gênese desse documento é preciso recorrer tanto ao contexto histórico do mesmo quanto à biografia daquele papa.
Aqueles anos pós-Segunda Guerra eram o nascedouro de um mundo dividido, bipolar. De um lado, os países sob o domínio capitalista; do outro, os que assumiam uma postura socialista ou ao menos flertavam com estes ideais.
"A Igreja Católica e o comunismo historicamente tinham uma relação de inimizade e Pio 12 deu essa resposta a dúvidas enviadas ao Vaticano na época. O entendimento [do Santo Ofício] foi que havia apostasia na fé católica [na prática do comunismo]", explica à BBC News Brasil o vaticanista Filipe Domingues, vice-diretor do Lay Centre de Roma e professor na Pontifícia Universidade Gregoriana, também em Roma.
Papa desde 1939, Pio 12 tinha uma bagagem alinhada à direita. E dava prosseguimento a uma postura empreendida pela Igreja pelo seu antecessor, de quem herdava não somente o nome mas também toda a política — Pio 11 (1857-1939), que liderou a Igreja de 1922 a 1939, é comumente acusado de, no mínimo, ter se omitido perante o crescimento do fascismo italiano e sua aliança com o nazismo alemão; mais tarde, ele condenaria explicitamente o nazifascismo.
Frade dominicano e conhecido por sua trajetória nos movimentos sociais e progressistas, o jornalista e escritor Frei Betto lembra à BBC News Brasil que Pio 12, quando era arcebispo Eugenio Pacelli, foi nomeado núncio apostólico na Alemanha — cargo equivalente ao de um embaixador. "Ele tinha simpatia por [Adolf] Hitler e era ferrenho anticomunista", ressalta Frei Betto.
"Como muitos cristãos, tinha simpatia por Hitler e [Benito] Mussolini, por [estes] se declararem católicos, anticomunistas e anticapitalistas. E como havia avanço do socialismo, com forte caráter ateu, isso aterrorizava a Igreja", contextualiza o frade.
Embora pontue que Pio 12 não era nazifascista, o teólogo britânico John Norman Davidson Kelly (1909-1997) diz em seu livro The Oxford Dicionary of Popes que Pio 12 estava "convencido de que o comunismo era ainda mais perigoso que o nazismo".
"Politicamente ele vociferou contra o comunismo, ameaçando os asseclas com excomunhão", afirma Kelly.
O teólogo ainda lembra que Pio 12 tinha uma postura autoritária e "foi o primeiro papa a ser mundialmente conhecido pelo rádio e pela televisão" — o que, certamente, deu maior peso a sua voz em todo o planeta.
Professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, o historiador, sociólogo e filósofo Gerson Leite de Moraes comenta à BBC News Brasil que é preciso entender Pio 12 como a continuidade de Pio 11. "Eles pensavam de forma muito parecida, tinham uma relação estreita de pensamento em relação a esses temas de política internacional", ressalta. "Pio 11 também condenou o nazismo, mas demorou uns quatro anos para perceber o tamanho da encrenca por ter apoiado o nazismo [em seu início]."
A condenação veio, segundo explica Moraes, porque o papa viu no nazismo "uma espécie de paganismo". "Na esteira disso tudo ele também condena o comunismo", completa. "Havia uma propaganda intensa [da esquerda] se desenvolvendo a partir da Rússia e o papa tinha medo de que revoluções se alastrassem e espalhassem ideias comunistas."
"Quando Pacelli assumiu [tornando-se Pio 12], ele deu prosseguimento à tentativa de proteger a Igreja a todo custo [da 'ameaça comunista']. Nessa preocupação apareceu esse decreto contra o comunismo", afirma o professor.
Ex-coordenador do Núcleo Fé e Cultura da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e editor do jornal O São Paulo, da Arquidiocese de São Paulo, o sociólogo Francisco Borba Ribeiro Neto diz à BBC News Brasil que "o documento é um passo numa longa caminhada de confrontos entre o comunismo e o catolicismo, que durou efetivamente desde a publicação do Manifesto do Partido Comunista, em 1848, até a queda da União Soviética, em 1991".
Nesse sentido, a questão parece ser superada pelo catolicismo — embora segmentos reacionários da própria Igreja ainda vejam fantasmas do comunismo em alas mais progressistas. "Nenhum papa posterior levou isso a sério", comenta Frei Betto.
Segundo o frade dominicano, hoje a posição da Igreja frente aos comunistas é de "respeito e diálogo". "Os comunistas já não tratam o marxismo como religião nem os católicos tratam sua doutrina como projeto político", pontua.
"Ao longo dos anos, a Igreja nunca mudou seu entendimento sobre a concepção religiosa, antropológica e social do comunismo. Contudo, as próprias esquerdas fizeram várias revisões e surgiram muitos militantes que diziam abraçar certos princípios comunistas, mas negar todos aqueles que eram contrários aos ensinamentos da Igreja", contextualiza Ribeiro Neto.
"Marxistas ortodoxos e católicos conservadores podem acusar estes militantes de incoerentes ou iludidos, mas não se pode negar sua existência e até sua boa vontade. Em função disto, a Igreja institucional deixou de ter uma posição de condenação tão esquemática e se abriu à possibilidade, na prática, de um diálogo para entender qual a posição específica de cada militante", acrescenta ele.
O sociólogo comenta que hoje, "a condenação taxativa ao comunismo, sem se perguntar exatamente qual a posição do militante, é uma postura muito mais ideológica de militantes de direita católicos do que institucional".
"Por outro lado, surgiu uma ‘nova esquerda’, culturalista e identitária, que continua insistindo numa visão de ser humano oposta àquela do cristianismo", ressalva o sociólogo.
"Uma análise conceitual dessas novas esquerdas, contudo, mostra que são diferentes do comunismo clássico do século 20, o que implica em um debate político cultural-diferente", acrescenta.
Ele lembra ainda que desde o fim do pontificado de João Paulo 2º (1920-2005), a questão deixou de ser relevante para a cúpula do Vaticano.
"É significativo que tanto Bento 16 [(1927-2022)] quanto Francisco, mesmo sem mudarem a visão clássica sobre o tema, tenham se dedicado pouco a uma crítica sistemática ao comunismo", destaca Ribeiro Neto.
Professor na PUC-SP e na Faculdade São Bento, o teólogo, filósofo e jornalista Domingos Zamagna destaca à BBC News Brasil que, pensando no macro, pode-se lembrar que, de lá para cá, houve uma atualização no Código de Direito Canônico.
Na época de Pio 12, vigorava a lei de 1917. Atualmente, a Igreja segue a de 1983, promulgada por João Paulo 2º.
"É claro que o novo código segue a tradição canônica da Igreja no que há de mais importante, portanto reafirma a condenação das doutrinas estranhas à fé católica. Mas ele abriga uma conotação pastoral, que proporcional uma maior e mais prudente jurisprudência eclesiástica sob a luz da caridade evangélica", contextualiza.
De certa forma, agora se entende mais o "caso a caso". "Podemos dizer que a Igreja mudou bastante, aperfeiçoou seu direito, buscou mais humanidade em seus procedimentos", argumenta Zamagna. "Infelizmente ainda não se pode dizer que o comunismo alterou a qualidade intrínseca de muitas de suas práticas."
O teólogo diz que a Igreja Católica, por ser "mais radical", permanece "crítica dos dois modelos" — o comunismo e o capitalismo. "Mas adota uma postura de abertura ao diálogo, ou seja, não deixa escapar, sem temor, nenhuma oportunidade de se relacionar com qualquer ideologia atual, desde que haja realistas perspectivas esperançosas de mais justiça e paz entre os povos", analisa ele.
Pena
O decreto de 75 anos, que nunca foi revogado, determina a excomunhão automática para os comunistas.
Como explica Ribeiro Neto, isso significa que é uma excomunhão que não depende de sentença eclesiástica, "acontece pelo fato em si". "Mesmo que ninguém saiba disso [do ‘pecado cometido’], o fiel se ‘autoexcomunga’ ao exercer tal ato", explana.
"A ideia de excomunhão [neste caso] se mostrou pouco eficiente do ponto de vista pedagógico", pontua o sociólogo.
"Quem já é ateu não se importa de estar sendo excomungado. Para a Igreja, não há interesse que o católico apenas deixe de se declarar ‘comunista’, mas sim que ele entenda as contradições entre as duas posturas. E o esquematismo da condenação não ajuda a um diálogo pedagógico que explicite as divergências", acrescenta ele.
Zamagna reconhece que os intérpretes do documento de 75 anos atrás sempre frisaram a severidade do mesmo.
"Excomunhão é a mais grave censura imposta pela autoridade eclesiástica, levando o excomungado a uma situação de exclusão da vida no grêmio da Igreja, como a privação de participação dos sacramentos", ressalta.
O vaticanista Domingues lembra que "embora nunca tenha havido uma revisão" do decreto, ele deixou de ser relevante "porque não é mais uma questão urgente".
"Mas a ausência de fé e da espiritualidade ainda são condenadas pela Igreja. Não podemos, contudo, generalizar isso para toda e qualquer situação", explica ele.
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