MEIO AMBIENTE

Como 'anistiaço' do MP e governo de MT livrou fazendeiros de pagar indenizações por desmatamento

Por pelo menos um ano, o governo e o Ministério Público de Mato Grosso fizeram uma série de acordos com fazendeiros multados por desmatamento ilegal sem cobrar indenizações por danos ambientais.

Soja é uma das principais commodities produzidas nas fazendas de Mato Grosso -  (crédito: Reuters)
Soja é uma das principais commodities produzidas nas fazendas de Mato Grosso - (crédito: Reuters)

Documentos obtidos pela BBC News Brasil apontam que, por quase um ano, o Ministério Público do Mato Grosso (MPMT) e o governo do Estado fizeram uma série de acordos com fazendeiros multados por desmatamento ilegal em que deixaram de cobrar indenizações pelos danos ambientais causados pela destruição de biomas como a Amazônia, Cerrado e Pantanal.

Além disso, os acordos permitiram a liberação de fazendas embargadas. Eles começaram a ser firmados em setembro de 2023 e se estenderam até junho deste ano.

A orientação para dispensar a cobrança de danos ambientais em parte dos acordos só foi encerrada em junho após a prática ser questionada internamente por promotores e depois que a BBC News Brasil enviou questionamentos ao MPMT e ao governo estadual sobre o assunto.

Os valores que deixaram de ser cobrados em parte desses acordos não são conhecidos porque, segundo o governo estadual e o MPMT, os processos em questão seriam "físicos", o que, em tese, impediria a análise detalhada sobre esse valor total.

Em um caso ao qual a BBC News Brasil teve acesso, um fazendeiro foi multado em 2021 pelo desmatamento ilegal de 709 hectares no bioma Cerrado, um dos mais ameaçados do Brasil.

Inicialmente, ele foi cobrado pelo dano ambiental avaliado em R$ 5,7 milhões.

Mas, após seu processo ser incluído na leva de acordos com o governo e o MPMT, a cobrança de indenização por dano ambiental foi zerada.

Ambientalistas e promotores classificam a prática como um "anistiaço" que contraria a jurisprudência firmada sobre o assunto, incentiva o desmatamento ilegal e cria a sensação de que o "crime compensa".

Isso aconteceria porque fazendeiros que teriam aderido ao desmatamento ilegal e depois optado pelos acordos oferecidos pelo governo e pelo MPMT conseguem regularizar suas atividades mais rapidamente do que aqueles que buscaram autorizações de desmatamento junto aos órgãos ambientais.

Em pelo menos dois casos identificados pela BBC News Brasil, um promotor alegou que não cobraria indenização por dano ambiental alegando, entre outras razões, a "crise" pela qual o agronegócio estaria passando.

Procurado pela reportagem, o MPMT afirmou que não "abriu mão" de cobrar indenizações nos acordos e que não concorda com o termo "anistiaço".

O órgão afirmou que teria apenas adotado um entendimento jurídico segundo o qual o desmatamento ilegal fora de áreas protegidas não seria passível de cobrança de indenização. Promotores e ambientalistas contestam essa tese.

Em nome do governo de Mato Grosso, a Secretaria de Meio Ambiente de Mato Grosso (Sema-MT) enviou uma nota em que negou qualquer irregularidade.

A Sema-MT defendeu os acordos e disse que o programa de conciliação ambiental em curso, no qual os acordos foram realizados, antecipou a resolução de conflitos judiciais e administrativos que poderiam demorar mais de uma década.

A BBC News Brasil enviou questionamentos à assessoria de imprensa do governo de Mato Grosso e à Procuradoria Geral do Estado, mas apenas a Sema-MT respondeu.

Plantação de soja
Reuters
Soja é uma das principais commodities produzidas nas fazendas de Mato Grosso

Locomotiva do agro e do desmatamento

O Mato Grosso é, ao mesmo tempo, um dos campeões do agronegócio e do desmatamento no Brasil. O Estado é governado por Mauro Mendes (União Brasil).

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Estado tem o maior rebanho bovino do país, com 34 milhões de cabeças de gado. Além disso, é o maior produtor de soja, milho e algodão.

De acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o Estado foi o segundo maior desmatador da Amazônia, atrás apenas do Pará.

Entre 2022 e 2023, o Estado perdeu 2 mil quilômetros quadrados de florestas, uma área maior do que a da cidade de São Paulo.

Foi em meio a essa "encruzilhada" ambiental que o governo de Mato Grosso, em parceria com o Judiciário, Polícia Civil e o MPMT lançou o "Mutirão de Conciliação Ambiental", em 2023.

Segundo a Sema-MT, o objetivo do mutirão é proporcionar "um caminho mais rápido para o objetivo principal do Estado, que é a imediata correção das infrações e recuperação do dano ambiental causado".

Durante o mutirão, produtores rurais e integrantes do governo e do MPMT realizam acordos para encerrar processos judiciais e administrativos gerados pela infração ou pelos crimes ambientais cometidos pelos fazendeiros.

De acordo com o governo, a intenção é diminuir os litígios e promover a regularização ambiental de produtores rurais.

Este tipo de acordo está previsto nas legislações federal e estadual e prevê o desconto de até 90% no valor das multas (dependendo do caso) e no parcelamento do pagamento delas em até dois anos.

À BBC News Brasil, a Sema-MT e o MPMT disseram que 853 processos foram incluídos no mutirão entre 2023 e 2024. Desse total, 483 chegaram a acordos, 57% do total.

Ainda de acordo com os órgãos, foram arrecadados R$ 64,6 milhões em multas e outras reparações.

Indenizações em xeque e 'rebelião'

O primeiro problema dos acordos feitos durante o mutirão, segundo ambientalistas e promotores, é que o governo do Estado e o MPMT renunciaram à cobrança de indenizações por danos ambientais nos casos em que o desmatamento ilegal ocorreu fora de áreas protegidas por lei.

Normalmente, quando uma pessoa ou empresa comete uma infração ou crime ambiental, elas são multadas e obrigadas a pagar pela reparação do dano causado.

No caso de infrações causadas por desmatamento ilegal, essas reparações incluem a recuperação da área, a reposição da madeira e uma indenização pelos danos ambientais.

De acordo com o advogado Paulo Burse, consultor e especialista em direito ambiental, essa indenização é diferente da multa.

"A multa é o valor que o infrator paga por ter descumprido uma norma, no caso, ter desmatado sem autorização", explica o advogado à BBC News Brasil.

"A indenização, por sua vez, é o valor que ele deveria pagar pelo dano material ou moral que o ato de desmatar sem autorização gerou à sociedade."

Desde o início do mutirão, tanto o governo estadual quanto o MPMT adotaram o entendimento de que o desmatamento ilegal fora de áreas protegidas não permitiria a cobrança de indenização por dano ambiental, porque esse desmatamento, apesar de ilegal, poderia vir a ser autorizado em algum momento.

Em março deste ano, o procurador-geral de Justiça de Mato Grosso, Deosdete Cruz Júnior, assinou uma recomendação à qual a BBC News Brasil teve acesso referendando esse entendimento.

A suposta crise no agronegócio também foi usada para justificar a não cobrança de indenizações em desmatamentos ilegais fora de áreas protegidas, segundo processos analisados pela reportagem.

O promotor Marcelo Vacchiano, coordenador do mutirão de conciliação, explicou por que não adotou a posição de que o desmatamento fora da reserva legal gera indenizações.

"Em tempos de mudanças climáticas, essa posição se mostra razoável. Contudo tenho deixado de aplicá-la após as tratativas de parametrização realizadas com a PGE e Sema-MT, já que é inegável que o setor do agronegócio se encontra em crise", diz o trecho de um processo assinado por Vacchiano.

Trecho de parecer
Reprodução/BBC News Brasil
Trecho de um parecer em que promotor Marcelo Vacchiano explica por que não vai cobrar indenizações por danos ambientais em área desmatada ilegalmente

No caso em questão, cujos autos foram obtidos pela BBC News Brasil, o dano ambiental estimado pelo MPMT era R$ 899,3 mil, mas não foi cobrado.

A empresa ainda conseguiu um desconto de quase 60% no valor de sua multa, que caiu de R$ 730 mil para R$ 292 mil.

O valor deverá ser pago em equipamentos doados à Sema-MT.

Vacchiano afirma que a menção à crise não foi a base jurídica para a não cobrança da indenização.

"Esse parágrafo é apenas uma constatação que eu coloco [...] A intenção, no entanto, não é justificar o entendimento [jurídico] com base em uma eventual crise", diz o promotor à BBC News Brasil.

Contrários a essa prática, 19 promotores do MPMT moveram um recurso no Conselho Superior do órgão em que contestaram a interpretação adotada durante os acordos.

Eles argumentaram que ela seria contrária à jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e prejudicial ao meio ambiente.

"Centenas de acordos foram e estão sendo celebrados sem nenhuma reparação civil do dano", diz a representação à qual a BBC News Brasil teve acesso.

Eles apontam um acórdão do STJ de 2010 em que o relator, Herman Benjamin, afirma que a indenização por dano ambiental não deveria se restringir a desmatamentos em áreas protegidas.

Em 4 de junho, às vésperas de o recurso ser apreciado pelo Conselho Superior do MPMT e após questionamentos da BBC News Brasil, o comando do órgão informou que a recomendação para a não cobrança de indenização por desmatamento em áreas supostamente passíveis a desmatamento foi revogada.

Em 18 de junho, o órgão aprovou uma nova resolução determinando que os próximos acordos de conciliação ambiental devem prever a cobrança de indenização, de acordo com as diretrizes do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).

Vista aérea mostra desmatamento em área florestal perto da fronteira entre a Amazônia e o Cerrado, em Nova Xavantina, no Mato Grosso
Reuters
Promotores no Mato Grosso alegam que o governo alterou a legislação em maio de 2023, pouco antes do início do mutirão de conciliação

Desembargo 'express'

O segundo problema apontado por promotores e ambientalistas é que os acordos firmados com os desmatadores ilegais de Mato Grosso têm levado à suspensão dos embargos ou interdições das áreas afetadas antes mesmo da comprovação de que o dano ambiental foi recuperado.

De acordo com o recurso movido pelos promotores, essa medida contraria a legislação federal que prevê que a suspensão do embargo só pode acontecer depois da comprovação de que a área afetada foi devidamente recuperada.

Em Mato Grosso, os promotores alegam que o governo alterou a legislação em maio de 2023, pouco antes do início do mutirão de conciliação, que começou em setembro daquele ano.

A mudança foi feita por decreto e permitiu que os embargos pudessem ser suspensos a partir da assinatura do acordo com as autoridades ambientais e o MPMT e não dependessem mais da comprovação da recuperação da área.

"Estabeleceu-se a possibilidade de assinatura de novos termos de compromisso, com a simples promessa de regularização por parte dos infratores, quando, na verdade, o que a lei exige é a efetiva regularização, para fins de cessação dos efeitos dos embargos administrativos", diz um trecho do recurso movido pelos promotores.

Em nota, a Sema-MT informou à BBC News Brasil a suspensão de embargos em 301 processos.

O órgão justificou a medida afirmando que ela seguiria a legislação e que monitora se os compromissos assumidos pelos fazendeiros são ou não cumpridos.

"A Sema-MT criou uma unidade administrativa específica para monitorar o cumprimento dos TACs [sigla para Termos de Ajustamento de Conduta] para garantir a eficácia dos ajustes e imediata execução daqueles que forem descumpridos. Em torno de 5% (23 processos), foram descumpridos e já tiveram as medidas de execução iniciadas", disse um trecho da nota.

Nem a Sema-MT ou o MPMT informaram a quantidade de hectares cujos embargos foram suspensos ao longo do mutirão.

Para a consultora jurídica da organização não-governamental Observa-MT, Edilene Fernandes do Amaral, o desembargo expresso feito durante o mutirão pode comprometer a confiança do mercado internacional em relação às origens das commodities produzidas em Mato Grosso.

"Esse comportamento pode trazer real prejuízo às importações e à imagem de produtores legalizados e que respeitam de fato a legislação, em detrimento dos que buscam uma 'legalização' forçada por esses mecanismos", diz Amaral à BBC News Brasil.

"Quando você desmata uma área e vai para um mutirão onde sua área é imediatamente desembargada, você acaba permitindo que produtos oriundos de desmatamentos ilegais recentes sejam despejados no mercado consumidor. São produtos que eu e você vamos acabar consumindo sem saber a origem."

Em nota, a secretária de Meio Ambiente de Mato Grosso, Mauren Lazzaretti, disse lamentar o que classificou como "distorção de informações".

"O mutirão de conciliação em todas as esferas [...] é uma iniciativa única no país, apesar da conciliação ambiental em si não ser", disse Lazzaretti.

"Toda novidade gera críticas, principalmente daqueles que possuem maior dificuldade de encarar o novo. Lamentamos a distorção de informações que estão sendo veiculadas."

O MPMT também negou irregularidades: "Todos os TACs são firmados de acordo com a lei e segundo entendimentos jurisprudenciais do TJMT (Tribunal de Justiça de Mato Grosso) e STJ".

Reinterpretação da legislação

Para Edilene Amaral, do Observa-MT, o mutirão realizado pelo governo e pelo MP de Mato Grosso incentiva a atividade ilegal.

"O primeiro efeito colateral desse mutirão é a sensação de que o crime compensa. É o Estado dizendo para essas pessoas: 'Você que gastou com licenciamento ambiental e esperou a autorização é um trouxa. O outro saiu na frente, não pagou indenização civil, não respondeu por crime e pagou uma multa com 60% de desconto. E, se entrar com mandado de segurança, ainda consegue elevar esse desconto para 90%'", diz Amaral.

O advogado Paulo Burse diz que o que ocorreu foi um "anistiaço": A ideia é acelerar ao máximo a arrecadação gerada por esses acordos e fomentar o agronegócio em detrimento e sem cuidado nenhum com o meio ambiente".

Amaral afirma que a suposta reinterpretação da legislação ambiental que estaria sendo feita pelo governo de Mato Grosso e pelo Ministério Público local beneficia desmatadores ilegais enquanto as autoridades locais dariam a impressão de estarem cumprindo a lei e reforçando a proteção ambiental.

"Ao invés de mudar a lei no parlamento, submetendo-a à discussão, as autoridades mudam o entendimento jurídico e dizem que estão cumprindo a lei, quando, na verdade, estão fazendo o contrário do que a lei e a jurisprudência diz para fazer", diz a consultora.

A secretária Mauren Lazzaretti rebateu o argumento. "Considerando todas as informações acima, denomino de irresponsáveis e mentirosas as afirmações; (vêm) de pessoas que não estão comprometidas verdadeiramente com melhores resultados para o meio ambiente e para sociedade. Distorcem dados para que se amoldem a seus propósitos, que podem ser os mais variados, ideologia, partidário, pessoal, etc".

Questionado, o MPMT disse não concordar com o termo "anistiaço".

"??O MPMT desconhece e não compactua com qualquer tipo de anistia, notadamente quando se trata de defesa ambiental", disse o órgão por meio de nota.

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BBC
Leandro Prazeres - Da BBC News Brasil em Brasília
postado em 03/07/2024 06:59 / atualizado em 03/07/2024 15:47
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