A filmagem ganhou dimensão histórica e viralizou. Diante do Palácio Quemado, na Plaza Murillo, no coração de La Paz, o presidente da Bolívia, Luis Arce ("Lucho"), enfrentou, cara a cara, o general golpista Juan José Zúñiga, comandante do Exército. "Retire todas essas forças imediatamente, é uma ordem! É uma ordem! General, não vai me obedecer?", disse Arce, enquanto simpatizantes gritavam "O povo está com Lucho!". Pouco antes, uma tanqueta do Exército tentou derrubar o portão da sede do Executivo. Zúñiga saiu caminhando e, horas depois, as tropas e blindados foram retirados da Plaza Murillo, enquanto a suposta tentativa de ruptura fracassava e a comunidade internacional condenava, em peso, a mobilização militar. No entanto, ao ser preso no início da noite, sem apresentar provas, o general denunciou que tudo não passou de farsa. Arce também havia acabado de juramentar uma nova cúpula militar.
"No domingo (23/6), eu me reuni com o presidente. Ele me disse: 'A situação está muito f..., esta semana será muito crítica. É necessário preparar algo para levantar minha popularidade'", contou Zúñiga diante do vice-ministro do Interior, Jhonny Aguilera, ao ser detido. O general teria perguntado a Arce se deveria retirar os blindados dos quartéis, ao que, segundo ele, teria obtido resposta afirmativa. "No domingo à noite, os blindados começaram a sair. Seis Cascavéis e seis Urutus, e mais 14 do Regimento de Achacahi", relatou. "Está preso, meu general!", anunciou Aguilera.
O Correio entrou em contato com o ex-presidente Evo Morales, que, a princípio, declinou dar declarações. "Olhe, não estou dando entrevistas. Me desculpe", disse ao telefone. "Estamos em um momento de avaliação. Peço-lhe, por favor." A reportagem insistiu e questionou Morales sobre as acusações de Zúñiga. "Lucho enganou o povo boliviano e o mundo inteiro. Essa é a opinião generalizada na Bolívia, nada mais", respondeu. Em um primeiro momento, Morales tinha denunciado um "golpe de Estado" e convocado a defesa da democracia.
Mais cedo, cercado por ministros, Arce confirmou a intentona golpista e fez um apelo à população. "Aqui estamos, todos os ministros, ministras e vice-presidente, firmes, na Casa Grande, para enfrentar toda tentativa golpista, tudo aquilo que atente contra a nossa democracia. O povo boliviano está convocado. Necessitamos que o povo boliviano se organize e se mobilize contra o golpe de Estado e em favor da democracia", declarou.
Farda manchada
Em questão de minutos, Arce fez novo pronunciamento à nação, em meio a explosões ouvidas do lado de fora. "Sem dúvida, hoje foi uma jornada atípica na vida de um país que quer a democracia. Enfrentamos uma tentativa de golpe de Estado por militares que estão manchando a farda e atentado contra as nossas instituições políticas", afirmou o presidente. Em um terceiro discurso, dessa vez da varanda do palácio, Arce avisou: "Ninguém pode nos tirar a democracia que ganhamos nas urnas e nas ruas com o sangue do povo boliviano. (...) Estamos certos de que vamos continuar".
Rumores sobre a provável destituição de Zúñiga, no comando do Exército desde 2022, começaram a circular na véspera. O comandante concedeu entrevista a uma emissora de tevê e assegurou que prenderia Evo Morales se ele insistisse na candidatura à presidência nas eleições de 2025, apesar de ter sido inabilitado pela Justiça Eleitoral. "Legalmente, ele está inabilitado, esse senhor não pode voltar a ser presidente", afirmou o general.
Luis Almagro, secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), foi enfático ao criticar a aventura golpista na Bolívia. "O Exército deve se submeter ao poder civil legitimamente eleito. Enviamos nossa solidariedade ao presidente da Bolívia, Luis Arce Catacora, seu governo e todo o povo boliviano. A comunidade internacional, a OEA e a Secretaria Geral não tolerarão nenhuma quebra da ordem constitucional legítima na Bolívia ou em qualquer outro lugar", escreveu na rede social X.
Também por meio das redes sociais, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva destacou que"a posição do Brasil é clara". "Sou um amante da democracia e quero que ela prevaleça em toda a América Latina. Condenamos qualquer forma de golpe de Estado na Bolívia e reafirmamos nosso compromisso com o povo e a democracia no país irmão, presidido por Luis Arce", afirmou. Em nota do Ministério das Relações Exteriores, o governo brasileiro condenou, "nos mais fortes termos, a tentativa de golpe de Estado (...), em clara ameaça ao Estado democrático de Direito no país". Ao manifestar apoio e solidariedade a Arce, ao governo e ao povo brasileiro, o Itamaraty informou que estará em interlocução permanente com as autoridades legítimas bolivianas e com os governos dos demais países da América do Si, a fim de rechaçar a "grave violação" da ordem constitucional da Bolívia.
"Coragem"
Por telefone, o congressista Jerges Mercado — ex-presidente da Câmara dos Deputados e líder da bancada do governista Movimento ao Socialismo (MAS) — disse ao Correio que o 26 de junho entra para a história como "um dia lamentável para a democracia boliviana e da América Latina". "Hoive uma tentativa de golpe de Estado por parte de alguns militares aventureiros. Não tenho dúvidas de que eles agiram em concomitância com grupos políticos que cobiçavam e respaldavam o golpe. Felizmente, a reação oportuna do povo boliviano, que saiu às ruas de La Paz e de outros cidades, e de movimentos sociais que não hesitaram um minuto em defender o governo, e também graças à coragem do presidente Arce, a intentona golpista foi frustrada e sufocada", comentou. Durante toda a tarde, Mercado instruiu os deputados do MAS para que resistissem ao golpe. "Alguns foram atingidos com gás lacrimogêneo para que deixassem o Congresso", relatou. Na opinião dele, a democracia sai fortalecida. "Ao mesmo tempo, precisamos estar atentos ante ameaças internas e externas latentes à democracia."
José Manuel Ormachea, deputado pelo partido Comunidad Ciudadana, afirmou ao Correio que os bolivianos ficaram confusos com os desdobramentos. "Poucas pessoas entendem o que está se passando. Luis Arce deu um autogolpe, junto a Zúñiga. Temos que chamar a comunidade internacional para que Arce não se atreva a fechar o Congresso, a mudar a data das eleições de 2025, a processar legisladores ou a mandar civis para a prisão."
Senadora pelo mesmo partido, Cecilia Requena classificou como "muito graves" os incidentes. "Por mais que a situação tenha sido resolvida logo, sem violência ampliada, o fato de existir um militar que se permita uma aventura é muito grave. Parece um sintoma de um mal-estar mais generalizado na Bolívia", advertiu à reportagem.
EU ACHO...
"Luis Arce Catacora é um risco tão grande para a democracia, assim como o general Juan José Zúñiga. Não podemos esquecer que Zúñiga sempre esteve do lado de Luis Arce e sempre falou bem bem do presidente. Trata-se de um militante do partido governista Movimento ao Socialismo (MAS) disfarçado de militar. Claro que isso pode ter sido um autogolpe."
José Manuel Ormachea, deputado pelo partido Comunidad Ciudadana (oposição)
"Temos que permanecer atentos. O que se passou hoje (ontem) pode repetir-se com mais contundência e com mais elementos de logística, se as coisas continuarem como estão. Lamento a atitude do general Zúñiga por se prestar a essa aventura, manchando a dignidade das Forças Armadas, como instituição garantista da Constituição e do governo legalmente constituído."
Jerges Mercado, ex-presidente da Câmara dos Deputados e líder da bancada do governista Movimento ao Socialismo (MAS)
"O que ocorreu em La Paz é consequência de uma erosão das instituições democráticas, que perduram por quase duas décadas. Isso nos coloca em uma situação de muita fragilidade. Houve uma tentativa de golpe militar de um general que, aparentemente, será destituído. Apesar dos rumores e das escpeculações, aventuras como esta não têm lugar na Bolívia."
Cecilia Requena, senadora da República pelo partido Comunidad Ciudadana (oposição)
"Há um antes e um depois na governabilidade de Luis Arce. Não creio que tenha sido um autogolpe organizado por Arce, pois a Bolívia enfrentou, meses atrás, um complô da organização para encurtar o mandato do presidente. As ações militares têm que ser respondidas com contundência. Todas as hipóteses estão abertas."
Marcelo Arequipa, doutor em ciência política e professor da Universidade Católica Boliviana San Pablo
TRÊS PERGUNTAS PARA...
HORACIO VILLEGAS PARDO, embaixador da Bolívia no Brasil
Como o senhor vê a acusação de Zúñiga sobre um suposto autogolpe de Arce?
Creio ser necessária uma investigação para entrever o que ocorreu no dia de hoje (ontem). Houve diferentes atores das Forças Armadas que desempenharam um papel nessa tentativa de golpe, incluindo os três comandantes. Uma investigação, inclusive com atores internacionais, seria importante. Os próximos dias vão esclarecer muito mais o que ocorreu.
De que maneira o senhor analisa o que ocorreu em La Paz?
O que ocorreu na Bolívia foi um evento que ficará para a história como um dia bastante obscuro e sombrio para a democracia. Depois de 40 anos de democracia interrompida, é a primeira vez que as Forças Armadas tentam tomar o palácio de uma maneira abrupa e violenta. Foram eventos muito complicados e estranhos. Três comandantes das forças militares se sublevaram e tentaram derrubar o presidente Arce.
Ainda há o risco de uma ruptura?
O tema de uma ruptura é pouco possível. As instituições foram fortalecidas, nas últimas quatro décadas, de modo bastante amplo. Há luzes e sombras, como qualquer processo democrático. Devemos entender que todos os problemas são resolvidos com eleições, nas urnas, e não com violência, como em 2019, quando houve um golpe contra Evo Morales, e, menos de um ano depois, o MAS voltou ao poder, com 55% dos votos para o atual presidente Luis Arce. (RC)