ANÁLISE

'1984': como livro se tornou panfleto 'contra a esquerda'

Romance distópico de George Orwell, lançado há 75 anos, carrega uma contundente crítica ao autoritarismo e à manipulação da verdade.

Lançado há 75 anos, o livro 1984, do inglês George Orwell (1903-1950), é um romance distópico cujo enredo carrega uma contundente crítica ao autoritarismo e à manipulação da verdade.

Nas tensões políticas contemporâneas, com ânimos acirrados e ambiente polarizado, a obra tem sido utilizada — muitas vezes com interpretações rasteiras — por militantes de direita para criticar governos alinhados à esquerda.

Não é de hoje que esse uso panfletário de 1984 vem sendo feito, aliás. Muitos aludiam ao livro para criticas a imposição de medidas sanitárias durante a pandemia, como lockdowns, restrições de deslocamento e uso obrigatório de máscaras.

No livro de Orwell, o Ministério da Verdade é um dos quatro que compõem o governo do fictício Estado totalitário de Oceânia.

A pasta é a responsável pela propaganda e pela falsificação de documentos históricos, garantindo a narrativa pró-governo. Sua função principal é alterar registros para que estes espelhem a versão oficial da história promovida pelo Partido — garantindo que a instituição sempre esteja certa e a sua narrativa seja a única verdade.

No contexto do livro, este instrumento de manipulação serve para o controle do pensamento dos cidadãos e a manutenção do poder.

Quando a Companhia das Letras reeditou, quatro anos atrás, o livro A Fazenda dos Animais (‘Animal Farm’) — em traduções mais antigas, publicado no país como A Revolução dos Bichos —, também de Orwell e também com um peso político importante, o professor de literatura da Universidade de São Paulo (USP) Marcelo Pen ressaltou, no posfácio, que a obra orwelliana era vítima do que ele chamou de “apropriação retrógrada”, por meio de leituras rasteiras e reducionistas que tendem a atribuir a suas obras o viés de propaganda anticomunista.

Pessoalmente, o escritor inglês se definia como “socialista democrático”.

“Talvez seja complicado falar de mensagem [em 1984], sobretudo com relação à forma do romance moderno que, ao contrário de formas narrativas mais antigas, não contém, propriamente, uma mensagem ou lição de vida”, argumenta Pen, à BBC News Brasil.

“No entanto, podemos dizer algo acerca da intenção do autor, que chegou a dizer, publicamente, que sua obra não seria um ataque ao socialismo, por exemplo, mas sim um alerta sobre o perigo do totalitarismo em qualquer parte, tanto com relação ao fascismo e ao tal stalinismo soviético quanto ao que ele chamava de ‘americanismo’ das terras do Tio Sam.”

Professor na Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-Rio), o poeta e tradutor Paulo Henriques Britto lembra à reportagem que Orwell “era um jovem de esquerda” quando participou como voluntário da Guerra Civil Espanhola “e, por mero acaso, foi parar num grupo anarquista”.

“Vendo que os comunistas, na época controlados por Stálin, tratavam os anarquistas como se eles, e não os franquistas, fossem o inimigo, Orwell voltou da Espanha como um antiestalinista ferrenho, e a União Soviética passou a ser vista por ele como a encarnação do totalitarismo”, contextualiza Britto.

“‘Animal Farm’ é o livro em que ele mostra de modo mais claro sua posição em relação ao que lhe parecia a transformação do comunismo, sob Stálin, em totalitarismo”, compara. “Em 1984 ele imagina um mundo dividido entre um número reduzido de Estados totalitários que parecem fundir o que há de pior no fascismo e no estalinismo.”

Para o professor Britto, “os dois livros são, portanto, essencialmente manifesto antitotalitários”.

Com a experiência de também já ter trabalhado com obras de Orwell, o escritor e tradutor Antônio Xerxenesky ressalta à BBC News Brasil que, “pela biografia” do escritor inglês, “podemos dizer que 1984 representa uma desconfiança a qualquer forma de totalitarismo”.

“Ecos disso se encontram em 1984: a figura do Grande Irmão pode muito bem ser associada à de Stalin, e todo o regime retratado tem características estéticas do comunismo linha-dura. Isso não quer dizer que sua crítica se restrinja ao comunismo”, diz Xerxenesky, ressaltando que “muitas leituras são capazes de associar outros traços do regime ao nazismo de Hitler”.

Autor da versão em graphic novel de 1984, o artista e ilustrador Fido Nesti comenta à reportagem que, a seu ver, “Orwell esperava alertar sobre de que maneira um país, ou o mundo, poderia degringolar nas mãos de um governo extremamente autoritário”.

“Criou um universo, que passamos a chamar de orwelliano, onde a sociedade é estrangulada a ponto de ser incapaz de ter um pensamento ou existência autônoma”, salienta Nesti.

Outro tradutor de Orwell para o português, o jornalista e escritor Bruno Cobalchini Mattos diz å BBC News Brasil que o livro “de forma bastante clara, é sobre o perigo e o risco do totalitarismo, de como o regime totalitário acaba permeando o pensamento das pessoas muitas vezes sem que elas percebam”.

Corrupção da linguagem

Fido Nesti/ Divulgação
Pôster promocional feito por Fido Nesti para divulgação do livro

“Precisamos sempre tomar muito cuidado, porém, para não transformar Orwell em um caso, como base para uma discussão geral, digamos, de denúncia como o totalitarismo”, pontua Pen

O acadêmico avalia que “esse romance fala diretamente, de um modo assombroso e inquietante, à nossa época”. “E não exatamente por sua intenção antitotalitária, pois diria que várias outras obras, antes e depois, cumpriram esse papel, mas por atrelar o totalitarismo à corrupção da linguagem”, explica.

“Esse é um ponto crucial do enredo. O protagonista trabalha no Ministério da Verdade, cuja tarefa é adulterar a verdade por meio de narrativas inventadas ou falsificadas, que interessem ao regime do Grande Irmão”, resume o professor. “Mas há um plano mais insidioso: a substituição da língua corrente pela novafala, uma versão empobrecida, padronizada, ideologicamente manipulada do idioma.”

Como bem diz um dos personagens do livro, se trata da “destruição das palavras”.

“Com a introdução definitiva da novafala não seria mais necessário adulterar os fatos: a própria linguagem se ocuparia do embotamento da consciência, impedindo o pensamento crítico e a ação reformadora”, frisa Pen.

O professor acredita que, com isso, “ele antecipou o risco não apenas do que hoje passou a ser chamado de ‘fatos alternativos’ ou ‘fake news’, mas ainda da pobreza da linguagem que prolifera nas novas mídias, em certo proselitismo políticos e religioso, e nas redes sociais, que tem consequências nefastas para o pensamento, a imaginação e a democracia.”

“A meu ver, Orwell previu de modo certeiro um aspecto do mundo contemporâneo: hoje em dia tudo que fazemos ou dizemos é registrado de modo implacável”, acrescenta Britto. “Só que a imensidão de dados gerada por essa vigilância constante não está nas mãos dos Estados, porém é controlada pelas big techs.”

Paralelismos e fake news

O tradutor Mattos atenta para um fato, para ele “mais interessante mas menos comentado” presente em 1984 e no mundo de hoje: mais do que a vigilância constante, “a disposição das pessoas em viverem assim”. “As câmeras hoje nem precisam estar escondidas, porque a gente está acostumado a viver rodeado por câmeras e a se expor”, diz.

Sem cair em anacronismos, é possível traçar muitos paralelos entre o mundo distópico imaginado por Orwell e as sociedades contemporâneas.

“Hoje é impossível a gente não olhar para essa obra e não fazer uma analogia a partir do nosso mundo. Não temos nem mais ficção que de conta de nossos modelos, dos meios de vigilância que são muito maiores do que os apresentados pelo livro”, diz à BBC News Brasil o filósofo e psicólogo Marcos da Silva e Silva, professor na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e da Universidade Federal do ABC.

Fido Nesti/ Divulgação

“Observando as alegorias tecnológicas, […] o autor pretendeu-se uma espécie de profeta, desenhando o que viriam a ser uma realidade na virada para o século 21”, aponta à BBC News Brasil o historiador Rafael Maranhão, professor no Colégio Presbiteriano Mackenzie Brasília.

Para ele, considerando “o controle do fluxo de informações proposto por alguns governos atuais, há uma linha tênue entre vigilância para a contenção de crimes e o controle total daquilo que o cidadão faz em seu cotidiano”.

“A evolução na tecnologia da informação ampliou a possibilidade do controle das percepções, promovendo uma educação de massa”, prossegue. “Em nenhum outro momento da humanidade foi tão simples definir as preferências da populações. O uso dos algoritmos nos diversos aplicativos e as AIs [inteligências artificiais] tomando os espaços refletem um pouco da proposta e crítica realizadas pela obra de Orwell.”

Maranhão ressalta que “o totalitarismo, em sua essência, se alimenta do controle nos diversos setores e da criação de realidades paralelas que resumem suas pretensões políticas, econômicas, sociais e culturais”.

O ilustrador Nesti conta que a repercussão de sua graphic novel é praticamente um atestado de como há paralelos entre o universo orwelliano e o mundo contemporâneo. “Como a adaptação em quadrinhos foi lançada em mais de 20 países, é curioso receber mensagens de leitores dos mais diversos lugares e com todo o tipo de governo, declarando que a sua realidade é muito parecida com a do livro” comenta.

Mas, ao contrário daqueles que mais comumente alardeiam nas redes sociais sobre o viés panfletário do livro, as críticas não se resumem ao espectro político à esquerda.

Fido Nesti/ Divulgação
É possível traçar paralelos entre o mundo distópico imaginado por Orwell e as sociedades contemporâneas

“O aumento de tendências autoritárias da extrema direita, o desprezo pela democracia, o culto à personalidade de governantes e o negacionismo são apenas alguns dos paralelos. O meu celular, que volta e meia parece escutar meus pensamentos, me faz lembrar das vigilantes teletelas da Oceânia. As fake news, que estão aí para manipular a direção que uma pessoa deverá votar, me remetem ao trabalho de Winston Smith no Ministério da Verdade, alterando o passado para controlar o presente e o futuro”, exemplifica ele.

“O fato de que 1984 foi um grande sucesso na época e nunca saiu da lista de best-sellers é prova de que cada época encontra vitalidade no livro”, sintetiza o tradutor Xerxenesky.

“A ameaça do totalitarismo muda de rosto, mas segue presente em todas as épocas, o que com certeza inclui a nossa, com a ressurgência de partidos de extrema-direita globalmente. A reescrita da história, a alteração de fotos, a busca pela construção de uma história alternativa aos fatos, por sua vez, encontra muitos paralelos no mundo contemporâneo regido por fake news e pela manipulação digital.”

Interpretações rasteiras?

Quanto militantes disto ou daquilo se apropriam da obra orwelliana e, não raras vezes sem nem mesmo lê-la, buscam fazer dela panfletos, o que ocorre é o uso enviesado de um clássico literário.

E isso independe das vontades ou das idiossincrasias do autor, diga-se.

Há décadas, por exemplo, a direita italiana usa O Senhor dos Anéis, de J.R.R. Tolkien (1892-1973) como uma espécie de “bíblia” para fundamentar o discurso de “nós contra eles” e a pretensa luta contra “um sistema globalista”.

Em vida, Tolkien não era de direita. Era conservador, mas costumava se posicionar contra totalitarismos e autoritarismos.

“Desde que mundo é mundo, as obras de arte canônicas são lidas de modo a favorecer governos e movimentos políticos. A Igreja Católica transformou Aristóteles num cristão avant la lettre, e se convenceu de que Virgílio previu o nascimento de Jesus na quarta ‘Bucólica’. A coisa vem de longe”, comenta Britto.

“A transformação de Orwell em arauto da direita foi favorecida pelo fato de que ele se tornou anticomunista, leia-se antiestalinista, e a própria CIA [o serviço de inteligência dos Estados Unidos] incentivou a difusão de Animal Farm como propaganda ideológica pró ‘mundo livre’. Mas, apesar do Fla-Flu ferrenho instaurado pela Guerra Fria, Orwell, que publicou esses dois livros no final da vida, justamente quando tinha início a Guerra Fria, sempre foi um libertário de esquerda”, completa o professor.

Pen diz que usar obras literárias como panfletos é algo que “simplifica de imediato a complexidade da discussão”. “É um pouco o princípio da novafala. Você alija a linguagem do dinamismo humano e trabalho com significantes ocos, desprovidos de vida, capazes de ser manipulados para restringir o pensamento”, explica.

Ele lembra que as obras de Orwell “integraram o rol das leituras difundidas no Brasil para sustentar o programa ideológico da ditadura militar”.

Mas ele lembra que é possível “que esse aspecto polêmico” e também “esses usos espúrios” tenham contribuído para o sucesso das obras do inglês.

“É um dos paradoxos da recepção de Orwell. Trata-se de um autor que defendia a liberdade de pensamento e a importância da luta contra o totalitarismo e que foi cooptado por regimes despóticos e pela indústria cultural, pensemos no Big Brother, para veicular justamente o oposto: a pobreza da linguagem, o embrutecimento da imaginação criadora, o autoritarismo, a vigilância”, acrescenta. “E, em parte por isso também, mantém-se até hoje como fenômeno editorial.”

Xerxenesky lembra que “este é um risco que qualquer obra de arte corre”. “Nunca esquecerei que os principais defensores da teoria de que a Terra é plana amam o livro de Orwell”, afirma. “A alegoria construída pelo autor pode ser moldada para encaixar muitas leituras, até mesmo as mais delirantes. Claro que isso não é ideal, mas nenhum autor é capaz de controlar o sentido da sua obra.”

“Quando ela chega ao mundo, os leitores são seus donos. E 1984, por tratar de temas de paranoia contra o governo, inevitavelmente será mais usado por teóricos da conspiração do que outros títulos”, diz ele.

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