A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de descriminalizar o porte de maconha para uso pessoal foi sucedida por fortes reações no Congresso Nacional — formado, atualmente, por uma maioria conservadora.
A mobilização em reação ao julgamento do Supremo já vinha ocorrendo desde março, quando o caso foi retomado pela Corte.
Poucas horas após os ministros da Corte formarem maioria pela descriminalização, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), anunciou a criação de uma comissão especial para avaliar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que criminaliza a posse e o porte de qualquer quantidade de drogas ilícitas no país.
A PEC das Drogas, como ficou conhecida a medida, já foi aprovada pelo Senado e tem no presidente da Casa, o senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG) um dos seus autores.
Logo após a decisão do STF, Pacheco criticou a descriminalização ao afirmar que a Corte estaria invadindo uma competência do Legislativo, e foi rebatido pelo ministro Gilmar Mendes, que afirmou que o Supremo estava cumprindo seu papel de julgar a constitucionalidade de um artigo da Lei de Drogas, que criminaliza o porte de drogas.
A criação da comissão especial na Câmara é a próxima etapa da tramitação da PEC das Drogas. Caso seja aprovada na comissão, vai à votação no plenário.
Se o texto aprovado na Câmara for o mesmo já votado pelo Senado, a PEC entra em vigor — por ser uma emenda constitucional, ela não precisa passar pela sanção presidencial como outros projetos de lei.
Apesar de Lira e alguns dos apoiadores da PEC das Drogas negarem que a criação da comissão especial na Câmara seja uma "reação" ao julgamento do STF, parlamentares contrários à proposta, juristas e cientistas políticos ouvidos pela BBC News Brasil avaliam que a comissão é, sim, uma resposta do Congresso ao STF, que acontece em meio a embates recentes entre o Legislativo e o Judiciário.
Especialistas avaliam, no entanto, que ainda que o Congresso aprove uma PEC em direção contrária ao julgamento do Supremo, no final, a palavra final sobre o assunto continuará sendo do STF.
Reação esperada
Para Marco Antonio Teixeira, professor de ciência política da Fundação Getulio Vargas (FGV), a criação da comissão especial sobre a PEC das Drogas foi uma "reação esperada" do Congresso ao julgamento do STF.
"Há algum tempo, o Congresso tem deixado de legislar [sobre determinados assuntos] e, ao fazer isso, abre lacunas a serem preenchidas pelo Supremo", diz Teixeira.
"Quando o Legislativo deixa de debater e decidir sobre os temas relevantes da sociedade, o Supremo acaba sendo chamado a decidir. Não adianta reclamar depois."
O deputado federal Nilto Tatto (PT-SP) também vê o movimento de Lira como uma ação reativa ao Supremo.
"Lira está reagindo assim como o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, reagiu em março, colocando o assunto na pauta do Parlamento", afirma o deputado à BBC News Brasil.
Pacheco colocou a PEC das Drogas em votação no Senado em março, e a proposta obteve ampla maioria na Casa e, depois, foi encaminhada à Câmara.
Apesar de o anúncio da criação da comissão especial sobre a PEC das Drogas ter ocorrido logo após a formação de maioria no STF sobre o tema, Lira negou, na terça-feira (25/6), que a decisão de criá-la tenha sido uma retaliação.
"Ela nem será apressada e nem será retardada porque haverá um trâmite normal para que o Parlamento possa se pronunciar sobre este assunto", disse o deputado a jornalistas.
A posição de Lira é semelhante à do presidente da Frente Parlamentar Evangélica, o deputado federal Silas Câmara (Republicanos-AM).
"Não é reação. Ela vai ter a tramitação adequada a um tema dessa complexidade. A decisão pela criação da comissão já estava tomada. É que nós não convocamos entrevistas coletivas para anunciar todas as etapas de tudo o que fazemos", afirma o parlamentar à BBC News Brasil.
Apesar de afirmar que a criação da comissão não é necessariamente uma reação ao Supremo, o deputado criticou a decisão da Corte sobre a descriminalização do porte para uso pessoal da maconha.
"Esse movimento do STF é uma intromissão nas atribuições do Poder Legislativo. O STF constitucionalizou um assunto que não era constitucional e por isso o Congresso está fazendo uma emenda", diz.
Questionado sobre a decisão do STF, Arthur Lira evitou se contrapor diretamente à Corte.
"Não faz parte da minha obrigação e função comentar decisões do STF", disse o parlamentar.
Tanto Lira quanto Câmara avaliam que, independente da velocidade com a qual a PEC será votada, haverá maioria para aprová-la.
"O que existe é uma maioria que hoje se coloca razoavelmente favorável ao texto da PEC. Mas isso a gente só vai ver quando e se a PEC estiver pronta para ir ao plenário", afirmou Lira.
'Tiro pela culatra'
Para o deputado petista Nilto Tatto, o Supremo errou ao julgar a descriminalização do porte para uso pessoal de maconha neste semestre.
"Foi um erro. Não era para ter colocado isso em votação agora, às vésperas de uma eleição municipal. Isso dará ainda mais combustível para a maioria conservadora aprovar uma PEC em sentido contrário, pois vão usar isso como argumento eleitoral na disputa deste ano. A direita conservadora vai ter um palanque muito visível", afirma.
Em outubro deste ano, o Brasil vai realizar eleições municipais.
Tatto afirma temer que, com a atual configuração política do Congresso, uma PEC criminalizando o porte e a posse de qualquer tipo ou quantidade de drogas terá muitas chances de ser aprovada.
"Acho que esse julgamento do STF pode ser um tiro pela culatra. Pode ser que valha por algum tempo, mas o Congresso hoje tem maioria para aprovar uma PEC em sentido contrário", diz.
Marco Antonio Teixeira, da FGV, avalia de forma diferente.
Ele diz não acreditar que haja ânimo na Câmara dos Deputados para votar uma PEC sobre este assunto às vésperas das eleições municipais.
"As eleições para as prefeituras do Brasil, historicamente, não giram em torno de temas nacionais como este. Normalmente, as questões que mobilizam o eleitor são mais locais e regionalizadas", diz.
Para Tatto, o destino da PEC das Drogas deverá diferente do projeto de lei que imputava penas a mulheres que se submetiam ao aborto superiores à dos estupradores.
A Câmara dos Deputados chegou a aprovar um pedido para que o projeto fosse votado em regime de urgência, mas acabou perdendo tração no Parlamento após uma ampla reação popular contra a matéria.
"Os assuntos são diferentes. No PL do estupro, a situação era diferente. Previa-se uma punição absurda para mulheres vítimas de estupro. No caso da PEC das Drogas, a situação é diferente. Acho que o consenso sobre os dois assuntos na sociedade é distinto", diz o parlamentar.
Congresso pode reverter decisão do STF?
Embora o Congresso possa alterar a Constituição com uma PEC, mesmo uma emenda constitucional pode ser questionada e eventualmente considerada inconstitucional pelo STF.
Isso porque a Constituição tem as chamadas cláusulas pétreas, pontos centrais que não podem ser alterados nem por emendas constitucionais. O Supremo pode decidir que uma PEC é inconstitucional se considerar que ela visa alterar um desses pontos.
"O Direito não aceita tudo. Há princípios que nem emendas podem mudar na Constituição", diz Belisário dos Santos Junior, especialista em Direito Público e ex-secretário de Justiça de São Paulo. "Então, se aprovada, essa PEC não garante o fim da discussão."
"Para que uma PEC seja considerada inconstitucional, é necessário que ela viole de forma clara e direta um ou mais dispositivos da Constituição Federal", Beatriz Alaia Colin, especialista em direito penal.
São cláusulas pétreas, por exemplo, os direitos e garantias individuais tratados no artigo 5º da Constituição.
Na decisão desta semana, o STF determinou que criminalizar o usuário de maconha é inconstitucional com base em uma "interpretação mais abrangente e sistemática de diversos princípios e artigos constitucionais", explica Colin, advogada do escritório Wilton Gomes.
Um dos artigos considerados, explica Colin, é justamente o 5º, especialmente nos incisos 10 — que garante o direito à intimidade e à vida privada, protegendo a autonomia individual sobre o próprio corpo e as escolhas pessoais — e 12 — que assegura o princípio da proporcionalidade, exigindo que as medidas estatais sejam adequadas, necessárias e mínimas para alcançar seus objetivos.
Mas isso não significa necessariamente que a questão envolvendo a criminalização do usuário seja uma cláusula pétrea — isso também dependeria de uma deliberação da Corte caso alguém questionasse a PEC.
"A constitucionalidade da PEC poderia ser questionada por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI)", explica Colin, com o argumento de que a emenda "viola os mesmos princípios e dispositivos constitucionais que fundamentam a decisão do STF sobre a descriminalização".
Ou seja, caso uma nova ação no STF questione a validade da PEC, os efeitos da emenda dos deputados ficariam suspensos até o julgamento final do Supremo sobre ela, explica Colin.
Ou seja, mesmo com a aprovação da PEC, a palavra final sobre o tema ainda será do Supremo, pois é a corte que tem o poder de decidir sobre a interpretação da Constituição.
Julgamento longo e complexo
O julgamento sobre o porte de maconha para uso pessoal começou em 2015 e foi interrompido diversas vezes por pedidos de vistas.
Neste ano, ele foi retomado pela Corte, atualmente presidida pelo ministro Luís Roberto Barroso.
Os ministros, porém, ainda debaterão na quarta-feira (26/6) qual a tese final a ser fixada no julgamento e quais os parâmetros de quantidade de maconha vão diferenciar o usuário do traficante.
A partir de diferentes abordagens jurídicas, oito ministros se manifestaram pela descriminalização: Gilmar Mendes (relator da ação), Luís Roberto Barroso (atual presidente do STF), Rosa Weber (já aposentada), Edson Fachin, Alexandre de Moares, Dias Toffoli, Cármen Lúcia e Luiz Fux.
Fux fez uma fala crítica ao consumo de drogas e seu voto foi lido, incialmente, como contrário à descriminalização. Mas, após o julgamento, ele disse que acompanhava a maioria.
Cristiano Zanin, André Mendonça e Kassio Nunes Marques entenderam que a criminalização do porte de drogas para consumo é constitucional, ou seja, deve continuar em vigor.
Ainda não há definição sobre como, na prática, a descriminalização do porte para uso pessoal de maconha vai ocorrer.
Magistrados como Gilmar Mendes e Barroso têm dado declarações afirmando que a descriminalização não deve ser interpretada como uma liberação do uso indiscriminado da maconha e que o seu porte ainda será considerado ilícito, ainda que não passível a uma punição na esfera criminal.
Também ainda não foi definida a quantidade de maconha que uma pessoa poderá portar para ser considerada usuária e não traficante da droga. Essa definição é esperada para os próximos dias.
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