A industrialização de um país e o consequente aumento das vagas de emprego no setor ajudam a fortalecer a democracia, de acordo com Sam van Noort, professor da Universidade de Princeton (EUA) e PhD em desenvolvimento econômico pela Universidade de Cambridge (Reino Unido).
"A democratização é mais consistente com a ampliação do emprego industrial, em oposição a outras variáveis econômicas nas quais temos nos concentrado, como PIB per capita ou renda", afirma.
Em entrevista à BBC News Brasil, van Noort destaca que a atividade industrial oferece uma capacidade de mobilização dos trabalhadores, treinando habilidades necessárias para a atuação política.
Trabalhadores da indústria, diz ele, "tendem a ser atores sociais e políticos mais fortes", com "influência muito maior para impor custos econômicos à economia e na elite de um país".
"[Na indústria] você tem que ser capaz de trabalhar junto com muito mais gente, mesmo com quem você não conhece, e tem que se organizar direito em uma grande ação coletiva. Então essa é uma das razões pelas quais a indústria é particularmente suscetível a gerar capacidade de mobilização. Isso cria essa habilidade", afirma.
Noort também afirma que regiões dos EUA, como o meio-oeste, sofrem com a desindustrialização acelerada após a entrada da China como grande player industrial, fazendo com que haja um aumento da radicalização política.
"Essas áreas foram expostas ao choque da entrada de indústrias chinesas que tinham vantagens competitivas e, quando se observa tendências nesses locais, há uma tendência para a polarização e à radicalização política, em geral, em comparação a áreas onde a China não tem vantagens competitivas", diz.
Para o professor de Princeton, a desindustrialização pela qual o Brasil passa nas últimas décadas também limita o impacto positivo da democracia no país.
"Se você apenas exportar commodities para a China, nunca conseguirá esse efeito positivo do emprego industrial na sociedade, dado que você não precisará de tanta mão de obra remunerada e de alta produtividade", conclui.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista.
BBC News Brasil - Qual a ligação entre a industrialização e a democracia?
Sam van Noort - Penso que há muito tempo na economia política há um interesse pela relação entre o desenvolvimento econômico e a democracia, que significaria eleições livres e justas, imprensa livre, liberdade de expressão, direitos à mobilização, etc. O que a literatura econômica realmente tem feito é olhar para a relação entre rendimento, leia-se PIB per capita, e democracia, com um olhar focado na desigualdade.
O que descobrimos é que, na verdade, estas coisas não estão realmente relacionadas de forma robusta com a democracia. Se olharmos para isto de forma sistemática, para dentro dos países ao longo do tempo, não existe uma relação real entre mudanças nos rendimentos e mudanças subsequentes na democracia.
O que estou tentando fazer é mostrar que o desenvolvimento econômico é importante, mas é outra dimensão desse desenvolvimento que importa para a democracia. No meu estudo, vejo uma correlação entre, não apenas a produção industrial em si, mas, sim, o emprego industrial, que é melhor remunerado e exige um tempo maior de estudo, e a democracia.
Portanto, a democratização é mais consistente com a ampliação do emprego industrial, em oposição a essas outras variáveis econômicas nas quais temos nos concentrado, como PIB per capita ou renda, por exemplo. Essa é a principal conclusão do estudo.
BBC News Brasil - Você cita que a capacidade de organização da indústria se transfere a esses empregados e, mesmo que involuntariamente, isso aumenta a capacidade dos trabalhadores se organizarem politicamente. Como é isso?
Noort - Sim. Há muitas coisas já escritas sobre a indústria de transformação e como suas estruturas são bastante diferentes de outros setores da economia. No setor de serviços, na mineração, construção ou agricultura há diversas maneiras de se produzir, mas são diferentes da indústria em si.
O que eu olho é o que é importante para a mobilização política. Em uma indústria, você divide o processo de produção em muitas partes, com uma divisão de trabalho muito profunda.
Peguemos o exemplo de um carro. Na produção, é natural trabalharem quatro ou cinco mil pessoas. Ali, você separa todas as pequenas peças, então uma pessoa coloca os espelhos, outra a roda, etc, e há muitas divisões de tarefas, em uma profunda divisão de trabalho.
Essa divisão, obviamente, aumenta muito a produtividade. Mas o que estou mostrando é que isso também aumenta a capacidade de mobilização porque você tem que ser capaz de trabalhar junto com muito mais gente, mesmo com quem você não conhece, e você tem que se organizar direito em uma grande ação coletiva. Então essa é uma das razões pelas quais a indústria é particularmente suscetível a gerar capacidade de mobilização. Isso cria essa habilidade.
BBC News Brasil - Além dessas divisões profundas do trabalho, o senhor destaca como mecanismos da mobilização política das massas industriais a economia de escala e as conexões. O que seriam?
Noort - Na indústria, como eu disse, muitas pessoas têm que trabalhar juntas no processo de produção, com divisões profundas de suas tarefas. Mas também há um incentivo muito grande para produzir em larga escala. O custo de você manter uma fábrica de carros que produza mil ou um milhão não difere tanto.
Portanto, há um enorme incentivo para produzir em grande escala, para ter indústrias muito grandes ou, pelo menos, grandes redes que trabalhem juntas. Então, novamente, chega ao ponto que você tem muitas pessoas que precisam ser capazes de trabalhar juntas de alguma forma e precisam se organizar.
Um agricultor pode simplesmente cultivar sozinho. Não há uma espécie de incentivo para ele ter uma escala na produção ou organizar as coisas em massa, certo? No setor de serviços, também, ou mesmo pense em um vendedor. Não há essa característica de um grande grupo de pessoas ter que trabalhar em conjunto porque não há economia de escala nesse tipo de atividade econômica, certo?
Já em relação às conexões, elas significam grandes coisas no processo de produção. Existem muitas empresas que oferecem e exigem produtos umas das outras, certo? Um carro necessita que a indústria tenha conexões com diversas outras partes da economia, desde o produtor de ferro até os vendedores dos carros usados.
Isso significa, basicamente, que os trabalhadores da indústria têm uma influência muito maior para impor custos econômicos à economia e na elite de um país. Imagine se eles param de produzir, todas essas conexões vão parar de ganhar dinheiro.
Os trabalhadores da indústria têm o poder de oferecer um impacto econômico muito maior do que setores com poucas conexões, como o agro, por exemplo, e por isso eles tendem a ser atores sociais e políticos mais fortes.
Portanto, o que importa é basicamente a estrutura das propriedades econômicas dos diferentes setores, que são bastante diferentes entre si. Esse é o ponto principal e a indústria é especial nesse sentido.
BBC News Brasil - Você cita a Coreia do Sul, que passou de uma ditadura a uma democracia em 1988. Como a rápida industrialização pela qual o país passou auxiliou nesse processo? E podemos explicar o processo apenas focando na industrialização?
Noort - No caso sul-coreano, houve uma coligação entre estudantes, igreja e trabalhadores industriais que pressionou o regime pela democracia.
Por lá, você teve um líder assassinado em 1979 e, entre 1980 e 1988, houve uma enorme mobilização, vinda das classes mais baixas, para que o país tivesse eleições livres e justas, que se tornaram um risco para a elite dominante.
Ao contrário de alguns casos latino-americanos, por exemplo, não havia na Coreia do Sul uma elite dividida que se sentiu ameaçada por um processo revolucionário e escolheu a democracia. Por lá, foi realmente pressão vinda de baixo, feita por essa coligação de trabalhadores, estudantes e igrejas, que teve um papel importante em termos de legitimação.
Foi o processo de industrialização, empurrada por uma elite meio fraturada, que mobilizou grupos de pessoas nas ruas, que, por sua vez, pressionaram para introduzir eleições livres em 1988.
Então esse é um dos exemplos claros em que a pressão veio de baixo. Quando você olha para os grupos que realmente estavam nas ruas, eles tendiam a ser as pessoas que trabalham no setor manufatureiro ou em setores adjacentes da indústria, em oposição a, por exemplo, agricultores que ainda representavam grande parte da população na Coreia do Sul naquela época.
BBC News Brasil - E como explicar a China, que captou parte das indústrias desses países, mesmo sendo uma ditadura e permanece assim?
Noort - Bem, essa é uma pergunta muito boa. Acho que a resposta simples seria que, mesmo atualmente, quando você olha para o nível de emprego industrial na China, ainda é mais baixo do que é na maioria dos países ocidentais ou no Japão.
O Reino Unido, em 1928, já tinha cerca de 32% da força de trabalho na indústria. Esse número, hoje, é de 22% na China.
Poderíamos nos perguntar, então, se a China está no caminho da democratização.
Alguns autores, como Steven Levitsky, de Harvard, afirmam que pela China ter passado por uma guerra civil durante a revolução, há uma homogeneidade na classe dominante, muito mais forte do que em outros regimes ou países.
Então, pode ser que a China seja diferente ou simplesmente um caso atípico, isso é possível. Mas ainda há a probabilidade de a democratização da China ainda acontecer, ou, talvez, o nível necessário de emprego industrial ideal ainda não foi e não seja atingido. Então essa é uma questão em aberto.
BBC News Brasil - O Brasil e regiões dos EUA passam por um processo de desindustrialização há anos. Isso tem alguma ligação com o crescimento da extrema direita nesses dois países e as constantes ameaças à democracia vindas desses grupos?
Noort - Acho que ainda estamos trabalhando nisso. É preciso distinguir entre diferentes tipos de industrialização. Nos EUA, acho que já há evidências fortes de que a desindustrialização auxiliou a polarização. Há estudos que mostram que a entrada da China na OMC (Organização Mundial do Comércio), em 2001, fez com que regiões dos EUA perdessem suas indústrias.
Essas áreas foram expostas ao choque da entrada de indústrias chinesas que tinham vantagens competitivas e, quando se observa tendências nesses locais, há uma tendência para a polarização e à radicalização política, em geral, em comparação a áreas onde a China não tem vantagens competitivas.
Mas, se pensarmos, desde a década de 1970 a produtividade na indústria aumentou muito, enquanto a demanda permaneceu inalterada, então isso significa que você precisará cada vez menos de mão de obra para satisfazer a demanda.
De qualquer forma, para mim, a entrada da China como competidora é algo bastante claro nessa derrocada do mercado e da democracia.
Acho que a experiência latino-americana em relação à industrialização foi um pouco diferente. O Brasil nunca realmente atingiu os níveis de emprego industrial como os países ocidentais, ou Coreia do Sul, Taiwan e Japão, por exemplo. Na região, o setor industrial foi muito impulsionado pelo Estado e não foi possível atingir níveis altos de industrialização, o que reflete na forma de como o regime democrático funciona.
Apesar dessas diferenças, a indústria é única no sentido econômico. Ela pode gerar um grande número de empregos bem remunerados e de alta produtividade.
Na África, por exemplo, se você transfere um agricultor de subsistência para uma fábrica básica, mesmo que seja de baixa tecnologia, há aumento na produtividade e isso, no longo prazo, é igual à renda ou é igual ao potencial de renda.
Então, o potencial de renda aumenta nas fábricas, onde eles podem se beneficiar da divisão do trabalho e tudo mais, além de gerar empregos bem remunerados em pesquisa e desenvolvimento, na área judicial, etc.
De qualquer maneira, mesmo nos casos em que você tem uma produção relativamente improdutiva, você tem muitos desses outros empregos que vêm com ela. Então você tem um efeito enorme sobre bons empregos, ao contrário da agricultura, por exemplo.
Mas, em muitos países em desenvolvimento, como o Brasil, houve uma enorme urbanização, mas essas pessoas não são advogados ou programadores de computador, elas estão apenas prestando serviços de produtividade muito baixa. Quero dizer, são vendedores ambulantes, motoristas de táxi, entre outros, e isso é um grande problema no desenvolvimento.
Se você apenas exportar commodities para a China, nunca conseguirá esse efeito positivo do emprego industrial na sociedade, dado que você não precisará de tanta mão de obra remunerada e de alta produtividade. Eu não estudo o caso brasileiro tão de perto, mas é isso que penso.
BBC News Brasil - Colocar barreiras comerciais em setores industriais estratégicos poderia ser uma saída ao Brasil? Quais seriam as soluções para que o país volte a se industrializar e, assim, se fortalecer democraticamente?
Noort - Países possuem diferenças muito grandes em suas capacidades tecnológicas e industriais e, por isso, os argumentos também mudam em relação às barreiras.
No caso dos EUA, por exemplo, penso que há muito menos argumentos para que seja necessário subir barreiras comerciais porque há uma paridade tecnológica com qualquer local no mundo.
Por aqui, algumas pessoas perdem seus empregos porque, provavelmente, estão em setores que não são competitivos e basicamente porque a produção é transferida para algum outro país.
Mas você tem que compensar os perdedores, o que os EUA nunca fizeram, certo? Eles deveriam ter treinado novamente esses trabalhadores, ou subsidiá-los até a aposentadoria, e então eles poderiam ter obtido essas benesses do livre comércio.
Mas por que é diferente entre países muito diferentes em termos de níveis de capacidade tecnológica? Acho que é porque quando você abre o comércio, você tem um mercado extremamente competitivo e uma pressão extrema nas margens de lucro.
O Japão começou a produzir carros na década de 1950. Dezenas de indústrias produziram carros não tão bons por 20 a 30 anos, até eles chegarem no processo que possuem agora. É um processo longo de aprendizado.
Hoje, você sabe que não conseguirá produzir carros tão bons como o Japão ou a Alemanha, mas a diferença está no longo prazo.
Há muitas teorias que abraçam o livre comércio e que, em tese, dizem que não faz sentido para o Brasil se tornar industrial porque vale mais a pena importar carros e exportar commodities para a China.
Mas assim você não vai chegar a lugar nenhum. Quero dizer, pelo menos, não há nenhum país no mundo que tenha alcançado altos níveis de renda apenas vendendo commodities, onde algumas pessoas ficam ricas, mas toda a sociedade é pobre e não há modernidade no sentido do capital humano. Acho que é uma mensagem importante que falta na América Latina.
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