Lisboa — As eleições para o Parlamento Europeu, cujas votações começaram nesta quinta-feira e vão até domingo (9), serão as mais importantes desde a criação da União Europeia, acredita o professor e cientista político Oscar Martinez Tapia, da IE University, na Espanha. "Estamos em um momento diferente de todos os anteriores, devido à instabilidade geopolítica mundial, à guerra da Ucrânia, à redefinição do papel externo da UE em um mundo em conflito, como o de Gaza, com a possibilidade real da volta de Donald Trump à Casa Branca e com o movimento ultraconservador nacional-populista em muitos dos Estados-membros, o que coloca em perigo o próprio espírito do projeto de integração europeu", afirma.
Para ele, em meio a esse quadro de tantas incertezas, a extrema direita está conseguindo aglutinar um expressivo apoio, aproveitando-se da frustração dos cidadãos europeus com erros cometidos, desde os anos de 1980, pelos partidos de esquerda e pelos social-democratas. A percepção entre esses eleitores é a de que a democracia, como modelo de governo, já não atende mais aos anseios da sociedade. A força da ultradireita é tão evidente, destaca o professor, que os conservadores moderados já dão sinais de que foram engolidos pelo discurso dos radicais, tentando normalizá-lo, como se fosse um mal menor. "Esse é o perigo real de a ultradireita se tornar uma força decisiva no Parlamento Europeu", frisa.
Na avaliação de Tapia, ainda não há como dizer que a União Europeia está sob risco. "Mas é certo que nunca antes houve movimentos de extrema direita (e alguns de extrema esquerda) que questionaram tão profunda e exitosamente os fundamentos do espírito de uma Europa grande", afirma. "De alguma maneira, o projeto europeu sempre foi muito dependente da qualidade das elites, que o patrocinaram e o impulsionaram. Hoje, mais do que nunca, é hora de avaliar e eleger as elites políticas que nos levarão à próxima estação nesta longa e agitada jornada", acrescenta.
O cientista político ressalta, ainda, o perigo da disseminação de fake news nas eleições. "Creio que nenhuma democracia está preparada hoje para lutar contra fenômenos tão novos e nocivos como as notícias falsas. As fronteiras legais e éticas da liberdade de expressão são, em muitos casos, permeáveis a ataques às informações verificadas e jornalisticamente confiáveis", diz. Ele admite ser muito complicado lutar contra opiniões desrespeitosas ou diretamente contra mentiras conspiratórias, pois, "em muitas ocasiões, podem ser mais atraentes e viciantes do que a realidade, especialmente para pessoas com níveis mais baixos de educação". A seguir, os principais trechos da entrevista do professor Tapia ao Correio.
Qual a importância das eleições europeias neste momento? Por quê?
São possivelmente as eleições mais importantes da história da União Europeia. É um momento muito diferente de todos os anteriores, devido à instabilidade geopolítica mundial, à guerra da Ucrânia em um momento-chave, à redefinição do papel externo da UE em um mundo em conflito, como o de Gaza, com a possibilidade real da volta de Donald Trump à Casa Branca e com o movimento ultraconservador nacional-populista em muitos dos Estados-membros, o que coloca em perigo o próprio espírito do projeto de integração europeu. Muitos desafios juntos e importantes demais.
As pesquisas eleitorais têm mostrado um forte crescimento da extrema direita? Por quê?
A extrema direita cresceu muito desde a última vez em que se votou para a composição do Parlamento Europeu. As razões são variadas e, algumas, específicas de cada país. Digamos que os grupos de partidos e os tipos de mensagens são bastante heterodoxos, desde os Irmãos de Itália, de Giorgia Meloni, até Vikton Orbán, da Hungria, passando por Marine Le Pen, na França; pela AfD, na Alemanha; pelo Vox, na Espanha; e pelo Chega, em Portugal. Mas todos compartilham visões críticas sobre a imigração, especialmente a muçulmana, com uma ênfase quase apocalíptica sobre a insegurança causada pelos imigrantes e, ao mesmo tempo, com fortes críticas ao que consideram ingerência de Bruxelas em assuntos nacionais. Muitos cidadãos são seduzidos por esse tipo de mensagens locais frente ao cosmopolitismo europeu, que só beneficiaria as elites econômicas e intelectual, chamadas por eles de "castas".
Qual é o risco de a extrema direita fazer uma grande bancada no Parlamento Europeu?
A questão principal que se põe nessas eleições é se os conservadores do Partido Popular Europeu (PPE) se deixarão arrastar pelas mensagens da extrema direita e aceitarão normalizá-las em troca de moderação no euroceticismo. Isto já está ocorrendo com Giorgia Meloni e, de alguma maneira, também Marine Le Pen está jogando com essa estratégia dentro de sua campanha. Se os partidos conservadores moderados da Europa comprarem esse discurso da extrema direita e aceitá-lo como um mal menor, haverá, então, o perigo real de a ultradireita se converter em uma força decisiva no Parlamento.
É possível mitigar o peso da extrema direita no Parlamento Europeu?
Claro que é possível, embora o contexto de polarização crescente não ajude. A chave, na minha opinião, reside na capacidade de conservadores moderados e social-democratas de imporem um certo cordão sanitário em torno dos partidos da ultradireita por meio de acordos e consensos, para reduzir a importância dos votos nacional-populistas na hora de se legislar. Isso implica um compromisso com os valores da UE e, ao mesmo tempo, a compreensão de que é tempo de se construir pontes e propagar o isolamento de mensagens xenófobas e racistas no seio das instituições europeias. É hora da política com letras maiúsculas.
Quais são os principais desafios da Europa neste momento?
São muitos os desafios, e diversos. A guerra na Ucrânia, uma posição mais ou menos comum em relação ao conflito em Gaza, a transição energética, a questão demográfica, a competitividade econômica da UE em um mundo geopoliticamente mais complicado, o deficit democrático nas tomadas de decisões dentro da União, o alargamento do bloco com a adesão de novos países, a política agrícola comum, o controle da imigração ilegal e das fronteiras externas, o avanço da ultradireita, etc. Eu diria que, nestas eleições, teremos de decidir como vamos enfrentar esses problemas e em que mãos nós os colocaremos para tratar de resolvê-los. O futuro, certamente, começa esta semana.
Onde foi que os governos democratas erraram para que haja tanto descontentamento por parte dos eleitores?
Na minha opinião, o principal erro dos partidos socialistas e social-democratas foi se deixar arrastar por políticas econômica neoliberais, apostando na promessa de que os mercados solucionariam magicamente os problemas de toda gente. Desde os anos de 1980, partidos de esquerda europeus se aburguesaram na falsa crença de que o voto havia se consolidado e que a liberalização e a privatização de serviços públicos baseados em critérios de eficiência (saúde, educação, serviços sociais, etc.) tornariam as sociedades mais modernas e ágeis. De fato, como nos recorda Thomas Piketty, os níveis de desigualdade econômica, educacional e de saúde (física e mental) cresceram acentuadamente na Europa nas últimas décadas. Por sua vez, os serviços públicos sofreram uma deterioração importante, e o processo de hiperindividualismo inerente ao capitalismo tardio está destruindo a solidariedade e o projeto comum da sociedade europeia. Os governos de esquerda não souberam e não quiseram arruinar a festa dos mercados.
A União Europeia está sob ameaça? Em que sentido?
Talvez, seja muito cedo para dizer isso. Uma instituição supranacional como a UE sempre está ameaçada desde o seu nascimento, por isso, é provável que seus dirigentes estejam acostumados a desafios maiúsculos. Mas é certo que nunca antes houve movimentos de extrema direita (e alguns de extrema esquerda) que questionaram tão profunda e exitosamente os fundamentos do espírito de uma Europa grande. De alguma maneira, o projeto europeu sempre foi muito dependente da qualidade das elites, que o patrocinaram e o impulsionaram. Hoje, mais do que nunca, é hora de avaliar e eleger as elites políticas que nos levarão à próxima estação nesta longa e agitada jornada.
A social-democracia europeia está perto do fim?
Pessoalmente, creio que não. Mas temos a necessidade de novas lideranças de esquerda, quem sabe, mais corajosas quando se trata de propor soluções realmente de redistribuição de riqueza, de desenhar novos modelos de impostos mais altos e eficientes para os muito ricos e as multinacionais, de voltar a priorizar o tecido associativo que incremente o capital social das comunidades locais, de encontrar um quadro narrativo de solidariedade para reengajar muitos milhões de europeus ao projeto comum, de voltar a promover os grandes valores de "liberdade, igualdade e fraternidade" que outrora conduziram à democracia e que, agora, estão em perigo ou, o que é pior, em desuso.
Por que está tão difícil o surgimento de novos líderes mais moderados de esquerda e de centro-direita?
Precisamente, a desigualdade traz consigo o abandono da crença nos grandes valores que falamos. Nossas democracias estão baseadas na nossa crença de que essas "ficções" são possíveis e desejáveis. O questionamento dos grandes ideais cria frustração entre os cidadãos que gravitam em posições mais radicais, um terreno fértil para a polarização ideológica. Vimos isto no final do século XIX e no princípio do XX, por exemplo. Cidadãos polarizados criam um incentivo para líderes radicais, esclarecidos e salvadores da pátria. Quem quer ser moderado em um ambiente polarizado? A moderação é interpretada como covardia; o diálogo, como fraqueza; e o consenso, como capitulação. E as redes sociais funcionam como caixas de ressonância que retroalimentam a polarização.
A Europa está preparada para lidar com fake news nas eleições?
Creio que nenhuma democracia está preparada hoje para lutar contra fenômenos tão novos e nocivos como as notícias falsas. As fronteiras legais e éticas da liberdade de expressão são, em muitos casos, permeáveis a ataques às informações verificadas e jornalisticamente confiáveis. É muito complicado lutar contra opiniões desrespeitosas ou diretamente contra mentiras conspiratórias que, em muitas ocasiões, podem ser mais atraentes e viciantes do que a realidade, especialmente para pessoas com níveis mais baixos de educação. Na minha opinião, a chave para combater esse mal segue sendo uma educação pública de qualidade e bem financiada por parte dos Estados democráticos.
Qual será o impacto das eleições nos Estados Unidos sobre a Europa?
Obviamente, o que ocorrer em novembro nos Estados Unidos marcará o sinal dos próximos anos na Europa e no mundo. De alguma maneira, muitos governos democráticos estão prendendo a respiração, desejando que Donald Trump não ganhe as eleições, embora, se ele perder, podemos estar condenados a outros processos deslegitimadores que forcem os limites institucionais da velha democracia norte-americana. Resta ver como reagirão os milhões de seguidos de Trump em caso de derrota e se, como advertem alguns, estaremos às portas de um conflito civil de maior magnitude. Mais uma vez, os números da desigualdade nos Estados Unidos diminuíram a fé de muitos cidadãos na democracia sobre a qual se fundou a República. Tentemos assegurar que o mesmo não ocorra na Europa.
A Ucrânia, em guerra há mais de dois anos com a Rússia, realmente tem condições de entrar para a União Europeia?
A adesão da Ucrânia à UE pela via rápida representa um grande desafio para o bloco. Por um lado, seria contraproducente facilitar a incorporação do país sem exigir os mesmos parâmetros que cobrados de outros candidatos. Em termos de corrupção política, por exemplo. Além disso, alguns países-membros como a Hungria ou mesmo a Polônia, poderiam bloquear o acesso, o que provocaria mais divisão interna. Por outro lado, depois do apoio explícito da UE à Ucrânia durante a guerra, será muito difícil não abrir alguma via especial ou incorrer em promessas de acesso premium para um enorme país que está claramente comprometido com o bloco e seus valores frente ao modelo autocrático do Kremlin e de seus aliados. Será preciso trilhar esse caminho com muito cuidado.
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