O Supremo Tribunal Federal (STF) retomou nesta quinta-feira (6/6) julgamento sobre o uso de banheiros por pessoas transexuais. O processo que suscitou a discussão foi encaminhado à corte há dez anos.
Trata-se de uma reparação de danos morais a uma mulher transexual que alega ter sido constrangida por um funcionário de um shopping em Florianópolis (SC) ao tentar utilizar o banheiro feminino.
O julgamento tem repercussão geral. Ou seja, a decisão proferida pela corte servirá de precedente para os casos envolvendo o direito de pessoas transexuais utilizarem os banheiros e demais espaços públicos.
O tema começou a ser discutido em 2015, quando o relator Luís Roberto Barroso e o ministro Edson Fachin foram favoráveis aos direitos das pessoas transexuais. Na sequência, o ministro Luiz Fux pediu mais tempo para analisar o processo, devolvendo-o ao plenário somente em 2023.
O presidente do STF, ministro Barroso trouxe o tema à ordem do dia em 29 de maio, mas o processo não chegou a ser julgado, sendo adiado por diversas vezes até a data desta quinta-feira.
A discussão no Supremo ocorre enquanto avança no Senado um projeto de lei com o mesmo tema. No final de fevereiro, a Comissão de Direitos Humanos do Senado aprovou projeto de autoria do senador Magno Malta (PL-ES) que altera o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e proíbe, em escolas públicas e privadas, o uso do banheiro com base na identidade de gênero.
A proposta ainda precisa passar por outras votações, em comissão do Senado e na Câmara dos Deputados, para virar lei.
À BBC News Brasil, o senador e autor do projeto afirmou que o fundamento do projeto está nos incidentes ocorridos em banheiros públicos nos últimos anos. Sem mencionar um exemplo, ele diz que isso vem ocorrendo especialmente nos banheiros femininos e aqueles usados por crianças e adolescentes.
"A questão central é que a falta de fiscalização nesses locais pode permitir que agressores utilizem esses espaços destinados ao público mais desprotegido", afirmou Malta.
Em 2022, a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT) mapeou 44 projetos de lei contrários ao uso de banheiro por pessoas transexuais, em diferentes casas legislativas pelo país. Desses, segundo a entidade, dez foram aprovados como lei e estavam vigentes até aquele ano.
O vereador de Curitiba, pastor Ezequias Barros (PMB), é autor de um desses projetos contabilizados pela ABGLT. Ele apresentou em 2021 à câmara municipal uma proposta que proíbe os banheiros unisex em escolas municipais e demais instituições públicas da cidade.
“Apresentei essa proposta para, principalmente, resguardar as nossas crianças”, afirmou o vereador à BBC News Brasil. “Isso porque encontrei escolas onde crianças a partir dos 3 anos estavam usando banheiro único, para meninos e meninas”. O texto do vereador, no entanto, não se restringe às escolas.
E, embora não mencione expressamente o uso por pessoas transexuais, o texto determina a proibição do uso de banheiros “por pessoas de sexos diferentes, que não sejam destinados aos sexos masculinos e feminino”.
À reportagem, o vereador defendeu a construção de um banheiro exclusivo para pessoas transexuais. “Se querem um banheiro trans, que se construa um terceiro banheiro”, afirmou à reportagem.
Neste ano, o vereador curitibano, pastor Marciano Alves (Republicanos), protocolou um projeto mais explícito, que prevê a identificação e uso de banheiros pelo critério do sexo biológico. Ou seja, proíbe o uso de banheiros de acordo com o sexo com o qual a pessoa se identifica. O projeto foi anexado ao do pastor Ezequias que está pronto para ser votado no plenário.
Se o projeto em Curitiba for aprovado, Gisele Alessandra Szmidt poderá ser impedida de utilizar o banheiro feminio do próprio local onde trabalha. Ela ficou conhecida como a primeira advogada transexual a subir na tribuna do STF e fazer uma sustentação oral, em 2017. Hoje, é assessora jurídica do Bloco PT/PV na Câmara de vereadores da capital paranaense.
“Me impedir de acessar o banheiro feminio é uma maneira de me expulsar do ambiente de trabalho”, afirma.
A advogada também é representante da ABGLT, uma das entidades que entraram como amiga da corte no processo, ou seja, participam da ação fornecendo informações sobre o tema.
“É surreal que a gente tenha que lutar para usar o banheiro”, afirma Gisele. “Estamos falando da violação da dignidade da pessoa. Estamos falando de um ser humano que teve um acesso a um banheiro negado”.
Para Márcia Rocha, a primeira advogada brasileira a exercer a profissão com nome social e primeira conselheira transexual da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo (OAB SP), o que está em discussão é algo que transcende o uso dos banheiros.
Uma decisão favorável da corte seria, de acordo com ela, útil para educar a população, mais do que simplesmente garantir um direito. “Essa questão do banheiro é uma bobagem, porque quem é contrária afirma que vão usar a possibilidade do uso do banheiro [por pessoas transexuais] para cometer um crime, estuprar”, afirma a advogada. “Isso é uma falácia, porque não existe crime suposto. Você não pode tirar um direito de uma população inteira pensando que alguém um dia pode cometer um crime”.
Processo de 2008
O processo em discussão pelo Supremo Tribunal Federal foi movido em 2008 no Tribunal de Justiça de Santa Catarina.
De acordo com os autos do processo mencionados em texto no site do Supremo, o shopping forçou a retirada da mulher argumentando que a presença dela causaria constrangimento. Ela pediu indenização de R$ 15 mil por danos morais, mas o Tribunal de Justiça de Santa Catarina entendeu que no caso não houve dano moral, mas “mero dissabor”, de acordo com o STF.
Nos últimos anos, o Supremo Tribunal Federal vem discutindo e decidindo sobre temas caros à comunidade LGBTQ+. No ano passado, o Supremo reconheceu que atos ofensivos praticados contra pessoas da comunidade LGBTQ+ podem ser enquadrados como injúria racial. Em 2018, reconheceu a possibilidade de mudança no registro civil sem que para isso seja necessária a cirurgia de redesignação sexual. E em 2011 a corte reconheceu a união civil entre pessoas do mesmo sexo.
“Todos os avanços nos últimos dez anos foram no judiciário”, afirma a advogada Márcia Rocha. “O Congresso não legisla sobre isso e o Supremo vem preenchendo essa lacuna com decisões favoráveis a nós. Mas o ideal seria que tivéssemos leis”.
A própria cidade de Florianópolis, onde ocorreu o caso que suscitou esse julgamento no Supremo, já viveu um cabo de força entre o legislativo e o executivo. Em 2017, o então prefeito Gean Loureiro (PMDB) vetou dois projetos de lei que a Câmara Municipal havia aprovado sobre direitos das pessoas transexuais. Um dos projetos previa punição para condutas homofóbicas, e o outro permitia o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero das pessoas transexuais e travestis.
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