Da laje no segundo andar de sua casa, Fábio Meneghetti conversa com brigadistas do Corpo de Bombeiros enquanto acaricia a cabeça de um pitbull de grande porte sentado ao seu lado. Ele está completamente cercado pela água que ocupa a parte térrea do imóvel.
“Eu vou ficar por aqui. Bah, está muito roubo, incrível. Ontem de noite houve tiroteios. Está uma cidade sem lei. Eu não vou arriscar porque está muita ladroagem”, responde ao bombeiro.
Fábio diz que está em casa com um amigo, mas está praticamente sozinho na rua onde mora em Eldorado do Sul, a 12 km de Porto Alegre.
O município foi proporcionalmente o mais afetado pelas chuvas que arrasam o Estado desde o fim de abril. A cidade chegou a ficar 98% alagada nos últimos dias, segundo o governo.
A reportagem da BBC News Brasil conversou com Fábio enquanto acompanhava, em um bote do Corpo de Bombeiros, o trabalho da equipe que tenta convencer os moradores que ainda resistem em deixar suas casas.
A previsão para os próximos dias é a de que o nível da lagoa do Guaíba suba a ponto de atingir um novo recorde e coloque em risco a vida dessas pessoas. São ainda dezenas, talvez centenas que não querem abandonar o pouco que lhes sobrou - não há um levantamento oficial das autoridades.
“Os caras entraram na casa da vizinha. Eu saí umas 7h para dar uma olhadinha e colocar comida do cachorro. Eu dei uns berros e os caras largaram. Agora vai saber se mexeram ou não”, conta Fábio.
Segundo o morador, à noite é o momento mais tenso.
“Um deserto. Só escuta bala passar. Só entrelaçada de bala. Os passarinhos cantando e as balas.”
Ele diz que tem água e alimentos suficientes para passar dias sem precisar sair de casa. Conta também que improvisou uma bateria de carro para carregar o celular duas vezes ao dia. A comida chegou graças a um helicóptero que levou cestas básicas para a zona, diz.
Rastro de destruição e forte odor
O caminho de Porto Alegre a Eldorado do Sul, que em tempos normais leva menos de meia hora, agora pode levar até 5 com todos os alagamentos.
Só usando uma estrada transformada em corredor humanitário, usada majoritariamente pelas equipes de socorro, é possível encurtar o tempo para uma hora.
No caminho, um rastro de completa destruição, além de um cheiro forte de lixo e de material orgânico em decomposição.
Onde antes havia uma cidade que se orgulhava de ser banhada pelo rio Jacuí e pelo lago Guaíba, agora há veículos completamente embaixo d’água, animais mortos e casas abandonadas com móveis boiando.
Nos comércios, as portas exibem sinais de arrombamentos, sugestão de que sofreram saques.
Na tarde fria de segunda-feira, com a temperatura por volta de 15ºC, o completo silêncio só era quebrado pelo barulho do barco dos bombeiros e algumas motos aquáticas de voluntários.
Durante as duas horas em que a reportagem acompanhou a equipe dos bombeiros, nenhum dos cerca de 20 moradores que receberam a oferta de ajuda aceitou deixar suas casas.
O motivo é sempre o mesmo: cuidar do que restou de seus móveis e objetos pessoais.
Entre as pessoas ilhadas que se recusam mudar para um abrigo estava um casal de idosos. Os bombeiros contam que já insistiram diversas vezes para que eles saíssem, mas foi em vão.
Rudinei Silva dos Santos, comandante dos bombeiros voluntários de Eldorado do Sul, se levanta do mesmo bote onde está a reportagem, sobe na pilastra do portão e se identifica aos idosos que estão abrigados no fundo de uma casa.
Aos gritos para que o casal possa ouvir, ele oferece ajuda para que eles deixem o local em segurança. Os idosos negam, dizem que estão bem e vão permanecer em casa.
“É muito complexo e muito complicado, porque as pessoas estão com muito receio de deixar as suas residências, deixar os seus animaizinhos, seus pets", analisa Santos.
"E também tem a questão do receio de que alguém entre e ainda leve o pouco que sobrou”, segue ele.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Eldorado do Sul tem 40 mil habitantes.
A estimativa dos bombeiros é que cerca de 90% da população do município tenha deixado suas casas e estão abrigadas na casa de familiares ou em alojamentos montados pelo poder público.
“Só se subir mais 5 metros”
No segundo andar de seu imóvel, João Carlos Velasquez Batista diz que deixará o local em apenas uma hipótese: se a água subir até o teto do segundo andar da casa, que não tem janelas e está inacabada.
Trajando um sobretudo - a previsão para os próximos dias é que a temperatura mínima chegue a 5ºC durante a madrugada -, João diz que o pé direito da casa dele é mais alto que o da vizinhança e garante que a água não alcançará a área onde ele está.
Para garantir que dormirá sem ser atingido pela enchente, ele diz ter construído um cavalete de madeira para erguer o colchão onde dorme.
“Só se subir 5 metros [o rio]. Daí, eu tenho um cavalete de 2,5 metros, estouro o telhado e saio de helicóptero. [Hoje], não vão me levar”, diz à reportagem.
João também conta que está cuidando de gatos e um cão de grande porte de um vizinho vizinho. Ele diz que no início da crise chegou a beber água do alagamento, mas afirma que hoje sua situação está confortável.
Ele recebe doações, tem água potável estocada e tem ração para dar aos cães e gatos.
João conta que joga saquinhos com rações em outros telhados para que os bichos se alimentem.
No momento em que a reportagem estava no local, a comida lançada era devorada por ratos que corriam pelos telhados.
No fim da conversa, ele até oferece um café à reportagem.
“Vocês querem uma água? Querem tomar um café? Eu passo um cafézinho para vocês”, oferece.
O bombeiro Rudinei oferece ajuda mais uma vez, antes de seguir na operação.
“Seu João, qualquer coisa que precisar, se mudar de ideia, liga. Um abraço”.
O morador agradece e diz que não há motivo para tamanho cuidado.
“Tenho comida, tenho bolacha, tenho sopa, tenho tudo”.
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