Aos 252 anos, a capital do Rio Grande do Sul enfrenta desde quarta-feira (2/5) o maior desastre natural de sua história.
Um volume incomum de chuva decorrente de fatores meteorológicos excepcionais fez o nível do Lago Guaíba chegar à marca histórica de 5,09 metros ao meio-dia deste sábado (4/5).
Até então, a maior marca em Porto Alegre havia sido atingida em 1941, quando a água chegou a 4,76 centímetros.
A catástrofe atual fez a cidade de 1,3 milhão de habitantes viver cenas que seus habitantes conheciam apenas das páginas dos livros de história.
A cheia de 1941 traumatizou Porto Alegre e foi um dos motores para que a capital gaúcha construísse um complexo sistema anti-enchentes, agora em debate: ele deixou de ser suficiente como defesa?
Assim como há 83 anos, o centro de Porto Alegre, da Ponta do Gasômetro ao Mercado Público, numa extensão de cerca de dois km, submergiu diante do avanço da água. A região abriga os principais órgãos da administração municipal, museus e a sede do Comando Militar do Sul.
Na manhã de sábado, barcos circulavam na região, evacuada horas antes.
A inundação, porém, não se limita ao centro. Há pontos de alagamento de norte a sul na capital.
O Aeroporto Internacional Salgado Filho suspendeu os voos na noite do dia 3. O trensurb, metrô de superfície que liga a capital a municípios da região metropolitana, está fora de operação.
A principal ligação rodoviária da capital com a região sul do Estado, a BR-290, tinha até a noite de sexta-feira (3) oito pontos de bloqueio, incluindo a ponte velha sobre o Guaíba.
Um dique junto ao rio Gravataí, no bairro Sarandi, zona norte de Porto Alegre, começou a apresentar extravasamento na noite de sexta-feira.
O Hospital Mãe de Deus, no bairro Menino Deus, foi atingido pela água, assim como o estacionamento do Shopping Praia de Belas.
A situação de Porto Alegre e de sua região metropolitana – também há bairros inteiros sob as águas em Canoas, Guaíba e Eldorado do Sul – junta-se aos danos de outras áreas do Estado.
No Rio Grande do Sul, mais de 800 mil pessoas estão sem água e quase metade desse contingente está sem luz, de acordo com a Defesa Civil.
Mais de 50 mortes foram confirmadas e há dezenas de desaparecidos, repetindo cenas de tragédia que a região viveu no ano passado, também com fortes temporais.
“Não foi sem precedente”
Porto Alegre tem um sistema anti-enchentes formado por diques e comportas e criado nos anos 1970, mas ele não deu conta da alta velocidade com que as águas do Guaíba subiram nos últimos dias, explica o professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Rodrigo Paiva à BBC News Brasil.
Segundo ele, como a cidade passou décadas sem registrar cheias tão significativas como a de 1941, a demanda popular por melhorias no sistema não era grande.
A semana, no entanto, foi de alertas e debate sobre se essas defesas da cidade eram suficientes, num cenário de intensificação das chuvas nos últimos anos, que estudos e cientistas creditam em parte à crise climática global.
O sistema anti-cheias conta com 68 kms de diques, 14 comportas e 19 casas de bomba, de acordo com a prefeitura de Porto Alegre. Além dessas estruturas, o sistema conta ainda com o célebre Muro da Mauá, uma estrutura de quase 3 km de comprimento, com três metros abaixo do solo e outros três acima dele, construído para proteger os principais prédios históricos de Porto Alegre.
Foi justamente essa barreira real e também psicológica que a cheia atual ultrapassou, com as águas invadindo o Centro Histórico – além de informações a respeito da pressão sobre as demais estruturas.
Na sexta-feira, o diretor do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae), Maurício Loss, disse que o arcabouço de contenção da cidade nunca havia recebido tamanho volume de água, segundo o jornal Zero Hora.
“Não foi sem precedente. Havia avisos de que o padrão de chuvas estava mudando”, pontua Fabrício Pontin, analista político e professor de Relações Internacionais da Universidade La Salle (RS).
“Uma cidade como Santa Teresa, no interior, foi destruída duas vezes em oito meses. Como não se verificou a manutenção do sistema de Porto Alegre?”, questiona.
“Estou num apartamento seguro, estou blindado. Mas nos grupos de WhatsApp dos alunos é desespero puro”, diz ele, frisando em especial a cidade de Canoas, onde sua universidade tem um campus
Para Pontin, as chuvas atípicas encontraram nas cidades opções ambientais e de planejamento urbano que potencializam os danos. O quadro, segundo ele, obriga a debater a dimensão política e ambiental da tragédia.
“Mas não estou otimista que esse debate aconteça”, afirma ele, que avalia que a discussão atual já foi capturada pela polarização política, com alas à direita e à esquerda, ora culpando apenas o governo federal ou apenas forças mais conservadoras pelo problema.
Sem ter para onde ir
A BBC News Brasil percorreu 60 quilômetros na orla do Guaíba na manhã de sábado, do Lami, no extremo sul da capital, ao Centro.
Em todos os bairros do trajeto, havia pontos de alagamento e vias interrompidas. Nos pontos mais críticos, moradores atingidos pela inundação contemplavam o cenário com atitudes que iam da resignação à perplexidade e ao desespero.
Na Praia do Lami, as moradoras Adelita Maria Ramgrab, 57 anos, e Maria Helena Silveira Carvalho, 68 anos, foram expulsas de suas casas pela água, sem ter para onde ir.
"Na última enchente, em novembro, o nível do Guaíba ficou vários metros abaixo de agora”, disse Adelita.
Na esquina da avenida Borges de Medeiros com a rua dos Andradas, celebrada como Esquina Democrática, três policiais da Brigada Militar, a cavalo, montavam guarda diante de uma barreira de contenção feita com tapumes e contêineres. O número de transeuntes, que costuma ser intenso no local nas manhãs de sábado, era pequeno.
Diante da garagem de uma empresa de ônibus na Avenida Beira-Rio, no bairro Belém Novo, na Zona Sul, o motorista Marco Aurélio Santos da Silva, 68 anos, e o cobrador Paulo Fernandes Antunes, 70, contemplavam a praça alagada do outro lado da via.
De um campo de futebol, via-se apenas a parte superior das goleiras. “A empresa retirou os ônibus da garagem como forma de prevenção se o rio subir mais”, afirmou Silva.
Previsão do tempo e água racionada
A meteorologista Estael Sias, uma das fundadoras do site MetSul, uma das referências para previsão do tempo na região e no país, conta que ela mesma foi obrigada a deixar sua casa no bairro Estael Harmonia, em Canoas, onde reside há 15 anos, em razão da inundação da área.
“Somos agradecidos por estar vivos. Ficamos desesperados pelos amigos que não quiseram sair, mas agora é torcer para que as condições melhorem”, afirma.
E que deve acontecer nos próximos dias, para além da torcida? Estael Sias afirma que o vento está mudando para o quadrante norte, contribuindo para mitigar a força das águas em direção a Porto Alegre. Ela antevê uma pausa na chuva entre segunda e quarta-feira na capital.
“A visibilidade na Serra e nos vales só vai aumentar na noite de domingo. Isso significa que o domingo será propício para o resgate”, afirma.
No restante da semana, a chuva deve retornar ao Estado, mas, segundo a meteorologista, em volume menor do que no início do mês.
Em meio aos transtornos, a cidade e o Estado correm para atender as emergências e sequer começaram a calcular as perdas materiais.
O prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, fez uma apelo neste sábado para que os moradores racionem água, já que 4 das 6 estações de tratamento de água estão paradas na cidade:
“É fundamental que não haja desperdício de água. Não dá para desperdiçar um copo de água, neste momento.”
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