Trabalho

'Não quero ser chefe. Não vale a pena': os brasileiros que querem mais equilíbrio entre trabalho e vida pessoal

Pesquisa recente mostrou que, embora 27% dos entrevistados queiram ganhar mais e ter benefícios melhores nos próximos dois anos, só 10% ambicionam assumir cargos de gestão.

A fotógrafa Paula Oliveira, de 29 anos, trabalha em uma agência de comunicação com atendimento de clientes e, quando pensa nos próximos passos da carreira, diz ter uma certeza: não quer ser chefe.

Na contramão de profissionais que desejam alcançar cargos de gerência e diretoria, ela afirma que, muitas vezes, os ganhos financeiros não compensam a sobrecarga.

“Não quero seguir o caminho de liderança, porque acho que não vale a pena quando traço um panorama sobre o salário que se ganha e as responsabilidades que se tem”, explica Paula.

Por ser mãe de uma menina de 1 ano e 6 meses, Paula também busca ocupações que não exijam que ela fique muito além do horário de expediente ou que tenha que trabalhar no fim de semana.

“Eu me separei em dezembro do ano passado e minha filha fica comigo 100% do tempo, e acaba que eu tenho mais responsabilidade com ela”, diz Paula.

Ela chegou a essa conclusão depois de receber propostas de trabalho em outras agências e recusá-las para ter mais tempo livre com a filha.

“Eu sei que em um cargo de coordenação eu posso ter que ficar mais tempo no trabalho. Muitas empresas pedem isso, porque acumula muita atividade”, diz.

“Hoje em dia, prezo muito mais pela minha qualidade de vida e pela minha saúde. Posso ser a melhor dentro do meu cargo, mas não tendo uma posição alta de liderança.”

Paula faz parte de uma parcela relevante dos profissionais brasileiros que buscam cada vez mais um equilíbrio entre a vida pessoal e o trabalho e planejam sua carreira de acordo com isso.

A pesquisa “Futuro do Trabalho 2024: onde estamos e para onde vamos”, da plataforma de inteligência Futuros Possíveis, com 2.011 pessoas com mais de 16 anos, identificou que, embora 27% queiram ganhar mais e ter benefícios melhores nos próximos dois anos, só 10% ambicionam assumir cargos de gestão.

Dentre os participantes, 20% disseram que gostariam de trabalhar menos horas e 12% disseram que querem ser promovidos para um novo cargo ou função, mas sem chefiar equipes — um desejo que foi especialmente pronunciado entre os participantes da chamada geração Z.

“Esses dados mostram uma quebra de paradigma”, diz Angelica Mari, cofundadora da Futuros Possíveis e especialista em inovação e futuro.

“O que é ser bem-sucedido? Quando falamos de competências que não são técnicas, como autonomia, criatividade e empatia, a trajetória profissional de uma pessoa, para ser bem sucedida, não necessariamente precisa estar relacionada a um cargo de gestor ou diretor.”

A nova mentalidade profissional reflete não só a preocupação com flexibilidade e tempo livre, mas também uma reavaliação das prioridades na carreira, destaca Mari.

O salário ainda é o fator mais importante na hora de avaliar um novo emprego, segundo a especialista.

Mas, na hora de decidir se vai aceitar uma proposta ou permanecer em um cargo, a carga horária exigida e a autonomia de ajustar o horário de trabalho de acordo com as necessidades pessoais são fatores que têm cada vez mais importância.

Em resposta a isso, empresas têm tentado encurtar as jornadas de cinco dias de trabalho por semana.

Enquanto isso, um contingente relevante de trabalhadores está um passo atrás nessa busca por uma vida profissional menos exaustiva e quer acabar com o regime de seis dias de trabalho para um de descanso.

“Não é novidade que as pessoas estão esgotadas, depressivas e tendo burnout”, diz Rick Azevedo, de 30 anos, criador do movimento Vida Além do Trabalho. Ele fez uma petição no Congresso pelo fim desta escala, que ainda é padrão em muitas indústrias e no varejo

“Se querem fazer algo em prol do trabalhador, que eliminem a escala 6x1.”

O que pensa a geração Z

Getty Images
Para a geração Z, o sucesso não é apenas uma questão de alcançar determinadas posições hierárquicas

O desejo de ser promovido sem ter a responsabilidade de liderar uma equipe foi especialmente pronunciado na pesquisa da Futuros Possíveis entre os profissionais da chamada geração Z, que engloba pessoas com idades entre 16 a 29 anos, como é o caso de Paula Oliveira.

Essa foi a faixa etária onde mais pessoas disseram que não pensam em ser chefes, 16% ao todo.

Em comparação, entre aqueles com mais de 50 anos, só 7% disseram querer a mesma coisa.

“A gente foi ensinado que somente o trabalho dignifica, mas não é a única coisa. Existe também o seu talento, o que você gosta de fazer, isso faz parte de quem você é. A geração Z traz muito desse discurso", diz Mari.

“Vem muito isso da geração anterior falar que quem é novo não é compromissado, mas isso não quer dizer que eles são descompromissados, eles estão abrindo novas rotas profissionais."

O foco desta geração não está apenas na busca por um emprego, mas de oportunidades que permitam usar ao máximo suas habilidades individuais e estejam em sintonia com seus desejos.

“As novas gerações estão mais focadas neste aspecto e mais dispostas a deixar um emprego quando não existe essa compatibilidade”, diz Paul Ferreira, professor de estratégia e liderança na Escola de Administração de Empresas de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas (FGV/EAESP).

Para a geração Z, o sucesso não é apenas uma questão de alcançar determinadas posições hierárquicas. Mais do que isso, eles valorizam a clareza e a transparência em relação à sua trajetória profissional.

“Eles desejam saber claramente como suas ações e esforços os levarão a determinadas posições no futuro, e quais benefícios isso trará”, diz Ferreira.

Além disso, segundo o professor, a geração Z demonstra uma mentalidade mais voltada para o curto prazo, preocupando-se principalmente com sua satisfação imediata.

“Se comparado com a geração anterior, os millennials, que estavam dispostos a fazer uma série de coisas pensando lá na frente, a geração Z não está disposta a muitos sacrifícios em prol de uma evolução de carreira’”, afirma Ferreira.

“Isso faz uma diferença muito grande. Toda vez que houver uma possibilidade de mudança, esse profissional irá pensar “isso me faz mais feliz ou menos feliz’?””.

Mudanças no mercado

Arquivo pessoal
Com um trabalho fixo em três dias da semana, a psicóloga Victória Pasqual usa os outros dois para fazer atendimentos e complementar a renda — mas diz que mesmo assim sua rotina está melhor do que no passado

Uma das mudanças mais perceptíveis no mercado em reação às novas ambições e desejos dos profissionais é a adoção de jornadas menores.

Algumas empresas começaram a testar a semana de quatro dias de trabalho, enquanto outras passaram a dispensar os funcionários mais cedo às sextas-feiras, a chamada short friday.

Ferreira diz, no entanto, que a adaptação mais comum no momento é oferecer uma flexibilidade de trabalhar de casa parcial ou integralmente.

“A escolha entre trabalho presencial, híbrido e remoto é direcionada a melhorar a produtividade por meio de um melhor atendimento das preferências dos colaboradores”, explica o especialista, que acrescenta que a semana de trabalho mais curta também visa o mesmo objetivo.

A psicóloga Victória Pasqual, de 25 anos, já tem uma escala de três dias de trabalho durante a semana, com uma jornada de dez horas por dia com uma pausa de uma hora para o almoço.

Quando trabalhava antes em uma ONG, cumprindo uma escala 5x2, com 40 horas semanais, ela diz que “não tinha tempo para nada”.

Agora funcionária de uma instituição pública do Rio de Janeiro na área de saúde mental, Victória diz que a mudança no regime de trabalho fez diferença, porque ela pode estudar mais e ter tempo livre para suas atividades de lazer.

Isso é especialmente importante na função que exerce, gerenciando uma equipe de acompanhantes terapêuticos de pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS), o que tem um impacto direto na sua própria sua saúde mental.

“Eu trabalho com histórias de vida muito sofridas. Tem um desgaste afetivo também”, diz.

Ela conta que, além das 11 horas no trabalho por dia, passa mais 4 horas no transporte público para ir e voltar, o que acaba sendo muito cansativo.

“Se eu não tivesse dois dias a mais de folga, não sei como faria. Acho que não conseguiria trabalhar, pois há vários níveis de exaustão.”

A psicóloga ressalta que, com dois dias livres na semana, ela consegue fazer atendimentos particulares para complementar a renda e, mesmo assim, considera sua atual rotina mais saudável do que no passado.

“Era muito desgastante chegar em casa e não ter energia para nada. Hoje, eu tenho dois dias na semana para dar conta de outras coisas”, diz Victória.

Vida além do trabalho

Rick Azevedo também se sentia esgotado quando trabalhava seis dias por semana como balconista em uma farmácia do Rio de Janeiro.

“Eu nunca fui uma pessoa satisfeita de ter um dia de folga apenas”, diz Rick, que viu um vídeo que gravou com um desabafo sobre essa rotina viralizar nas redes sociais.

Ele conta que muitos usuários se identificaram com aquela situação, muitos deles da geração Z que também não viam sentido em uma jornada de trabalho exaustiva.

Ver essa insatisfação ecoar entre tanta gente o fez criar o movimento Vida Além do Trabalho para pedir o fim da escala 6x1.

Ele também criou grupos no WhatsApp e no Telegram, que têm somados cerca de 12 mil membros, por onde ele conta que recebe muitos relatos denunciando jornadas que consideram abusivas.

“A gente tem uma ilusão que a CLT protege. Mas a CLT está defasada desde a última reforma trabalhista. Tem trabalhadores sendo explorados”, diz.

Para mudar essa realidade, Rick fez uma petição ao Congresso que já teve mais de 790 mil assinaturas de apoio.

“Pedimos também uma mudança para uma escala 4x3 e uma redução da jornada de 44 semanais [adotada por algumas empresas] para 40 horas.”

O carioca Caio Oliveira, de 33 anos, é um dos profissionais que sentiu na pele o quão exaustivo pode ser uma jornada 6x1.

Arquivo pessoal
Caio Oliveira conta que já ficou quase oito anos sem tirar férias

Trabalhando na área de hotelaria e de serviços como bares e restaurantes, ele conta que, por muitos anos, folgou só um dia na semana e, por causa de mudanças de emprego em sequência, chegou a ficar quase oito anos sem tirar férias.

Caio diz que isso afetou sua saúde mental e física.

“Eu tinha muito contato com pessoas, e acho que quem está na frente da operação cansa muito. Não só a parte física, mas também mental”, diz.

“Muitas vezes a gente tem que lidar com os problemas da nossa vida e tem que estar preparado para receber pessoas. Você às vezes tem que vestir uma máscara.”

Mas, no início do ano passado, ele conta que assumiu um cargo administrativo e passou a trabalhar cinco dias por semana, de segunda a sexta.

Agora, diz que tem mais qualidade de vida e pensa em voltar a estudar, o que não seria possível com as escalas puxadas de antes e sem ter a flexibilidade de horário que sua função hoje permite.

“Consigo ter mais tempo não só para cuidar de mim, para ter o meu tempo também, meu espaço, minha casa e dividir mais o tempo com minhas amizades e com quem quero ter próximo de mim”, diz.

“Eu não voltaria para como era antes de forma alguma.”

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