Com valor estimado de US$ 23 milhões (cerca de R$ 120 milhões) por ano, o contrabando de madeira das florestas antigas de Moçambique para a China ajuda a financiar a brutal insurgência islâmica e uma grande rede criminosa no norte do país africano.
O comércio ilegal de pau-rosa foi relacionado ao financiamento de violentos militantes moçambicanos ligados ao grupo autodenominado Estado Islâmico, na província de Cabo Delgado, segundo dados da ONG Agência de Investigação Ambiental (EIA, na sigla em inglês), analisados pela BBC. A organização se dedica a denunciar supostos crimes ambientais.
Pau-rosa é o nome comercial comum que identifica diversas espécies de madeiras nobres tropicais, muito valorizadas na China para a fabricação de móveis de luxo.
Um tratado internacional protege o pau-rosa moçambicano, permitindo apenas o comércio de quantidades muito limitadas, que não ameacem a perpetuação da espécie.
Mas uma investigação secreta da EIA na China e em Moçambique revelou, depois de três anos, que a má gestão das concessões florestais oficiais, a derrubada ilegal de árvores e a corrupção entre as autoridades portuárias vêm permitindo a expansão desse comércio, sem que haja fiscalização nas áreas controladas pelos insurgentes.
Esta revelação vem a público ao mesmo tempo em que recrudescem significativamente os combates no norte de Moçambique.
Em 10 de maio, pelo menos 100 insurgentes realizaram seu maior ataque em três anos, na cidade de Macomia, em Cabo Delgado. O ataque foi contido pelo exército moçambicano.
O local onde ocorreu o ataque confirma que a insurgência expandiu sua área de atuação, devido à maior presença de soldados nas regiões mais afetadas.
E o movimento "também conseguiu fundos suficientes para recrutar pessoas na província vizinha de Nampula, mais ao sul", segundo o analista Joe Hanlon, especializado em Moçambique.
A BBC teve acesso ao relatório intitulado Avaliação Nacional dos Riscos de Financiamento do Terrorismo, publicado pelo governo moçambicano no início deste ano.
O documento afirma que insurgentes do grupo al-Shabab se aproveitam do comércio ilegal de madeira para "alimentar e financiar a multiplicação da violência".
Segundo o relatório, o envolvimento dos insurgentes no "contrabando de produtos de fauna e flora", incluindo madeira, e na "exploração de recursos florestais e da vida selvagem" contribui para um "nível muito alto de financiamento" para o grupo insurgente.
A receita estimada dessas atividades soma US$ 1,9 milhão (quase R$ 10 milhões) por mês.
Devido às dificuldades de acesso à região de Cabo Delgado, no norte do país, é difícil quantificar o nível de envolvimento dos insurgentes no dia a dia do comércio de madeira. Mas existem relatos de empresas que pagam uma "taxa de proteção" de 10% aos grupos insurgentes para poder extrair ilegalmente a madeira da floresta.
As florestas e suas valiosas árvores (não apenas pau-rosa) são divididas em trechos, ou concessões. Qualquer pessoa que quiser desmatar essas áreas deve pagar uma taxa para as autoridades.
As licenças são frequentemente concedidas para cidadãos moçambicanos, que agem como intermediários e as alugam para madeireiras chinesas.
Fontes do comércio que preferiram não se identificar estimam que 30% da madeira extraída em Cabo Delgado provavelmente provêm das florestas ocupadas pelos insurgentes.
Acredita-se que a extração e venda de madeira na província ocorra em três áreas principais de floresta, nas regiões de Nairoto, Muidumbe e Mueda. E há uma quarta região em Napai, na província vizinha de Nampula.
As autoridades chinesas proibiram o corte de pau-rosa no seu território, mas o país continua importando imensas quantidades da madeira.
Na chegada à China, a carga recebe da alfândega o código hóngmù ("madeira vermelha", em chinês), que permite seu rastreamento pelos investigadores.
Em 2023, Moçambique foi o principal fornecedor africano de hóngmù para a China.
O país forneceu mais de 20 mil toneladas, no valor de US$ 11,7 milhões (cerca de R$ 60 milhões), segundo a empresa Trade Data Monitor, que analisa o comércio mundial.
Moçambique superou outras nações africanas, como Senegal, Nigéria e Madagascar.
O motivo é que alguns desses países passaram a fiscalizar suas exportações com mais rigor, enquanto outros já tiveram suas espécies locais devastadas.
Como parte da sua investigação secreta, a EIA acompanhou uma enorme exportação de madeira moçambicana.
Entre outubro de 2023 e março de 2024, os investigadores rastrearam cerca de 300 contêineres de um tipo de madeira conhecido como pau-preto, do porto da Beira, em Moçambique, até a China.
O pau-preto é encontrado no norte de Moçambique e na vizinha Tanzânia. Ele é considerado uma espécie ameaçada e foi incluído na lista vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês).
Os 300 contêineres transportavam 10 mil toneladas de pau-preto. O valor de cada contêiner foi avaliado em cerca de US$ 60 mil (cerca de R$ 308 mil), o que leva o total do embarque para cerca de US$ 18 milhões (cerca de R$ 92,4 milhões).
As filmagens secretas feitas pela EIA e observadas pela BBC mostram que parte daquele embarque também incluiu toras, além de tábuas processadas em serrarias. Esta é uma infração da própria lei moçambicana de 2017 sobre a exportação de madeira não processada.
Fontes do setor afirmam que, quando as árvores são derrubadas nas florestas de Cabo Delgado – seja nas concessões operadas principalmente por empresas chinesas ou nos cortes ilegais além dos seus limites –, elas são normalmente levadas para serem processadas em serrarias perto da cidade de Montepuez.
Essa madeira de diversas fontes é então misturada e transportada de caminhão das serrarias de Montepuez até os portos moçambicanos de Pemba ou Beira.
Nos portos, a carga deveria ser inspecionada por autoridades moçambicanas e receber uma licença de exportação.
No entanto, a EIA afirma que as toras, muitas vezes, são discriminadas de forma irregular ou não são sequer declaradas na documentação alfandegária.
A madeira é transportada de Moçambique para a China por duas das maiores companhias de navegação do mundo – a Maersk e a CMA-CGM, segundo a investigação da EIA.
Um porta-voz da Maersk afirmou, em declaração à BBC, que a empresa está "comprometida com o combate ao comércio ilegal de espécies selvagens e não aceitará conscientemente reservas de espaço para produtos silvestres, quando esse comércio infringir o Cites [a Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas] ou apresentar qualquer outro tipo de ilegalidade."
"Nós solicitamos aos nossos clientes que declarem corretamente o conteúdo da sua carga e dependemos das autoridades alfandegárias para verificar as declarações e certificados. Os embarques só podem ocorrer mediante os certificados Cites e a aprovação das autoridades", segundo a Maersk.
A declaração prossegue explicando que é comum, no transporte marítimo, que os clientes carreguem e lacrem seus contêineres antes de entregá-los à companhia de navegação.
Já um porta-voz da CMA-CGM afirmou que a empresa transporta produtos de propriedade dos clientes segundo as regulamentações locais e internacionais. Ela "não é responsável e não tem meios de controlar a origem dos produtos, todos eles embarcados em contêineres lacrados".
O porta-voz também declarou que "a CMA-CGM deixou de transportar madeira não processada e criou uma norma que proíbe a reserva de espaço a bordo dos navios do grupo para madeira não processada proveniente de Moçambique".
Conservação precisa se tornar prioridade
O desmatamento continua avançando em Moçambique. O país perde o equivalente a cerca de mil campos de futebol de cobertura florestal todos os dias, segundo a ONG Global Forest Watch.
O comércio de pau-rosa é supostamente restringido pelo Cites, mas se tornou o produto florestal mais traficado do mundo, segundo o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC, na sigla em inglês). E, em termos de valores, ele ultrapassou em muito o tráfico de chifres de elefantes e rinocerontes.
O pau-preto moçambicano está incluído no Apêndice 2 do Cites. Por isso, para poder ser exportado legalmente, o governo moçambicano deve realizar uma rigorosa investigação científica denominada estudo de exploração não prejudicial (NDF, na sigla em inglês), garantindo que o comércio não ameaça a sobrevivência da espécie.
A BBC perguntou ao representante de Moçambique no Cites, Cornélio Miguel, se já foi realizado o estudo NDF sobre o pau-preto. Miguel trabalha na Administração Nacional das Áreas de Conservação do país. Ele não respondeu à consulta.
Qualquer negociação realizada sem este estudo constitui violação ao tratado internacional. E a China, como sua signatária, também estaria violando o tratado ao aceitar importações em desconformidade com seus termos.
A BBC entrou em contato com algumas das empresas importadoras chinesas mencionadas no relatório da EIA, mas nenhuma delas quis comentar sobre o recebimento ou não de madeira de Moçambique.
Para os ambientalistas, como Anna Lake Zhu, da Universidade de Wageningen, na Holanda, a força do tratado está no seu cumprimento pelos diferentes governos. Ela acredita que é necessário repensar toda a gestão sustentável do comércio da madeira.
Para Zhu, o tratado não detém a demanda insaciável da elite chinesa por móveis de hóngmù. Ela indica que o processo de relacionar espécies específicas antes da criação de regulamentações mais rigorosas pode criar dinâmicas de mercado, "anunciando efetivamente futuras reduções da oferta", o que, por sua vez, cria a escassez.
Fortalecer a legislação e criar um sistema de rastreamento mais sofisticado poderia melhorar a situação. Mas, na prática, a preservação das madeiras nobres só pode funcionar se ela se tornar prioridade para os países de origem e para os comerciantes de madeira.
E, em zonas de conflito como Cabo Delgado, não parece ser provável que isso aconteça.
Por vários motivos, Cabo Delgado é o "local perfeito" para fazer florescer o comércio ilegal de madeira, segundo o gerente de programas para a África da EIA, Raphael Edou.
Ele descreve a província como um elo de rotas comerciais, que combina contravenções, corrupção e uma população local extremamente pobre.
Além de abrigar algumas das árvores mais valiosas do planeta, Cabo Delgado tem outras fontes de riqueza no seu território. Elas incluem petróleo, gás natural, rubis e safiras.
Estes tesouros atraíram imensos investidores globais, como a empresa francesa de energia Total. Ela construiu uma unidade de liquefação de gás no valor de US$ 20 bilhões (cerca de R$ 102 bilhões).
Já o grupo Gemfields, dono da marca de joalherias Fabergé, detém 75% da mina de rubis de Montepuez, em Cabo Delgado. Sua receita em 2023 foi de US$ 167 milhões (cerca de R$ 857 milhões).
Mas a atividade dos insurgentes na província gerou uma das maiores crises de deslocamento de pessoas da África. Mais de um milhão de moradores locais foram forçados a deixar suas casas.
Os insurgentes atacam civis, conduzindo massacres, decapitações, estupros e sequestros. Casas e aldeias inteiras já foram bombardeadas e queimadas.
Essa violência desestabilizou a maior parte de Cabo Delgado por quase uma década e o governo passou a depender de tropas estrangeiras para policiar a província.
E, com as autoridades ocupadas tentando proteger as pessoas vulneráveis de Cabo Delgado, fica ainda mais difícil defender o meio ambiente e as florestas.
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