Lisboa — Milhares de portugueses tomaram as ruas ontem para celebrar o 25 de Abril, dia da Revolução dos Cravos, que devolveu a democracia a Portugal. Foi há exatos 50 anos que o país se livrou da mais longeva ditadura da Europa — 48 anos. A comemoração deste ano ganhou importância maior devido ao forte crescimento da extrema-direita, que, nas eleições de março último, conquistou 50 deputados na Assembleia da República, quadruplicando de tamanho e se consolidando como terceira força política. Não por acaso, o grito contra o fascismo foi o mais ouvido entre a multidão. "25 de abril sempre! Fascismo nunca mais!", repetia a multidão.
Crianças, jovens, idosos, famílias inteiras se reuniram, sempre com um cravo vermelho nas mãos, e saíram cedo de casa para mostrar o quanto o fim da opressão imposta pelo regime implantado pelo ditador António Salazar foi uma conquista da qual não se pode abrir mão. Os portugueses também não se furtaram em cobrar melhorias para o país, que ainda tem 25% da população vivendo na pobreza, que perde a maior parte de seus jovens todos os anos por falta de boas oportunidades de trabalho, enfrenta uma crise seríssima de habitação e está sendo obrigado a lidar com o envelhecimento da população, com pesado impacto sobre o sistema de saúde.
As irmãs Maria Natália Morais, 82, e Idina Morais, 74, se aprontaram cedo para não perder os festejos na Avenida da Liberdade, em Lisboa, palco das principais comemorações do 25 de Abril. "Sabemos muito bem o que foi a ditadura salazarista. Vivemos naquele tempo e foi terrível", disse Natália. "Embora muita coisa esteja ruim hoje, é mil vezes melhor do que 50 anos atrás. Não quero que a ditadura volte jamais", complementou Idina. Elas garantiram que, enquanto puderem, vão sempre celebrar a conquista da democracia no 25 de abril.
Para a professora Helena Vicente, 61, os valores da democracia, como a liberdade, a igualdade e a solidariedade, são fundamentais para uma sociedade, e Portugal não pode jamais permitir retrocessos. "A extrema-direita me causa repulsa, porque em nada se identifica com o que conhecemos por democracia", assinalou. Portanto, acredita ela, é preciso que todos os portugueses reforcem a consciência sobre o quanto o 25 de Abril foi importante. O italiano Francesco Turko, 32, que viveu por nove anos em Goiânia (GO), endossou as palavras da professora. E ressaltou que faz questão de celebrar a Revolução dos Cravos, pois foi em 25 de abril de 1945 que a Itália pôs fim ao regime fascista de Mussolini. "É o nosso Dia da Liberdade", disse.
Tributo aos antepassados
Trabalhadora da área da saúde, Sônia Monteiro, 54, não desgrudou os olhos e os ouvidos dos diversos grupos que marcaram presença na Avenida da Liberdade. Na avaliação dela, era um alívio ver tanta gente empenhada em defender a democracia, sobretudo, diante dos mais de 1,1 milhão de votos recebidos na última eleição pelo partido de ultradireita. "É urgente enfrentar os movimentos antidemocráticos, que colocam as liberdades em risco. É de arrepiar o crescimento da extrema-direita", afirmou. Ela acrescentou que comemorar os 50 anos da Revolução dos Cravos é uma forma de homenagear seus antepassados, que lutaram pela volta das liberdades. "Muitos morreram para que pudéssemos estar aqui hoje. Temos de lutar sempre para preservar a democracia", reforçou.
O aposentado Carlos Lopes, 63, assinalou que a vitória sobre o fascismo que imperou na ditadura de António Salazar foi um ganho que deve ser preservado a todo custo. "Sabemos o que foi esse período. Sendo assim, temos de lutar contra todos os movimentos que tentam atacar a democracia", frisou. Ele reconheceu, porém, que é importante o país avançar em pontos como habitação, pois há falta de moradias dignas em Portugal, na saúde, na educação e na geração de empregos. Tudo isso, segundo ele, só será possível em um regime democrático e de liberdades.
Acompanhado da Juventude Socialista, o deputado Pedro Nuno Santos, secretário-geral do Partido Socialista (PS), assegurou que a multidão de portugueses que tomou as ruas de todas as cidades de Portugal tem a exata noção do valor da liberdade e da igualdade entre homens e mulheres. "O que vimos neste 25 de Abril foi uma grande demonstração do povo português de que não há regime melhor para se viver do que a democracia", enfatizou. Ele assegurou que os partidos comprometidos com as instituições democráticas vão derrotar a extrema-direita que teima em fincar raízes em território luso. "Esses radicais não têm soluções para os problemas das pessoas, nunca tiveram", acrescentou.
A grande presença de jovens nas manifestações, que foram muito pacíficas, teve um significado especial para as irmãs Maria Natália e Idina Morais. Elas sabem que o discurso conservador disseminado pela extrema-direita tem encontrado eco nesse público de menor idade. "Isso requer uma atenção muito especial, para que as futuras gerações não caiam nas garras dos radicais", assinalou Idina. O aposentado Carlos Lopes emendou: "Tudo passa por um bom sistema de educação. Quanto mais discernimento a pessoa tiver, menos suscetível ela ficará a discursos manipuladores e falsos".
Alerta ao perigo do saudosismo
As comemorações do 25 de Abril passaram também para o Parlamento, a casa da democracia. O presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, pediu que a população tenha humildade e inteligência para "sempre preferir a democracia, mesmo que imperfeita", a se render a ditaduras. "Uma democracia mais aberta a todos, mesmo àqueles que contestam essa mesma democracia", afirmou, numa referência aos extremistas de direita, que têm tentado desestabilizar as instituições. Ele destacou, porém, ser inevitável um novo impulso da democracia pelas novas gerações, "antes que fique saudosismo, nostalgia, mais do passado do que futuro". Só assim, acredita, será possível recriar um país mais justo e promissor.
Para a coordenadora do Bloco de Esquerda (BE), Mariana Mortágua, Portugal foi salvo pela revolução do 25 de Abril. "Dizem-nos, agora, alguns saídos do armário ao fim de 50 anos, que a revolução foi supérflua, um exagero. São os saudosistas do salazarismo. Mas esses saudosistas são perigosos, porque culpam a democracia, a Constituição, pela pobreza que persiste no país, pelo amargo das promessas não cumpridas, pela corrupção que grassa nas privatizações, nas portas giratórias, no financiamento dos próprios partidos da oligarquia. Os saudosistas são perigosos porque vivem para mentir", alertou. "Saibam, contudo, que nenhuma mentira ocultará que, para Portugal, o 25 de Abril foi o começo, foi a beleza de vencer o fascismo", completou.
Para Ana Gabriela Cabilhas, a mais jovem deputada do Partido Social Democrata (PSD), é fundamental reforçar que todos os portugueses têm mais liberdades hoje do que tinham há 50 anos. Ela ressalvou, no entanto, que há muito a ser feito no país. "Temos um Portugal por fazer, que passa pela renovação do compromisso com o futuro", frisou. "Não podemos admitir que a melhor versão da nossa democracia tenha ficado cristalizada no passado, com a Revolução dos Cravos", ressaltou. No entender dela, o 25 de Abril "trouxe a liberdade que liberta", mas há um trabalho inacabado. E o que precisa avançar deve ser definido pela população, que tem de ser ouvida pela casa da democracia. "Os políticos estão a serviço do povo, e são os portugueses que têm de ganhar."
Ataque
Líder da extrema-direita, o presidente do partido Chega, André Ventura, optou pelo ataque em vez de comemorar os 50 anos do fim da mais longa ditadura da Europa. E escolheu como alvo o presidente da República, que havia destacado, em conversa com jornalistas estrangeiros, a necessidade de o país reparar, mesmo que financeiramente, a colonização e a escravidão nas ex-colônias.
Para o radical, Portugal não tem de se envergonhar pelos crimes que cometeu, dizimando populações e traficando mais de 6 milhões de africanos. "Eu amo a história deste país", afirmou. Com discursos como esse, Ventura tem estimulado a xenofobia e o racismo. Não por acaso, os ataques a imigrantes têm sido cada vez mais constantes no país.