Lisboa — Uma das maiores queixas dos brasileiros que escolheram Portugal para viver é o distanciamento com que são tratados pelos portugueses. Há relatos de pessoas que estão há anos morando no país, mas nunca receberam um convite para uma festa ou um almoço na casa de um lusitano. Para que essa barreira seja superada, é preciso apenas um elemento: confiança. Muitos veem exagero nesse comportamento, mas os portugueses ainda carregam consigo resquícios da mais longeva ditadura da Europa — foram 41 anos de autoritarismo —, em que o inimigo podia estar dentro de casa. Qualquer palavra contra o regime de exceção poderia ser denunciada à temida Pide, a Polícia Internacional e de Defesa do Estado. Pais entregavam filhos, irmãos delatavam irmãos, tios e primos não perdoavam opositores. Estima-se que a Pide contava com mais de 200 mil colabores à época.
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Desconfianças à parte, Portugal de hoje, nem de longe, se parece com aquele país controlado por mão de ferro pelo ditador António de Oliveira Salazar, em que a pobreza massacrava a maior parte da população, as liberdades eram cerceadas, as mulheres não tinham voz, gays eram perseguidos e presos, e a força bruta imperava nas colônias africanas. Nos 50 anos da democracia lusitana, que serão comemorados em 25 de abril, graças à Revolução dos Cravos, Portugal convive com um novo inimigo, a extrema-direita, insuflada por um movimento mundial que dissemina o ódio, o racismo, a misoginia, a homofobia e a nostalgia de um país que nunca existiu. “Tudo isso está representado em 50 deputados que foram eleitos para a Assembleia da República. É o retrato do fascismo que tanto combatemos”, diz Ana Gomes, 70 anos, embaixadora aposentada, que foi presa durante a ditadura.
Para Ana, há muito o que comemorar nos 50 anos do 25 de Abril, quando um levante popular e militar derrubou o regime salazarista e, em seguida, restabeleceu a democracia. “Do ponto de vista de desenvolvimento econômico e de liberdades, Portugal se tornou um país muito bom para viver. Pena que a maior parte dos jovens não perceba os sacrifícios feitos pelas gerações anteriores e as tantas vidas perdidas para que a democracia fosse restabelecida no país”, afirma. Os jovens portugueses tiveram papel relevante nas recentes eleições em que a ultradireita, representada pelo partido Chega, quadruplicou a sua bancada no Parlamento. Ela garante, porém, que todos aqueles que viveram no fascismo e no colonialismo não vão desistir do combate, que é ideológico, por justiça social, por liberdade, por democracia.
Ana aderiu aos movimentos políticos que lutavam contra a ditadura ainda muito jovem, não tinha mais do que 18 anos, no início dos anos 1970. “Meu objetivo, quando passei para a universidade, não era o de estudar, apesar de ser muito boa aluna. Queria aderir aos grupos mais radicais para tentar derrubar o regime autoritário que, sabíamos, estava apodrecendo. Nosso papel era pichar frases por Lisboa contra a colonização e a ditadura. Era um momento muito difícil, apanhávamos na faculdade, amigos eram torturados e presos por longos períodos sem qualquer julgamento, muitos sumiam”, conta. Ela lembra que teve a exata noção do que se passava em Portugal quando, aos 13 anos, falou algo sobre o governo de Salazar em uma mesa de jantar na casa dela, em que havia amigos da família. “Fui repreendida por minha mãe, que temia pela nossa segurança, que alguém nos denunciasse”, frisa.
A prisão de Ana Gomes pelas forças repressivas ocorreu em 13 de dezembro de 1973. Ela e mais três amigos estavam em uma missão para sabotar o regime. Por sorte, uma das jovens do grupo era de uma família muito influente, que, quando soube da detenção, se movimentou para livrá-los da cadeia. “Estávamos preparados psicologicamente para irmos para a prisão de Caxias, onde os métodos usados pela polícia contra os opositores eram os mais terríveis possíveis. O objetivo das torturas físicas e psicológicas era o de obter informações sobre participantes dos grupos que atuavam na clandestinidade”, relembra. “Felizmente, fomos libertados no dia seguinte, mas suspensos da universidade e submetidos a processos disciplinares. Quando o 25 de Abril ocorreu, estava impedida de ir à faculdade”, ressalta.
Os erros da esquerda
Aos 71 anos, o professor aposentado Carlos de Oliveira Santos se diz feliz por todos os avanços nos 50 anos do fim da ditadura portuguesa, mas reconhece que o momento exige que as pessoas que defendem as liberdades e a democracia levantem a voz e critiquem os problemas que se acumularam nessa metade de século. “Se não fizermos isso, serão os inimigos da democracia a usarem as críticas a favor deles”, destaca. Na avaliação dele, não há, atualmente, do lado dos democratas, uma corrente ideológica forte que encabece as cobranças. “Isso faz com que as pessoas que sofrem com os problemas sociais, econômicos e políticos se deixem levar para extrema-direita, um perigo”, acrescenta ele, um dos últimos presos políticos a serem libertados, após a Revolução dos Cravos.
Para Oliveira, os partidos de esquerda, que não souberam se reinventar e cometeram consecutivos erros quando estiveram no poder, abriram as portas para que, no cinquentenário da Revolução dos Cravos, a democracia esteja em risco. “É inaceitável que, ainda hoje, 25% da população portuguesa viva na pobreza, que os salários no país sejam tão baixos, que a riqueza esteja concentrada nas mãos de poucos e que o clientelismo seja uma realidade cruel”, desabafa. “Não por acaso, as pessoas descontentes abriram os ouvidos para a ultradireita, que é aceita democraticamente, mas cujo propósito é destruir a democracia”, emenda. “Mas que fique claro: a democracia europeia liberal, com todos os seus problemas, sem dúvidas, é um regime preferível à ditadura.”
A militância política do professor aposentado foi moldada pelo avô dele, Manoel de Oliveira, um ferrenho combatente do regime de exceção. “Boa parte da minha infância foi de visitas ao meu avô onde ele estivesse encarcerado. Na minha juventude, com 15 ou 16 anos, entrei efetivamente na atividade política”, conta. Logo, veio a primeira prisão. “No dia em que pisei na universidade, fui conduzido do Instituto Superior de Ciências Econômica e Financeira para a delegacia, onde fui interrogado e, de lá, para a prisão de Caxias. Eu cresci em uma geração que contestava não só a ditadura, mas, também, uma certa tradição liderada pelo Partido Comunista Português, de influência soviética. Me aproximei muito do movimento maoísta”, detalha.
A participação de Oliveira no enfrentamento ao regime salazarista ficou mais intensa quando ele passou a trabalhar em uma fábrica de aviões. Ali, se aproximou dos sindicatos, dos movimentos operários, inclusive, com ligações a organizações consideradas ilegais pela ditadura. “Em 1972, passei para a clandestinidade. Fui preso em dezembro de 1973, quando a polícia política fez um cerco no local onde eu estava. Recebi uma pena muito longa e só fui libertado em 27 de abril de 1974, dois dias depois da queda do salazarismo”, relembra. Todo esse esforço e sofrimento, diz o professor, foi muito válido para livrar Portugal de um regime em que não se podia falar, não se podia exprimir críticas, em que se desconfiava dos vizinhos, de familiares, das pessoas do lado. “A tortura era geral nas cadeias”, assinala.
Toda a violência usada pela polícia política contra os opositores do regime seguia o modelo adotado por Portugal nas guerras coloniais na África — Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe. “Era uma violência absolutamente descontrolada, usada contra os povos que queriam se livrar do jugo colonial, o que era absolutamente inaceitável”, afirma Oliveira. Pelos cálculos de historiadores, cerca de 200 mil jovens portugueses foram convocados para essas guerras entre 1961 e 1974, e a maioria perdeu a vida.
Foram alguns desses jovens que deram início aos movimentos que resultaram na revolta dos capitães, que lideraram o golpe militar que derrubou a ditadura, comandada por Marcelo Caetano, depois da morte de Salazar, em 1970. “É inacreditável que, nos anos de 1970, depois dos Beatles e da revolta estudantil em todo o mundo, Portugal ainda vivesse em uma ditadura e com várias colônias”, lamenta o professor.
Massacre nas colônias
Lisboa — Nascido em Moçambique, para onde o pai havia sido transferido pelo governo português, António Luís Cotrim, 73, lembra que teve a primeira noção clara do quanto a ditadura fazia mal aos portugueses quando pisou em Lisboa em 1963. “Era pobreza por todos os lados. Apenas uma elite branca se beneficiava do regime. Não havia liberdade”, ressalta. Na colônia africana, por ser de uma família abastada, ele praticamente não tinha contato com a miséria local. “Em 1968, voltei novamente para Lisboa, que estava debaixo d’água, devido às grandes inundações. Aquilo me chocou de uma tal forma, que não consegui dormir. Tive a certeza de que algo estava muito errado”, acrescenta.
Mesmo branco, Cotrim era considerado cidadão de segunda classe por ter nascido em uma colônia. A discriminação era geral. As mulheres não podiam exercer uma série profissões, como de juízas, deputadas, diplomatas, e as que não eram chefes de família não podiam votar. “Se um homem se casasse com uma mulher rica, passava a administrar os bens dela. Ele podia levá-la à bancarrota que nada acontecia”, explica. Foi na faculdade, contudo, que o hoje embaixador aposentado decidiu aderir aos movimentos estudantis para combater as injustiças provocadas pela ditadura. “Estava na sala de aula, quando um grupo de brasileiros começou a falar alto e a nos chamar de fascistas. E eles estavam certos”, diz.
A primeira prisão ocorreu em uma manifestação em frente na penitenciária de Caxias, onde estavam concentrados os presos políticos. Ao deixar a cadeia, Cotrim e os camaradas enfrentaram a polícia de choque, após os estudantes colocarem fogo nos carros de professores defensores da ditadura. “Estávamos revoltados, pois era um sistema repressivo contra todos. A violência estava exacerbada. Um amigo foi morto a balas na minha frente”, afirma. A segunda ida para a cadeia ocorreu antes do 25 de Abril. Ele só foi libertado dois dias depois da queda do salazarismo. Quando houve o primeiro aniversário da Revolução dos Cravos, novamente Cotrim estava na prisão. À época, ele era professor em uma universidade de Portalegre, no Alentejo. Desta vez, foi acusado pelos comunistas de ser um agente da CIA, a agência de espionagem dos Estados Unidos.
“Aos 50 anos do 25 de Abril, posso dizer que, mesmo com todos os seus defeitos, a democracia é o melhor sistema político que existe. É um regime baseado em leis, com respeito aos direitos individuais e à livre manifestação”, assinala. Ele garante que, mesmo com a idade avançada, não se furtará de retornar às ruas para enfrentar os movimentos antidemocráticos. “Não podemos permitir que a extrema-direita, com a xenofobia e o racismo, ocupe o Poder. Será uma vergonha”, reforça o embaixador aposentado.
A companheira de luta, Ana Gomes, que o recebeu de braços abertos quando ele deixou a prisão logo após a Revolução dos Cravos, diz que a maior preocupação quando a ditadura caiu foi proteger os presos políticos. Depois de presenciar, no dia 25 de abril de 1974, no Largo do Carmo, a vitória da democracia, ela e uma centena de manifestantes foram para frente do presídio de Caxias para esperá-los. Foram recebidos a balas pela polícia política, chamada de assassina. Houve mortos e feridos. “Mas aqui estou para dizer que toda a luta valeu a pena. A democracia portuguesa está viva e vamos defendê-la sempre”, sentencia.