Mara Klein, 28, recebeu o sacramento do batismo e sempre frequentou a missa, em Münster (Alemanha). Há quase cinco anos, percebeu-se uma pessoa transgênero. "Foi o começo de uma jornada que renovou minha fé e me aproximou de Deus", contou ao Correio. Por ser ativista pelos direitos queer na Igreja Católica, Mara não se surpreendeu com o posicionamento do Vaticano — o documento Dignitas Infinitas, do Dicastério para a Doutrina da Fé, lista "graves violações da dignidade humana" e coloca a mudança de sexo e a teoria de gênero nesse patamar.
Segundo o texto, que levou cinco anos para ficar pronto e pretende distensionar a ala conservadora da Igreja, qualquer intervenção de mudança de sexo "corre o risco, de forma geral, de ameaçar a dignidade única que uma pessoa recebe no momento da concepção". O documento também alerta que a teoria de gênero "pretende negar a maior diferença possível que existe entre os seres vivos: a diferença sexual". "É profundamente exaustivo e doloroso testemunhar como a Igreja, que deveria proteger as minorias, continua a alimentar narrativas que fomentam a hostilidade para com as pessoas trans", disse Mara. "Eu esperava uma abordagem que levasse em conta as experiências das pessoas trans de fé ou pelo menos assumisse uma postura mais diferenciada, consciente das dificuldades reais da vida dessas pessoas. Na minha experiência, a transição foi o que me aproximou de Deus e me permitiu amar a mim mesmo e ao próximo mais plenamente."
Diretor-executivo do New Ways Ministry, organização que acolhe fiéis católicos LGBTQIAP+ desde 1977, Francis DeBernardo disse ao Correio que ficou chocado com o fato de não existirem evidências de que o Vaticano tenha consultado pessoas transgênero ou não binárias para chegar a essa conclusão. "O documento mostra que não estudou compreensões modernas sobre o gênero que surgiram de comunidades de médicos, cientistas e psicólogos. Essa é uma grave omissão da parte do Vaticano, ao não levar em conta as novas informações sobre a naturalidade da diversidade de gênero", afirmou.
Em relação à defesa das pessoas LGBTQIAP+, DeBernardo admite não haver mudança de posicionamento do Vaticano. "O fato de elas constarem nesse documento não isenta a Igreja Católica do erro por não consultar as pessoas transgênero e não binária", ressaltou. "A defesa dos LGBTQIAP+ soa um pouco rasa, porque, no mesmo documento, não se aplicam os princípios da dignidade humana aos transgêneros e não-binários. Isso mostra que eles não tomam para si os melhores conselhos, não vivem de acordo com os melhores ideais."
Barriga de aluguel
O documento Dignitas Infinitas adverte que a gestação por barriga de aluguel entra em "em total contradição com a dignidade fundamental de cada ser humano". Também associa a aceitação do aborto na mentalidade, nos costumes e na própria lei com uma "crise de moralidade muito perigosa". Bernard Garcia Larrain — coordenador da Declaração Casablanca pela Abolição da Barriga de Aluguel e doutor em direito — afirmou ao Correio acolher "com muita alegria" o fato de o texto recordar que a barriga de aluguel viola a dignidade da pessoa humana, principalmente das crianças e das mulheres. "Hoje em dia, com esse mercado em expansão, é bom que todos os atores internacionais se lembrem de que a barriga de aluguel é uma prática que vai contra o direito das crianças de conhecerem as suas origens."
EU ACHO...
"Para muitas pessoas trans, a cirurgia de afirmação de gênero salva vidas. Sugerir que isso diminui a nossa dignidade é cruel para com aqueles que estão numa situação desesperada entre o amor pela sua igreja e a experiência com a própria identidade e o corpo."
Mara Klein, 27 anos, transgênero não-binário que frequenta a Igreja Católica na Alemanha