Quando foi chamado para fazer parte da gravação instrumental de We Are The World, o percussionista brasileiro Paulinho da Costa teve duas certezas: o sigilo seria fundamental para o sucesso daquela empreitada e a repercussão do trabalho seria enorme.
"Estava certo nestes pontos, mas jamais imaginei que estaria falando sobre esta música quase 40 anos depois”, afirma o músico, em uma entrevista para a BBC Brasil, por telefone, a partir de Los Angeles, onde mora.
A música é de 1985 e a estreia do documentário A Noite Que Mudou o Pop, da Netflix, neste ano, colocou o assunto da sua produção novamente em foco.
O objetivo do single era mobilizar a sociedade estadunidense para o combate à fome na África e fazia parte do projeto USA for Africa (United Support of Artists for Africa, apoio dos artistas unidos pela África, em uma tradução literal). A gravação foi uma ideia do cantor, ator e ativista social Harry Belafonte, que morreu no ano passado aos 96 anos.
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O USA for Africa existe até hoje e afirma ter gerado US$ 75 milhões para programas de combate à fome e de recuperação e desenvolvimento na África e ter apoiado mais de 500 organizações em 21 países do continente.
O projeto também se associou ao WhyHunger, uma entidade de combate à fome nos Estados Unidos que foi criada por um músico e um DJ de rádio em 1975. Juntas, afirmam ter arrecadado também US$ 25 milhões para ações contra fome e por moradia em território estadunidense.
A proposta de Belafonte foi inspirada na Band Aid, um grupo organizado pelo cantor irlandês Bob Geldof e pelo guitarrista inglês Midge Ure para arrecadar dinheiro para ajudar quem passava fome da Etiópia.
O projeto original produziu o single Do They Know It's Christmas? (Eles sabem que é Natal?, em tradução literal) em novembro do ano anterior e teve a participação de artistas como Bono Vox, do U2, Sting, David Bowie, Paul McCartney, Phil Collins, Boy George e George Michael.
O projeto britânico e irlandês lançou sua canção no Natal e gerou um festival em 1985, o Live Aid, com shows na Inglaterra e nos Estados Unidos na sequência, com a participação do Queen, Eric Clapton e Led Zepellin. O Band Aid teve três novas gravações, em 1989, 2004 e 2014. Na versão Band Aid 30, a mais recente delas, o objetivo foi colaborar na luta contra a epidemia do vírus Ebola na África Ocidental.
A ideia de criar a versão estadunidense foi encampada pelos cantores Lionel Richie e Michael Jackson e, em seguida, pelo produtor e maestro Quincy Jones - três dos principais artistas da indústria fonográfica naquela época. Apesar de incluir depois artistas de outras etnias, o movimento se diferenciava por ser liderado por afrodescendentes.
O documentário da Netflix mostra como eles conseguiram, com alguma sorte, reunir em uma noite 42 grandes nomes da música para gravar as vozes do hit. Entre os solistas estavam, além dos próprios Lionel e Michael, nomes como Stevie Wonder, Bob Dylan, Ray Charles, Tina Turner, Bruce Springsteen, Cyndi Lauper, Al Jarreau, Kenny Rogers e Paul Simon.
Participaram como coristas artistas como os atores Bette Midler, Dan Aykroyd, os irmãos de Jackson que fizeram parte do Jackson 5 e o próprio Belafonte.
O brasileiro diz ter ficado muito feliz com o documentário sobre a gravação. “É um trabalho muito bem feito, com um material bem completo”, comenta. Ele fala que ficou emocionado e feliz por ter participado daquele momento especial, resgatado pelo filme.
Mas, apesar de repetirem os elogios, alguns músicos que participaram da gravação se mostraram insatisfeitos com o resultado em um ponto: a falta de crédito para as outras etapas de criação da música, antes da gravação de voz.
Quem tornou a insatisfação pública foi o baterista John Robinson. Ele divulgou um vídeo nas suas redes sociais em que criticava diretamente o diretor do documentário, Bao Nguyen, por não citar a participação dos músicos.
Nele, ele conta o trabalho de produção dos arranjos de Quincy com um trio de músicos: ele próprio, o baixista Louis Johnson e o tecladista Greg Phillinganes. “Nós construímos a base da música junto com o Michael e o Lionel”, afirmou.
Na primeira sessão foi o momento em que foi feita o arranjo, que passou para os demais músicos fecharem a parte instrumental antes da gravação de voz. Paulinho participa da segunda fase. “Eu entrei com um tempero na música."
"Coloquei um pouco da nossa pimenta”, explica, em referência à musicalidade latinoamericana. Outra expressão que ele gosta de usar para definir seu trabalho é “dar corpo” para as músicas, fazer improvisações percussivas que tornam o som mais preenchido.
Depois deste trabalho, a música foi enviada para todos os cantores no dia 24 janeiro.
A gravação, que é tema central do documentário, foi feita quatro dias depois, com todos os cantores juntos em um mesmo estúdio. Assim como havia feito com os músicos, Quincy comandou os solos e coros de vozes.
Depois desta etapa, a música foi finalizada e ficou pronta para ser transferida para as mídias físicas (era um tempo anterior às plataformas eletrônicas).
O lançamento foi simultâneo e global, no dia 7 de março daquele ano, menos de um mês e meio após a conclusão da gravação. O disco vendeu mais de 20 milhões de cópias.
Para Robinson, os músicos que participaram das duas etapas antes da gravação das vozes deveriam ter sido creditados. Por isso, ele cita nominalmente Johnson, Phillinganes, Michael Ormatian, David Paich, Michael Boddicker e Paulinho.
Assim como os cantores, diz Paulinho, os músicos e outras pessoas que participaram da equipe de produção colocaram os objetivos humanitários acima de qualquer remuneração.
“A gente queria que servisse para ajudar a salvar as pessoas que estavam passando fome na África. Foi o maior objetivo de quem trabalhou sem receber por isso”, comenta.
Um hit produzido na Califórnia
Quando Paulinho foi convidado para participar do projeto, os músicos se reuniam com discrição, para evitar o vazamento de informações, o que poderia comprometer o término do trabalho. Muitos deles já haviam trabalhado juntos em outras gravações e são amigos até hoje.
O local escolhido para a produção dos arranjos foi o estúdio Lion Shares, em Beverly Hills, de propriedade de Kenny Rogers. As vozes foram gravadas dias depois no A&M, também em Los Angeles.
O tempo era escasso porque era necessário deixar tudo pronto para o dia da gravação com os vocalistas. Tudo foi preparado em duas semanas.
Como o documentário mostra, a data da gravação das vozes foi marcada com base na entrega do Prêmio American Music Awards, no dia 28 de janeiro daquele ano.
A ideia era aproveitar a presença dos artistas para fazer o registro nas horas seguintes à premiação. A maioria dos artistas saiu direto da premiação para o estúdio.
Gravar com aqueles artistas reconhecidos internacionalmente não era novidade para Paulinho. Nascido há 75 anos na zona norte do Rio de Janeiro, o percussionista foi convidado por Richie, com quem havia gravado nos dois primeiros discos solo, de 1982 e 1983.
Mas esse não era seu único contato entre os astros da gravação. Morando em Los Angeles desde meados da década anterior, Paulinho já havia participado de trabalhos anteriores de Rogers, Jarreau, Janet e Michael com e sem os irmãos, além de outros projetos de Quincy.
O músico chegou aos Estados Unidos em 1972, para tocar com o brasileiro Sergio Mendes, e a partir daí se tornou um dos percussionistas mais requisitados da indústria fonográfica americana.
Estes participantes do hit são apenas uma pequena amostra das estrelas com quem Paulinho já havia tocado na época.
Naquele momento, seus trabalhos já incluíam a participação em discos de artistas estrangeiros como Aretha Franklin, BB King, Barbra Streisand, Cher, Dizzy Gillespie, Ella Fitzgerald, Elton John, Gabor Szabo, Gato Barbieri, Herbie Hancock, Joe Cocker, Julio Iglesias, Lalo Schifrin, Liza Minelli, Rod Stewart, Sadao Watanabe e Stan Getz, além de trilhas sonoras de filmes.
Naquele mesmo ano, ele participaria como ator, no papel de um músico africano, no filme A Cor Púrpura – dirigido por Steven Spielberg e que teve Quincy como um de seus produtores. No ano seguinte, ele tocou na gravação da música La Isla Bonita, da cantora Madonna, e faz uma participação no videoclipe do mesmo sucesso.
A participação em We Are The World deu a ele a oportunidade de participar de um trabalho organizado por um dos grandes ativistas da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos. “Eu era um grande admirador do Belafonte, mas infelizmente não tinha participado de nada com ele antes”, comenta.
Bob Dylan, Bruce Springsteen, Ray Charles e Stevie Wonder são alguns dos participantes do single com quem ele trabalhou depois. Atualmente, a lista de artistas brasileiros e estrangeiros com quem ele colaborou ultrapassa 900 nomes e 6 mil músicas.
Mas a influência do hit no Brasil não se resumiu à participação do músico brasileiro ou à repercussão da gravação em território nacional. A ação incentivou movimentos semelhantes por aqui.
O primeiro deles foi o Chega de Mágoa, projeto capitaneado por Gilberto Gil e pelo Sindicato dos Músicos do Município do Rio de Janeiro, em maio de 1985, na campanha Nordeste Já, em apoio à população carente da região. A música foi creditada como criação coletiva a partir do poema Seca D’Água, de Patativa do Assaré, e teve arranjo de Dori Caymmi.
Alceu Valença, Belchior, Beth Carvalho, Caetano Veloso, Chico Buarque, Djavan, Ednardo, Edu Lobo, Elza Soares, Erasmo Carlos, Gal Costa, Gonzaguinha, Guilherme Arantes, Luiz Melodia, Maria Bethania, Marina Lima, Martinho da Vila, Milton Nascimento, Moraes Moreira, Pepeu Gomes, Rita Lee, Roberto Carlos, Sergio Ricardo, Tim Maia e Tom Jobim foram alguns dos participantes da gravação.
Dois anos depois, um grupo de cantores brasileiros voltou a se reunir numa gravação coletiva. Foi Viver Outra Vez, em solidariedade aos pacientes de AIDS, num momento em que não havia tratamentos eficazes para quem era HIV positivo e o preconceito era muito forte.
A música estreou com um videoclipe exibido no Fantástico, da Rede Globo, antes do lançamento do disco.
Guilherme Arantes, Emilio Santiago, Erasmo Carlos, Elza Soares, Jane Duboc, Neguinho da Beija-Flor e Tim Maia foram alguns dos participantes. Paulo Autran, Fernanda Montenegro, Tônia Carreiro, Lima Duarte e Maitê Proença também participaram do álbum, com as leituras de textos de escritores como Adélia Prado, Carlos Drummond de Andrade, Catulo da Paixão Cearense, Mario Quintana e Paulo Mendes Campos.
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