Lisboa — A República portuguesa tremeu nesta quarta-feira (24/04). Um dia antes de o país comemorar os 50 anos da Revolução dos Cravos, o presidente Marcelo Rebelo de Sousa causou furor ao comparar o novo primeiro-ministro, Luís Montenegro, a um caipira, e o ex-primeiro-ministro António Costa a um "oriental lento". Ele revelou ainda que rompeu com o filho, Nuno, que vive no Brasil, por causa do escândalo das gêmeas brasileiras, que receberam um tratamento de saúde milionário em Portugal, e afirmou que chegou a hora de os portugueses repararem as ex-colônias pela exploração exacerbada, pela escravidão — mais de 6 milhões de africanos foram traficados, a maioria para território brasileiro — e pelos demais crimes cometidos.
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No governo e na Assembleia da República, as declarações do presidente, dadas a jornalistas estrangeiros, foram vistas com estupefação pelo tom preconceituoso e por dar luz a um tema que Portugal prefere deixar no passado, disseminando a falsa visão de que o período colonizador foi de oportunidades para as colônias e seus cidadãos, e não um martírio para os povos massacrados. Essa visão edulcorada do período colonizador é usada pela extrema-direita para alimentar o preconceito, o racismo e a xenofobia. "Temos de pagar os custos da colonização e da escravidão", assinalou Rebelo de Souza, sem explicar como e quando.
Ao longo de mais de quatro horas, o presidente assinalou a preocupação com os rumos que Portugal pode tomar se as duas maiores agremiações políticas — o Partido Socialista (PS) e o Partido Social Democrata (PSD), que está atualmente no governo — não conseguirem se renovar para voltar a falar com as massas, o que a ultradireita está fazendo com maestria. Nesse contexto, ele assinalou o papel de Montenegro, de centro direita, um "político à moda antiga, com comportamentos rurais, imprevisível e que dá muito trabalho".
"Ele é uma pessoa que vem de um país profundo, urbano-rural, com comportamentos rurais. É muito curioso, difícil de entender, precisamente por causa disso. Agora, é completamente independente, não influenciável e improvisador", disse Rebelo de Sousa. Para ele, como decide tudo muito em cima da hora, o premiê, que tomou posse em 2 de abril último, é bem diferente do antecessor, António Costa, que, por ser oriental, era lento, gostava de informar, acompanhar e entregar. "Costa era lento, por ser oriental. Montenegro não é oriental, mas é lento, tem o tempo do país rural. Me faz lembrar o antigo PSD. Já o PS era Lisboa, as áreas metropolitanas", assinalou.
Segundo o líder português, diariamente, ele é surpreendido por Montenegro, "porque ele é imaginativo e tem uma lógica de raciocínio como sendo de um país tradicional, o que dá trabalho". A mais recente surpresa feita por Montenegro, acrescentou o presidente, foi a escolha do jovem Sebastião Bugalho, 28 anos, para encabeçar a lista da Aliança Democrática (PSD/CDS/PPM) às eleições europeias de junho próximo. Todos davam como certo que a liderança seria do presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira. "Foi totalmente uma improvisação, um segredo até o fim", disse.
Com a nomeação dos 17 ministros do governo, não foi diferente, destacou o presidente. "Ele formou um governo de forma impensável. Só começou a convidar os ministros na manhã do dia de me entregar a lista, um risco. E foi tão sigiloso, que nenhum deles sabia do outro. Só foram se encontrar no dia da posse", ressaltou. Esse comportamento, inclusive, impediu que os nomes dos secretários de Estado fossem anunciados no mesmo dia. "Como (Montenegro) é muito sigiloso, corre o risco de virar um político do silêncio, ter uma gestão do silêncio, dos tempos dos generais", complementou. Por isso, no entender de Rebelo de Sousa, é difícil prever se esse tipo de comportamento dará certo num mundo muito ágil e midiático. Montenegro não comentou as falas do presidente.
Racha familiar
Em relação ao filho, o presidente expressou toda a decepção em relação a ele. O líder português está sendo investigado pelo Ministério Público, acusado de favorecer duas gêmeas brasileiras em um tratamento que custou 4 milhões de euros (mais de R$ 22 milhões) aos cofres públicos, a pedido de Nuno Rebelo. "Isso é imperdoável, porque ele sabe que eu tenho um cargo público e político, e pago por isso. Não sei se ele vai ser responsabilizado, não me interessa. Essa é uma das vantagens de se cortar. Ele tem 51 anos, se fosse o meu neto mais velho e preferido, com 20 anos, eu me sentiria corresponsável. Mas, com 51 anos, é maior e vacinado", afirmou.
Segundo Rebelo de Sousa, a relação com o filho já não andava boa havia meses, mas desandou de vez quando estourou o escândalo das gêmeas no fim do ano passado. O rompimento foi tão sério, que, no último Natal, houve uma divisão na família. O presidente passou a noite de 24 para 25 de dezembro em casa, longe de vários dos netos. O distanciamento entre pai e filho começou em uma viagem do presidente ao Brasil. Nuno havia marcado um encontro com vários políticos brasileiros para mostrar influência junto ao governo português. O presidente contou que, quando soube do que estava por trás, ficou extremamente chateado e acabou se distanciando do filho.
"Expliquei a um antigo presidente brasileiro, a presidentes de partidos e a governadores que, se eu aceitasse que ele fosse, eles ficariam convencidos de que a melhor maneira de se chegar até a mim era através do filho. E o filho ficaria convencido de que a melhor maneira de chegar até eles era através de mim", detalhou. "Isso veio poucos meses antes das gêmeas, o que mostrou o acerto da minha decisão (de romper com Nuno)", acrescentou. Ele contou ainda que, quando foi procurado por Nuno, "que é teimoso, é de Leão", sobre uma possível ajuda às gêmeas brasileiras, estava próximo de ser operado do coração. Acabou deixando o caso de lado, até porque a própria Casa Civil da Presidência da República já havia dito que não seria possível atender o pedido do filho.
Quando estourou o caso das gêmeas, Portugal já estava em ebulição por causa do pedido de demissão de António Costa do cargo de primeiro-ministro, acusado de corrupção. Para Rebelo de Sousa, "foi um período chato, de ter um filho com o qual não se tem relacionamento, e que vai continuar sendo chato enquanto for preciso", já que está sendo investigado pelo Ministério Público. Mas ele destacou que o mais penalizador foi a divisão da família, não falar com um filho, que, antes do Natal, pousou em Lisboa disfarçado "com um boné" e óculos escuros.
O tratamento das gêmeas brasileiras, que têm nacionalidade portuguesa, foi aprovado com celeridade nunca vista e envolveu o medicamento mais caro do mundo, o zolgensma. As meninas são portadoras de uma doença rara, atrofia muscular espinhal (AME). A própria mãe delas admitiu que o acesso ao remédio só foi possível "graças a um pistolão".
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