Yerevan — A ferida continua aberta, o trauma é uma companhia permanente e indesejável, 109 anos depois. Praticamente todos os armênios têm um familiar cuja vida foi ceifada pelo Império Turco-Otomano, entre 1915 e 1923. O genocídio esquecido pela comunidade internacional deixou 1,5 milhão de mortos e outros milhões de órfãos. Para não serem dizimados, civis se refugiaram em outros países. Tornaram-se filhos da diáspora. Mas o horror não se resumiu à matança generalizada e à deportação de famílias inteiras para o deserto da Síria, onde sucumbiram à fome e à sede, quando não acabaram executadas sumariamente.
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A cultura, o idioma e a própria identidade foram destruídos pelos invasores. Mulheres se viram tatuadas à força, enviadas a casamentos forçados com turcos ou transformadas em concubinas. Crianças que perderam os pais terminaram adotadas por famílias turcas, receberam outros nomes e tiveram a própria história e a memória apagadas.
Na próxima quarta-feira, a Armênia celebrará o Dia de Luto Nacional em memória das vítimas. Pela manhã, haverá uma procissão no Memorial do Genocídio Armênio, também conhecido como Tsitsernakaberd, em Yerevan. Durante a noite, uma multidão sairá da Praça da República, na capital, até o mesmo local. Os pouco mais de 3km de percurso serão dominados por velas. As cerimônias deste ano ocorrerão à sombra de uma nova ameaça de massacre: especialistas acreditam que uma invasão massiva das forças do Azerbaijão é apenas questão de tempo. No memorial, a chama eterna, em homenagem aos mortos, divide espaço com rosas e com o som ambiente do violino. Quem teve o passado forjado pelo genocídio se emociona. Pelo menos 60% dos 2,98 milhões de armênios são sobreviventes ou familiares de vítimas.
Neto de quatro sobreviventes, o arquiteto e fotógrafo brasileiro Norair Chahinian — diretor da União Geral Armênia de Beneficência (UGAB Brasil) — afirmou que o genocídio armênio afeta todas as famílias da diáspora, formada quase que totalmente por órfãos e por pessoas que escaparam entre 1915 e 1923. Hoje, existem mais armênios dispersos no exterior do que no próprio país. A família do pai de Norair fugiu para Aleppo, na Síria; a de sua mãe foi para Antióquia, atual Turquia. Anos depois, o casal se conheceu no Brasil, onde o diretor da UGAB, de 45 anos, nasceu.
"O sentimento é o de injustiça. Até 2023, pensávamos que o genocídio pudesse voltar a se repetir, como ocorreu durante a invasão a Nagorno-Karabakh. É um grito não ouvido, um chamado não atendido, um reconhecimento devido e não feito pelo Estado turco, herdeiro do Império Otomano e perpetrador desse crime", comentou Norair. O avô paterno dele, Avedis Chahinian, tinha dois anos quando fugiu com a família da cidade de Marash, em 1915. Quatro anos depois, quando a região passou a ser um protetorado francês, eles retornaram da Síria.
Em 1921, com a retirada francesa, o Exército turco retomou as matanças e eles fugiram de novo. "Em um dado momento, eles estavam em uma balsa e tiveram que atravessar um rio, à noite. Várias crianças estavam escondidas e o irmão dele começou a chorar. Os ocupantes do barco decidiram jogar o meu tio-avô, que tinha quatro anos, na água, com medo de o choro atrair a atenção do Exército turco. Foi então que meu avô abraçou o irmão, meio que o sufocando, e conseguiram se salvar", relatou.
A guia de turismo e intérprete Anna Tumasyan, 36, explicou que os bisavós ficaram órfãos durante o genocídio. Os familiares deles foram assassinados ou desapareceram. "Meu bisavô tinha 7 ou 8 anos e fugia dos soldados turcos, que queriam matá-lo. Depois que um militar passou a espada sobre o pescoço de meu bisavô, ele caiu em um despenhadeiro e se escondeu nas folhagens de uma árvore, até que pôde subir novamente. Para sobreviver, comeu plantas e caminhou da Armênia Ocidental até a Grécia. Ali, trabalhou em um laranjal, juntou dinheiro e se mudou para a Romênia", contou ao Correio. A bisavó de Anna foi levada a um orfanato americano e acabou adotada pela família armênia Chirinyan.
Anna explicou que o principal trauma na sociedade armênia está no fato de que o governo da Turquia nega todo o genocídio. "Há documentos, filmes e fotografias que comprovam o genocídio. Mais de 30 Estados reconheceram sua existência. Então, para mim, essa é a parte mais traumática", observou. Muito desse material está exposto no Memorial do Genocídio Armênio. Ao ser perguntada pelo Correio sobre a dificuldade da comunidade internacional em admitir a existência do genocídio, Edita Gzoyan — diretora do Tsitsernakaberd — afirmou que os políticos sempre se preocupam com o próximo massacre. "Infelizmente, o genocídio tem sido usado e mal utilizado pela comunidade internacional", lamentou.
Consequências
De acordo com Edita, o genocídio não se resumiu ao assassinato em massa. Ela sublinhou que milhares de armênios foram submetidos à assimilação forçada da cultura turca. "Nós os perdemos. Precisamos contar essas vítimas. As consequências do genocídio são profundas em toda a sociedade armênia. Muitas famílias ainda buscam notícias sobre parentes, pois não sabem em quais condições foram mortos ou assimilados a uma outra cultura. Outra consequência foi a enorme diáspora de sobreviventes do genocídio, que se espalharam pelo mundo", comentou.
A diretora do Tsitsernakaberd considera importante que o mundo reconheça o genocídio armênio para que os familiares das vítimas e dos sobreviventes sejam compensados com justiça, por conta dos crimes de guerra cometidos. "Isso também daria aos armênios mais segurança, no sentido de que os perpetradores pensarão duas vezes antes de cometerem as atrocidades", disse Edita.
O repórter viajou a convite da União Geral Armênia de Beneficência (UGAB)
A voz do mundo
Há nove anos, o Senado brasileiro aprovou uma moção por meio da qual reconhece a existência do genocídio armênio. Falta, agora, a posição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para que o Brasil se some a 30 países. Em 2021, os Estados Unidos também admitiram a existência de um genocídio do povo armênio no início do século 20. A Turquia, surgida após o Império Turco-Otomano, insiste em não aceitar que houve um genocídio, de fato. Rússia, Alemanha, França e Canadá também reconhecem as atrocidades cometidas pelo Império Turco-Otomano contra os armênios.
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