O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) endureceu o tom com governo venezuelano de Nicolás Maduro, tradicional aliado das gestões petistas.
Uma nota divulgada nesta terça-feira (26/3) pelo Itamaraty manifestou preocupação com o andamento das eleições marcadas para julho no país vizinho, diante do impedimento do registro da candidatura de Corina Yoris, pela Plataforma Democrática Unitária (PUD), grupo mais forte da oposição venezuelana.
A coalizão denunciou que não conseguiu registrar a candidatura da historiadora para as eleições de 28 de julho porque "nunca foi permitido o acesso ao sistema de inscrição".
O comunicado do Itamaraty foi visto como uma mudança importante de tom, segundo especialistas em política externa ouvidos pela BBC News Brasil, já que o governo Lula vinha evitando declarações públicas de críticas a Maduro, mantendo pressões por eleições livres apenas nos bastidores.
Para Dawisson Belém Lopes, professor de política internacional na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a nota "nuançou o apoio, que parecia incondicional, à forma como a Venezuela conduz os preparativos para as eleições à presidência do país" e indica que "uma ruptura se desenha no horizonte", caso o pleito eleitoral não ocorra de forma livre.
Já Feliciano de Sá Guimarães, professor de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP), classificou a manifestação do Itamaraty como "uma mudança de posição lenta, tardia, porém importante".
Ele nota que a manifestação do Itamaraty tem reflexos também na política doméstica, já que o governo de Maduro tem forte rejeição no Brasil.
"Eu trabalho com opinião pública e política externa. O único país do mundo que os brasileiros realmente têm uma visão muito negativa é a Venezuela. Mesmo entre a esquerda, o nível de apoio ao regime venezuelano no Brasil é baixíssimo", afirma.
"Para o governo Lula, ser visto como um apoiador do governo Maduro é, domesticamente, muito ruim. Tem peso na imagem do presidente e, portanto, peso eleitoral", acrescentou.
O que diz a nota
A manifestação do Itamaraty diz que "o governo brasileiro acompanha com expectativa e preocupação o desenrolar do processo eleitoral naquele país".
Sem citar diretamente Corina Yoris, a nota enfatiza que uma candidata de oposição não conseguiu se registrar para disputar o pleito presidencial, em desacordo com os acordos de Barbados, em que o governo venezuelano garantiu, em outubro passado, um calendário para as eleições de 2024, inclusive com participação e observação de órgãos internacionais.
O acordo foi mediado com a oposição venezuelana pelo Brasil e outros países.
Corina Yoris foi indicada como substituta de María Corina Machado, líder da oposição impedida de concorrer devido a uma medida de inabilitação para o exercício de cargos públicos que lhe foi imposta pela Controladoria-Geral da República, em decisão alvo de controvérsias.
As pesquisas publicadas até então mostravam que, num contexto eleitoral aberto, Machado poderia derrotar Maduro.
"A realidade é que aquilo que alertamos durante muitos meses acabou acontecendo. O regime escolheu os seus candidatos", disse Corina Machado, após a impossibilidade de registrar a candidatura de Yoris.
Acadêmica de 80 anos, Corina Yoris foi escolhida para substituir Machado sem nunca ter participado de política e não possui nenhuma desqualificação legal.
O fato de ser uma recém-chegada à política foi visto como uma vantagem pela coligação, que argumentou que isso tornava mais difícil para os seus oponentes desacreditá-la.
"Com base nas informações disponíveis, (o governo brasileiro) observa que a candidata indicada pela Plataforma Unitária, força política de oposição, e sobre a qual não pairavam decisões judiciais, foi impedida de registrar-se, o que não é compatível com os acordos de Barbados. O impedimento não foi, até o momento, objeto de qualquer explicação oficial", diz trecho da nota do Itamaraty.
A nota destaca ainda que outros onze candidatos ligados à oposição conseguiram concorrer, inclusive o atual governador de Zulia, Manuel Rosales, cujo partido também integra a Plataforma Unitaria.
Esses outros candidatos, porém, são de partidos com pouco peso eleitoral.
"O Brasil está pronto para, em conjunto com outros membros da comunidade internacional, cooperar para que o pleito anunciado para 28 de julho constitua um passo firme para que a vida política se normalize e a democracia se fortaleça na Venezuela, país vizinho e amigo do Brasil", continuou a nota do Itamaraty.
"O Brasil reitera seu repúdio a quaisquer tipos de sanção que, além de ilegais, apenas contribuem para isolar a Venezuela e aumentar o sofrimento do seu povo", diz ainda o documento, finalizando, assim, com uma manifestação que agrada ao governo Maduro.
Para Dawisson Belém Lopes, da UFMG, é "a primeira vez que o Brasil ensaia uma crítica ao processo eleitoral venezuelano".
"(A nota) Está insinuado que, se não houver uma boa explicação oficial sobre o porquê de a candidata indicada pela Plataforma Unitária não ter tido o seu registro homologado, haverá consequências. Os acordos de Barbados estarão sendo desrespeitados, no entendimento do Brasil. Isso está dito com clareza na nota", ressaltou.
O professor da UFMG avalia, ainda, que a Venezuela "já não conta com a simpatia dos governos de esquerda na região, como costumava ser o caso há 10 ou 15 anos, no auge da chamada Onda Rosa (em que governos de esquerda predominavam na América do Sul)", citando desaprovações já externadas pelos presidentes do Chile e (Gabriel Boric) e da Colômbia (Gustavo Petro).
"Lula, nesse contexto, funciona como um porto seguro para Nicolás Maduro. Contudo, essa nota do Itamaraty sinaliza nas entrelinhas que, se for necessário romper, o Brasil romperá. Não se tolerará a cassação do direito político de fazer oposição ao incumbente", reforçou. Belém.
Apesar de considerar positiva a nota pressionando a Venezuela por eleições livres positiva, Feliciano de Sá Guimarães, da UPS, ainda considerou tímida, criticando a manifestação contrária às sanções, posição já conhecida do Brasil.
Ele lembra que o Brasil optou por manter a cobrança sobre o governo Maduro por uma disputa eleitoral democrática e legítima nos bastidores, sem realizar pressão pública relevante.
"O governo Lula não precisa reeditar os governos Bolsonaro e Temer, de isolamento completo da Venezuela, mas poderia ter adotado, desde o início, posições públicas mais duras, dizendo que está muito preocupado com o processo eleitoral, que está acompanhando no detalhe, e que quer fazer valer o acordo de Barbados", defende.
A resposta da Venezuela
O Ministério das Relações Exteriores da Venezuela respondeu à nota do Itamaraty também em um tom duro, afirmando que o texto brasileiro é fruto de "ignorância".
"O Ministério do Poder Popular para as Relações Exteriores da República Bolivariana da Venezuela repudia o comunicado cinzento e intervencionista redigido por funcionários da chancelaria brasileira, que parece ter sido ditado pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos, no qual são emitidos comentários carregados de profundo desconhecimento e ignorância sobre a realidade política na Venezuela", afirmou uma nota de resposta publicada pelo chanceler venezuelano, Yvan Gil.
Polêmica de Lula com líder da oposição
Guimarães ressalta que a nota do Itamaraty vem após falas controversas de Lula sobre María Corina Machado, a candidata preferencial da coalização de oposição que ficou impedida de concorrer.
No início do mês, em uma entrevista coletiva após encontro com o primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, Lula foi questionado sobre a comparação que fez pouco antes da reunião entre o pleito venezuelano e o processo eleitoral no Brasil, quando afirmou que "se o candidato da oposição tiver o mesmo comportamento do nosso aqui, nada vale".
Lula então negou que tivesse feito uma ligação entre a situação no Brasil e na Venezuela e lembrou que foi impedido de concorrer nas eleições de 2018, quando havia sido condenado pela operação Lava Jato, processo que depois foi anulado.
"Ao invés de ficar chorando, eu indiquei outro candidato, e ele disputou as eleições", disse ainda na ocasião.
Corina Machado rebateu a fala de Lula na rede social X (antigo Twitter): "O senhor não me conhece. Estou lutando para fazer valer o direito de milhões de venezuelanos que votaram por mim nas primárias e os milhões que têm direito de votar em umas eleições presidenciais livres nas quais derrotarei o Maduro". A opositora disse ainda na mensagem que Lula "está validando os atropelos de um autocrata que viola a Constituição e o Acordo de Barbados, que o senhor diz apoiar".
O Planalto negou depois que Lula estivesse se referindo a Machado.
"O presidente não fez afirmação sobre ninguém especificamente. Ele não disse que ninguém ficou chorando. Apenas que ele não chorou, relatando a situação que ele próprio viveu", disse o governo em nota à imprensa.
Para o professor da USP, a decisão que impediu Corina Machado de concorrer é questionável.
"Os argumentos utilizados pelo governo Maduro para retirar a María Corina Machado são risíveis. São acusações de corrupção difíceis de averiguar. Tem uma cara obviamente muito mais política", avalia.
Expectativa sobre reação dos EUA
Embora considere importante que o governo Lula faça uma pressão pública mais forte por eleições livres na Venezuela, Guimarães considera que o governo americano tem mais capacidade de pressionar o governo Maduro, já que o Brasil reduziu sua presença econômica no país vizinho, após os governo de Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL).
"Os efeitos do Brasil sobre a Venezuela são razoáveis, mas a gente não pode exagerar. O ator que realmente tem efeito direto sobre a política doméstica na Venezuela são os Estados Unidos, na medida em que ele controla sanções e as sanções afetam toda a elite política do governo Maduro", disse.
Por outro lado, observa, os americanos têm interesse no petróleo venezuelano, num momento especialmente difícil na relação com a Rússia, outro exportador alvo de sanções devido à invasão da Ucrânia.
O governo Joe Biden retirou parte das sanções sobre a Venezuela após o compromisso com eleições livres firmado em Barbados.
Agora, diz o professor da USP, a Casa Branca busca se equilibrar entre aliviar sanções, mas sem favorecer muita a economia venezuelana a ponto de melhorar a popularidade de Maduro, mas também não manter as sanções muito restritas, a ponto de fortalecer o argumento do governo venezuelano de que a culpa dos problemas do país seria dos EUA.
"Então, essa calibragem das sanções é uma questão que os americanos estão sempre levando em consideração. Temos que esperar agora a reação dos americanos em relação a isso (o descumprimento do acordo de Barbados ao barrar a candidata de oposição)", destacou.