Sob o lema "Hoje, mais do que nunca, nunca mais", dezenas de milhares de argentinos saíram em passeata por Buenos Aires ontem, em lembrança do aniversário do golpe militar que deixou milhares de mortos e desaparecidos, há 48 anos, por todo país, e em repúdio ao governo de Javier Milei, que contesta o tratamento histórico dado à ditadura.
Essa é a primeira manifestação do Dia da Memória, como ficou conhecida a manifestação anual, desde a posse do presidente de extrema direita, cujo discurso é considerado por líderes de organizações de direitos humanos como negacionista acerca dos assassinatos e das perseguições ocorridos durante o regime militar na Argentina, que durou de 1976 a 1983.
Cartazes com frases como "Memória sim, medo não" e "Está tudo guardado na memória" eram carregados pelas ruas da capital, epicentro da convocação liderada pelo coletivo Mães e Avós da Praça de Maio, que se dedica há décadas a recuperar os filhos e netos de desaparecidos políticos da ditadura.
"Os principais civis do terrorismo de Estado continuam, em sua maioria, impunes: são o poder econômico e empresarial do genocídio. Exigimos julgamento e castigo já", disse Estela de Carlotto, presidente do movimento.
Em mobilização inédita, as principais centrais sindicais do país também se uniram à convocação, em um contexto de severa crise econômica, com 276% de inflação anual e mais da metade dos 46 milhões de argentinos vivendo abaixo da linha da pobreza.
A passeata é a maior em anos e, segundo Adolfo Pérez Esquivel, ganhador do Nobel da Paz de 1980, "é o grito de rebeldia de um povo frente a um governo fascista que quer destruir a pátria".
Revisionismo histórico
Ao meio-dia, hora da convocação, o governo divulgou um documentário de 13 minutos intitulado Dia da Memória pela Verdade e Justiça Completa, que começa com a entrevista de uma vítima de um movimento guerrilheiro de esquerda nos anos 1970.
O escritor Juan Bautista Yofre, narrador do curta, afirma que a história como é lembrada foi desenhada para responder a interesses econômicos de organizações de defesa dos direitos humanos e dos governos democráticos que sucederam o regime.
Tanto Milei quanto Victoria Villarruel, sua vice-presidente, que é próxima dos militares, questionam o número de desaparecidos, consensualmente aceito por organizações de direitos humanos, de 30 mil vítimas, e afirmam que a cifra real é próxima a 9 mil pessoas.
O ex-guerrilheiro Luis Labraña, sequestrado pelo governo militar, relata no vídeo governista que o número de desaparecidos da ditadura foi uma mentira para levantar dinheiro.
Taty Almeida, líder das Mães da Praça de Maio, contestou o filme durante o protesto: "Estamos diante de um governo negacionista, Victoria Villarroel diz que aqui não houve genocídio, e sim uma guerra."
Durante sua campanha presidencial, Milei havia discursado que houve uma guerra nos anos 1970, na qual foram cometidos "excessos". Para muitos ativistas, seu argumento relativiza a existência de um plano sistemático de eliminação de opositores por parte do Estado, comprovado por centenas de julgamentos nas cortes argentinas.
Ao longo das décadas, 1.173 pessoas foram condenadas por crimes de lesa-humanidade em 316 sentenças proferidas em todo o país.
Na Praça de Maio, a multidão exibia cartazes com frases como "30.000 razões para defender a pátria" e "30.000, de verdade".
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