Uma imagem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) — um líder de esquerda — com elementos do nazismo passou a circular em redes sociais como o X (antigo Twitter) depois da comparação feita por Lula entre a guerra em Gaza e o holocausto.
As montagens de Lula com o bigode de Hitler e rodeado de suásticas, no entanto, não se tratavam de críticas ou ironia ao discurso do presidente brasileiro, e nem de usuários falsos que tentam prejudicar a imagem de Lula — mas sim de manifestações de apoio.
Elas foram publicadas por extremistas que abraçam ideias políticas de diferentes vertentes conforme elas sejam convenientes às suas visões pessoais.
"Usuários da rede, criaram, inclusive, o termo 'lulismo esotérico' [fazendo uma relação direta com o 'hitlerismo esotérico', interpretações místicas dadas ao nazismo no contexto do pós-guerra] e estão produzindo propaganda", afirma a pesquisadora Michele Prado, pesquisadora do Monitor do Debate Político no Meio Digital da USP (Universidade de São Paulo).
Embora as ideias sejam aparentemente antagônicas, de acordo com a pesquisadora, o episódio se trata de um exemplo claro do conceito de "polinização cruzada".
Na natureza, esse termo se refere a um processo em que o pólen é transferido entre flores de plantas diferentes para promover a fertilização e diversidade genética.
Já no contexto discurso político, é usado para ilustrar a troca ou mistura de ideias extremistas entre grupos de espectros políticos aparentemente antagônicos.
E o presidente de esquerda brasileiro associado ao nazismo não é o único exemplo, como mostraremos ao longo desta reportagem.
Mistura de ideologias
Em 2020, Christopher Way, diretor do FBI, usou o termo "salad bar ideology" (algo como "ideologia self-service"), para descrever essa mistura de ideias que culminam em um extremismo violento.
Segundo Way, para quem trabalha com antiterrorismo, tentar encaixar os discursos em categorias bem definidas é um desafio.
"Uma das coisas que vemos cada vez mais são pessoas fazendo misturas confusas, uma variedade de ideologias diferentes."
De acordo com David Magalhães, coordenador do Observatório da Extrema Direita, um dos objetivos desses grupos extremistas é fazer oposição às ideologias dominantes.
"Temos um conjunto de ideias apoiadas por uma maioria e sustentadas em pilares liberais, como política parlamentar, tripartição de poder, respeito pelos direitos das minorias e a definição do papel do estado na economia. Grupos extremistas, sejam de direita ou de esquerda, buscarão desafiar essas bases no espectro ideológico."
Esses grupos, de acordo com os pesquisadores ouvidos na reportagem, escolhem partes de diferentes ideologias de forma a criar um conjunto que responda à crenças e queixas pessoais - que podem ser legítimas ou não.
"Comunidades de extrema direita, por exemplo, geralmente odeiam a ideia do Islã, mas ao mesmo tempo, algumas abraçam partes do islamismo radical. Temos comunidades de extrema direita antissemitas que estão apoiando o Hamas nos ataques de 7 de outubro como um meio de incentivar uma 'limpeza étnica'", exemplifica
O pesquisador menciona, ainda, a existência de um grupo neonazista cultista [satanista] que usa elementos islâmicos para se descrever e apoia ataques terroristas que ocorreram no Ocidente.
Apesar da mistura de ideias aparentemente opostas, há também pontos de convergência entre os extremistas de diferentes "linhas". Entre eles, os pesquisadores citam: a crença em teorias da conspiração, posicionamentos anti-LGBTQIA+ e o antissemitismo.
Moustafa Ayad, diretor-executivo do ISD (Institute for Strategic Dialogue), explica as imagens de Lula associadas ao nazismo como uma oportunidade usada por extremistas para alcançar pessoas de grupos diferentes.
"Em certos casos, ao manifestar uma oposição a Israel, eles acentuam essa postura como uma declaração contra a fé judaica em sua totalidade."
"Hitler é considerado um reflexo desse pensamento. Se uma figura pública como Lula adota uma posição que pode provocar essa resposta, os extremistas veem isso como uma oportunidade estratégica para interseccionar e disseminar essas ideias de maneira mais ampla. É uma oportunidade de aproximá-los de uma audiência específica que eles não podiam alcançar antes."
Michele Prado menciona o grupo 'Nova Resistência' como mais um exemplo de polinização cruzada no cenário brasileiro.
"Trata-se de um grupo neo-fascista que incorpora uma variedade de conceitos provenientes de diversas ideologias extremistas, formando uma abordagem única. Essa estratégia, inclusive, visa ampliar sua base de apoio e recrutar mais adeptos."
Na avaliação de Prado, a Nova Resistência mistura conceitos de extrema esquerda, como o nacional-revolucionarismo (transformação radical da sociedade), terceiro-mundismo (cooperação entre países em desenvolvimento), nacional-bolchevismo (síntese entre ideias bolcheviques e nacionalismo), até extrema direita violenta, incorporando conceitos neo-fascistas (ressurgimento de ideias associadas ao fascismo).
"A Nova Resistência faz esse extremismo híbrido, e isso se reflete inclusive nos números, como eles conseguiram aumentar consideravelmente o número de seguidores no canal deles, no YouTube. E os discursos deles estão muito disseminados, inclusive, em veículos de mídia alternativa da esquerda. O grupo é um bom exemplo, um exemplo assim do extremismo híbrido, onde ocorre essa polinização cruzada de forma estrutural, inclusive."
Prado aponta qe o o grupo também expressa discursos antissemitas, antiliberalismo político e se coloca contra pautas LGBTQIA+.
Uma das figuras públicas que já demonstrou afinidade com o grupo foi o deputado Robinson Farinazzo (PDT-SP), que em 2022 posou para uma foto na Avenida Paulista ao lado de militantes que seguravam uma bandeira com uma estrela verde e as letras "NR" ao centro.
O grupo, inclusive, apoiou campanhas de candidatos do PDT, como a o próprio Farinazzo, de Cabo Daciolo e Aldo Rebelo (que tentaram vagas no Senado por Rio de Janeiro e São Paulo).
A BBC News Brasil procurou o grupo e os políticos citados, mas não obteve resposta.
Como surgiu a polinização cruzada?
Michele Prado aponta que há indícios da chamada "polinização cruzada" desde os anos 90, quando a internet começou a ser democratizada.
"Na época, os ideais extremistas eram compartilhados em fóruns online de forma mais unilateral. Você tinha um produtor de conteúdo e um receptor passivo. E uns dos primeiros grupos a utilizar essa ferramenta da internet foram os neonazistas, que entenderam o quanto aquilo seria um instrumento para amplificar suas ideias além de fronteiras físicas."
O fenômeno tomou uma nova forma, de acordo com a pesquisadora, entre os anos 2000 e 2010, quando as pessoas começam a ser produtoras, mas ainda em um ritmo menor.
"A partir disso o Estado Islâmico, por exemplo, conseguiu radicalizar pessoas online, inclusive de países em paz."
Para Prado, o cenário atual é mais complexo, já que com as redes sociais, os indivíduos não são apenas consumidores passivos de conteúdo extremista, mas também produtores ativos.
As redes sociais como ferramenta de amplificação
"Hoje, enfrentamos um cenário chamado de extremismo pós-organizacional, onde não existem mais estruturas hierárquicas como antes, nos anos 2000. Para ser um extremista afiliado a um grupo não é mais necessário passar por processos de iniciação ou ter contato com um radicalizador."
É aí, aponta a pesquisadora, que surgem interações antes pouco prováveis entre extremistas que possuem ideologias que podem parecer opostas, mas que têm pontos convergentes.
A falta de um líder claro, analisa Moustafa Ayad, faz com que cada influenciador possa agir online isoladamente, sem a necessidade de um grupo por trás dele.
"Alguns deles estão vinculados a grupos formais, mas escolhem e selecionam entre os grupos aos quais estão afiliados, ou afirmam não ter filiação e estão apenas promovendo uma ideologia."
As redes sociais tornaram mais fácil o acesso a discursos extremistas.
Se antes uma pessoa precisava de muita pesquisa para chegar a comunidades extremistas — e poderia passar sua vida sem saber da existência delas — agora pode ser impactada facilmente por diferentes ideais violentos sem dificuldade.
Espaços não vigiados, como o Telegram, são câmaras de eco e muito propícios para a proliferação de ideias extremistas, aponta David Magalhães.
O pesquisador conta um exemplo de polinização cruzada que detectou ao acompanhar grupos dentro dessa rede social durante a pandemia.
"A direita criticava as ‘big pharmas' [grandes farmacêuticas], mas com uma visão populista, que acredita que o poder está sendo controlado por uma elite (corrupta) e há a necessidade de devolver o poder ao povo (puro). Em certa medida, essas ideias encontraram correspondência com discurso de parte da esquerda que tem um discurso anticapitalista, contra os grandes conglomerados econômicos."
Moustafa Ayad complementa dizendo que há uma dificuldade em barrar grupos com discursos criminosos.
"Lembro-me de uma repressão a grupos brasileiros no Telegram devido à promoção de ideologias neonazistas. Mas essas comunidades persistem, uma vez que é viável derrubar canais, mas eles se reconstituem rapidamente. Ao alterarem seus nomes ou se desvincularem de uma estrutura formalizada, conseguem recriar-se de maneira constante."
A falta de clareza também dificulta o monitoramento de pesquisadores e agentes de segurança pública que atuam no combate ao terrorismo e ataques violentos.
"Como as autoridades policiais, por exemplo, definiriam uma possível ameaça que mistura neo-nazismo, mostrando forte apoio ao Terceiro Reich, mas se identificam como pessoas de esquerda, propagando também ideias do nacional-socialismo? É complexo, e muitas vezes a confusão impede que sejam classificados como perigosos", diz Ayad.
Perigos da popularização do discurso extremista
Ainda que sejam grupos minoritários, Ayad aponta que esses extremistas podem influenciar outros a cometerem ataques.
"Esse extremismo composto, inclusive, foi notado nas evidências de investigações dos criminosos que cometeram alguns ataques a escolas no Brasil", afirma Michele Prado.
"É o caso de Cambé, no Paraná, onde o jovem que cometeu os crimes havia se radicalizado em mais de um tipo de ideologia."
Os ataques, conforme explicam os pesquisadores, não são necessariamente em massa, direcionados a grandes grupos como são os que focam em escolas.
Podem ser também direcionados a indivíduos, com motivação ideológica, de raça ou de gênero, conclui Prado.
- Redes sociais validam o ódio das pessoas, diz psicanalista
- Ataque a escola: adolescentes são mais vulneráveis a ideologias extremistas?
- Quem são os 'cidadãos do reich', extremistas de direita acusados de tramar golpe na Alemanha
Saiba Mais
Gostou da matéria? Escolha como acompanhar as principais notícias do Correio:
Dê a sua opinião! O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores pelo e-mail sredat.df@dabr.com.br