Os ex-comandantes da Aeronáutica e do Exército, brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Júnior, e general Freire Gomes, disseram à Polícia Federal que o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) consultou os comandantes militares sobre medidas para se manter no poder mesmo após ter perdido as eleições.
As afirmações foram feitas em depoimentos na operação Tempus Veritatis, que investiga tentativa de golpe após as eleições de 2022. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes levantou o sigilo sobre os testemunhos nesta sexta (15/3).
Segundo os depoimentos, tanto Baptista Júnior quanto Freire Gomes afirmaram que se colocaram contra o que classificaram como "ruptura do regime democrático" e chegaram a alertar sobre a possibilidade de que, se Bolsonaro tomasse alguma medida neste sentido, ele poderia ser responsabilizado criminalmente.
Detalhes sobre os relatos dos militares tinham sido vazados para a imprensa nos últimos dias. Em sua decisão para divulgar o conteúdo na íntegra, Moraes afirmou que liberou os depoimentos porque as informações publicadas por veículos jornalísticos estavam "incompletas". O resto do inquérito continua sob sigilo.
A operação se debruça sobre evidências obtidas pela PF de que Bolsonaro teria envolvimento na elaboração de uma minuta de decreto de Estado de Defesa com medidas para impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e manter-se no poder.
O inquérito também investiga indícios de que militares teriam organizado manifestações contra o resultado das eleições e atuaram para garantir que os manifestantes tivessem segurança. Por fim, a investigação apura se o grupo em torno de Bolsonaro teria monitorado os passos de Moraes, incluindo acesso à sua agenda de forma antecipada.
Inicialmente, Bolsonaro negou ter conhecimento da minuta, mas um documento com este mesmo teor foi encontrado depois pela PF na sala do ex-presidente na sede do PL, seu partido.
Bolsonaro negou que tivesse intenções golpistas a partir de então e disse ter agido dentro dos limites da Constituição, ao argumentar que, para ser aplicado, o decreto de estado de defesa dependeria da aprovação do Congresso.
"Continuam me acusando de um golpe, porque tem uma minuta de um decreto de estado de defesa. Golpe usando a Constituição? Tenha santa paciência", disse em protesto em São Paulo no fim de fevereiro.
Mesmo após os depoimentos dos militares, Bolsonaro participou de eventos políticos no Rio de Janeiro na sexta e sábado (15 e 16/3) e disse ser vítima de acusações absurdas e que não tem medo de ser julgado.
"Poderia estar muito bem em outro país. Preferi voltar para cá [Brasil] com todos os riscos que corro. Não tenho medo de qualquer julgamento, desde que os juízes sejam isentos", disse no sábado.
Durante depoimento à Polícia Federal na operação, no entanto, o ex-presidente ficou em silêncio, invocando o direito de não produzir provas contra si mesmo.
Para o professor de Ciência Política da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Marco Antônio Teixeira, o conteúdo dos depoimentos mostraria que não há mais dúvidas sobre o fato de que o grupo liderado por Bolsonaro tentou, sim, conduzir um golpe de Estado.
"Esses relatos mostram que estivemos, de fato, à beira de um golpe. Não resta mais dúvida de que houve uma tentativa neste sentido pelo grupo que estava no poder", diz Teixeira à BBC News Brasil.
Segundo ele, os depoimentos de Freire Gomes e Baptista Júnior apontam que há pontos positivos e negativos em relação à "saúde" da democracia brasileira.
"Eles mostram que uma ruptura democrática no Brasil não é algo tão fácil de se fazer. Tanto assim que houve uma tentativa e ela não se concretizou. Ao mesmo tempo, mostra que ainda falta uma cultura democrática entre a maioria dos militares. Há uma falta de respeito por ciclos eleitorais e isso é preocupante. Apesar de os comandantes do Exército e Aeronáutica não terem topado, o da Marinha, pelo que se relatou, estava de acordo com uma ruptura", afirma o professor.
Teixeira diz acreditar que Freire Gomes e Baptista Júnior poderão vir a ser punidos por supostamente não terem tomado medidas concretas para impedir os planos de Bolsonaro e seu grupo. Ele diz, contudo, que as punições deverão ser mais brandas do que aquelas que podem vir a ser dadas a outros integrantes da ala militar próxima a Bolsonaro.
"Se houver algum tipo de punição para eles, certamente vai ser mais moderada do que aquelas que poderão atingir outros integrantes do grupo militar mais próximo de Bolsonaro como Braga Netto ou o general Augusto Heleno", avaliou o professor.
Freire Gomes confirma minuta golpista
O ex-comandante do Exército general Marco Antônio Freire Gomes confirmou em depoimento à PF que Bolsonaro apresentou ao comando das Forças Armadas, em dezembro de 2022, uma minuta de um decreto para reverter o resultado das eleições.
Seu relato reforça as revelações da delação premiada do tenente-coronel e ex-ajudante de ordens da Presidência, Mauro Cid.
Freire Gomes também afirmou à PF que a minuta debatida no encontro com Bolsonaro tinha o mesmo conteúdo da encontrada em janeiro de 2023 na residência do ex-ministro da Justiça Anderson Torres.
Seu depoimento contraria a versão inicial de Bolsonaro de que não tinha conhecimento de tal documento.
Segundo o ex-comandante do Exército, uma primeira reunião de Bolsonaro com os três comandantes das Forças Armadas e o então ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, ocorreu no dia 7 de dezembro na biblioteca do Palácio da Alvorada.
Na ocasião, estava presente também Filipe Martins, ex-assessor da Presidência da República, que teria lido a minuta e depois se retirado.
Depois, outra reunião foi realizada com o presidente, em que uma versão mais enxuta do documento golpista foi apresentada.
Freire Gomes disse à PF que ele e o ex-comandante da Aeronáutica Carlos de Almeida Baptista Jr sempre se colocaram, nesses encontros, contra qualquer movimento para tentar manter Bolsonaro no poder após o fim de seu mandato.
Já o almirante Almir Garnier Santos, ex-comandante da Marinha, teria colocado sua tropa à disposição do suposto plano golpista.
O general disse ainda à PF que deixou claro a Bolsonaro e ao ministro da Defesa que "o Exército não aceitaria qualquer ato de ruptura institucional" e que "sempre posicionou que o Exército não atuaria em tais situações".
Ele acrescentou no depoimento que "inclusive chegou a esclarecer ao então presidente da República Jair Bolsonaro que não haveria mais o que fazer em relação ao resultado das eleições e que qualquer atitude, conforme as propostas, poderia resultar na responsabilização penal do então presidente da República".
Freire Gomes afirmou também, no depoimento, ter dito ao então presidente "que, nas condições apresentadas, do ponto de vista militar, não haveria possibilidade de reverter os resultados das eleições".
Bolsonaro 'assustado'
Em seu depoimento, o brigadeiro Baptista Júnior relatou como teriam sido um conjunto de reuniões que teve com o então presidente Jair Bolsonaro após as eleições.
Nelas, Baptista Júnior descreve que Bolsonaro teria feito diversas consultas sobre como poderia reverter o resultado das eleições e manter-se no poder mesmo após a derrota para Lula, mas que Bolsonaro teria sido alertado de que as eleições teriam acontecido dentro da normalidade e sem suspeitas de fraudes tanto por ele, quanto por Freire Gomes quanto pelo então Advogado-Geral da União, Bruno Bianco.
O brigadeiro também relatou que Bolsonaro chegou a consultar os comandantes militares sobre a implementação de dispositivos jurídicos como a Garantia da Lei e da Ordem (GLO) ou o Estado de Defesa após sua derrota eleitoral.
O militar disse que, após essas consultas, tanto ele quanto Freire Gomes teriam tentado convencer Bolsonaro a não fazê-lo. Em um trecho de seu depoimento, Baptista Júnior disse que Freire Gomes teria alertado o então presidente de que ele poderia vir a ser preso se prosseguisse com o plano.
"Que o depoente (Baptista Júnior) tentava demover o então presidente JAIR BOLSONARO de utilizar os referidos institutos jurídicos; que o depoente deixou claro a JAIR BOLSONARO, em uma dessas reuniões, que tais institutos não serviriam para manter o então presidente da República no poder após 1º de Janeiro de 2023; que o ex-presidente ficava assustado", diz um trecho do depoimento do ex-comandante da Aeronáutica.
"Que em uma das reuniões dos comandantes das Forças com o então presidente da República, após o segundo turno das eleições, depois de o presidente da República, Jair Bolsonaro, aventar a possibilidade de atentar contra o regime democrático, por meio de algum instituto previsto na Constituição (GLO ou Estado de defesa ou Estado de Sítio), o então Comandante do Exército, General Freire Gomes, afirmou que caso tentasse tal ato teria que prender o presidente da República", diz outro trecho do depoimento de Baptista Júnior.
Baptista Júnior disse acreditar, segundo depoimento divulgado pelo STF, que a posição contrária de Freire Gomes a um Golpe de Estado foi determinante para que a tentativa não tivesse sido consumada.
"Indagado se o posicionamento do General Freire Gomes foi determinante para que uma minuta do decreto que viabilizasse um Golpe de Estado não fosse adiante respondeu que sim; que caso o Comandante tivesse anuído, possivelmente a tentativa de Golpe de Estado teria se consumado", diz outro trecho do depoimento do ex-comandante da Aeronáutica.
PL só questionou urnas por pressão de Bolsonaro, diz Valdemar
O presidente nacional do Partido Liberal (PL), Valdemar Costa Neto, prestou esclarecimentos à PF sobre a ação apresentada por seu partido em novembro de 2022 questionando o resultado da eleição presidencial vencida por Lula e pedindo a invalidação de 59,18% dos votos do segundo turno.
Em seu depoimento, ele disse que seu partido contratou o Instituto Voto Livre para fiscalizar as urnas por ideia de Bolsonaro e de deputados do PL.
Costa Neto afirmou também que recebeu relatórios a partir dessa fiscalização mas "nunca foi apresentado nada consistente". Ainda assim, diz no depoimento, "os deputados do Partido Liberal e então presidente Bolsonaro o pressionaram para ajuizar tal ação no TSE".
Após a coligação ter movido essa ação, o presidente do TSE, Alexandre de Moraes, recusou o pedido para anular as urnas e decidiu também multar o PL em R$ 22,9 milhões por "litigância de má-fé".
No depoimento à PF, Costa Neto negou ter participado ou tido conhecimento das reuniões de Bolsonaro com comandantes das Forças Armadas para discutir um suposto plano golpista e afirmou também que "nunca teve ciência de qualquer ação ou planejamento sobre 'Golpe de Estado'".
Silêncios
Diversas das pessoas chamadas a depor - incluindo o ex-presidente Jair Bolsonaro - ficaram em silêncio, invocando o direito constitucional de não produzirem provas contra si mesmos.
Ficaram em silêncio:
- Jair Bolsonaro, ex-presidente da República
- Walter Souza Braga Netto, general do Exército e ex-ministro da Casa Civil
- Augusto Heleno Ribeiro Pereira, general e ex-ministro do GSI
- Paulo Sérgio Nogueira, general e ex-ministro da Defesa
- Almir Garnier Santos, ex-comandante da Marinha
- Ailton Barros, advogado acusado de intermediar inserção de dados falsos sobre vacina no sistema do SUS
- Amauri feres Saad, advogado acusado de ser autor intelectual da minuta do golpe
- Angelo Martins Denicolli, major acusado de participar de gabinete de desinformação
- Hélio Ferreira Lima, tenente-coronel acusado de fazer parte de gabinete de desinformação
- José Eduardo de Oliveira, padre acusado de participar de reunião sobre golpe
- Marcelo Costa Câmara, coronel da reserva e ex-assessor de Bolsonaro
- Rafael Martins, major acusado de organizar manifestações golpistas
- Mário Fernandes, ex-chefe substituto da Secretaria-Geral da Presidência da República
- Ronald Ferreira de Araújo Junior, acusado de participar de reunião golpista
O relato de Mauro Cid, ajudante de ordens de Bolsonaro, continua em sigilo, pois ele fez um acordo de delação premiada.
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