Quando a dançarina e coreógrafa americana Katherine Dunham (1909-2006) chegou para dar entrevista aos repórteres que acompanhavam sua estreia no Teatro Municipal de São Paulo, em 11 de julho de 1950, todos imaginavam que seria a oportunidade de conseguir uma palavra da renomada artista americana.
Eles não imaginavam que um "desabafo" dela durante a conversa seria um divisor de águas na luta contra o racismo no Brasil.
Na ocasião, Katherine relatou que, dias antes da apresentação, o gerente de um hotel cinco estrelas vizinho do teatro, o Hotel Esplanada, havia se recusado a hospedá-la por ser uma "mulher de cor".
O caso de racismo caiu como uma bomba.
Isso porque, Katherine havia sofrido racismo no país que vendia a imagem de mais perfeito exemplo de democracia racial no mundo.
"Dizer que existia racismo no Brasil não era bom para a política de boa vizinhança que o país tentava repassar ao mundo, mas era uma situação que acontecia muito no país", diz Lucia Helena Oliveira Silva, professora do departamento de história da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Assis, que pesquisou sobre o caso de racismo contra Katherine Dunham.
Na época, jornais brasileiros classificaram o caso de discriminação racial como um "revoltante incidente", conforme reportagem do Correio Paulistano, e um "odioso procedimento de discriminação", como publicou o Jornal de Notícias.
"Diferente de outros países que tinham escancaradamente casos de segregação racial, no Brasil, os atos de discriminação aconteciam de forma camuflada, e muitos não tinham coragem de denunciar como Katherine", afirma Silva.
A 1ª lei contra racismo do Brasil
Em busca de dar uma pronta resposta à artista e à comunidade internacional, o deputado federal Afonso Arinos apresentou menos de uma semana depois do ocorrido um projeto de lei na Câmara dos Deputados para transformar atos racistas em contravenção penal, uma espécie de delito abaixo do crime e com penas mais brandas.
Proposta em 17 de julho de 1950, a Lei n. 1.390 ficou conhecida pelo nome de seu idealizador — e entrou em vigor, em 3 de julho de 1951, quase um ano depois do caso de racismo ocorrido com Katherine Dunham.
Seu texto previa punição de multa para quem recusasse hospedar, servir, atender e receber cliente, comprador ou aluno por preconceito de raça e pena de até um ano de prisão.
Também previa perda do cargo para agente público flagrado cometendo ato racista.
Foi a primeira vez que uma lei previa punição para quem cometesse racismo no país, que há 68 anos havia abolido a escravidão.
"Costumo dizer que a Lei Afonso Arinos foi uma lei para americano ver", diz Walter de Oliveira Campos, autor de uma tese na Unesp de Assis sobre a legislação.
"Era uma forma do Brasil mostrar ao mundo que estava adotando alguma medida de combate ao racismo. A punição era similar de quem praticasse jogo do bicho, ou seja, menor que um ano. Isso impedia que alguém fosse preso por ato racista."
Na prática, por a pena ser muito baixa, são aplicadas medidas alternativas de punição em seu lugar.
Campos destaca que a lei foi importante por ter sido a primeira antirracista da história do Brasil, no entanto, as condutas tipificadas como crime por ela eram muito difíceis de serem comprovadas pelas vítimas.
"Isso fez com que a lei praticamente ficasse somente no papel, tendo poucos registros de condenações por ela."
Foi o que comprovou o historiador Jerry Dávila, por meio de levantamento com base em ações judiciais relacionadas a Lei Afonso Arinos, entre 1951 e 1989.
Em quase quatro décadas de vigência, segundo o estudo, apenas seis pessoas foram condenadas.
Lei foi pouco efetiva
Monica Grin, professora de história contemporânea da Universidade Federal do Rio Janeiro (UFRJ), ressalta que, ao ser pouca aplicada, a Lei Afonso Arinos acabou por produzir um efeito inverso no combate ao racismo.
"Por sua ineficácia, passou-se a falar que a lei atestava que o Brasil vivia de fato uma democracia racial. Porque, se não tinha denúncias, era porque não havia racismo no país."
Ainda segundo Grin, a falsa crença de que o Brasil tinha uma democracia racial, desencorajava os que tentavam destoar dessa atmosfera ideológica.
"Como era uma lei sem efetividade, as pessoas deixavam de acioná-la em situações de discriminação", diz a professora.
"Ademais, há o fato de que, em pouco mais de uma década após a promulgação da lei, a ditadura militar - em 1964 - se instalou no país, e as garantias do Estado de direito se evaporaram."
Silva aponta que a própria mídia brasileira da época contribuiu para que a lei não tivesse grande efetividade.
"Os registros mostram que, quando se tratava de racismo a mídia da época não falava que era o brasileiro que cometia o ato, sempre diziam que era cometido por imigrantes não habituados à harmonia racial do país", diz.
"Quando era um brasileiro, o caso sempre era tratado como um ato isolado."
De Arinos à Caó
Foi a partir da Constituição de 1988 que o racismo passou a ser mais combatido no país, apontam especialistas.
O texto da Carta previu no inciso 42 do artigo 5º que "a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei".
Isso foi regulamentado por outro marco legal, instituído em 1989 a partir de uma proposta feita pelo advogado e jornalista Carlos Alberto Caó.
Caó foi um dos poucos parlamentares negros que participaram da elaboração da atual Constituição e foi responsável pela inclusão do inciso sobre racismo no artigo 5º.
Intitulada Lei Caó, em homenagem ao deputado federal, a lei fez o racismo deixar de ser contravenção penal, previsto pela então Lei Afonso Arinos, tornando-o crime inafiançável e imprescritível tal qual estabelecido pela Constituição.
"Isso fez com que quem cometesse crime de racismo pudesse ser preso e não mais apenas pagar multa", diz Silva.
No rol de inovações trazidas pela Lei Caó (Lei 7.716/89), está a ampliação de crimes de discriminação racial.
Se antes apenas algumas atitudes poderiam ser consideradas racistas, com ela, qualquer prática de preconceito de raça, cor e etnia passaram a ser punidos com pena de reclusão de dois a cinco anos e multa.
Outra mudança foi o enquadramento de práticas de intolerância religiosa, principalmente, contra as religiões de matriz africana no rol de crimes de discriminação racial.
Também em 1997 foi incluído no Código Penal o crime de injúria racial - uma espécie de desdobramento do crime de racismo. Entenda a diferença abaixo:
- Injúria racial: está associado ao uso de palavras depreciativas referentes à cor, raça ou etnia com a intenção de ofender a honra da vítima. Ou seja, diz respeito principalmente a situações que envolvem a honra de um indivíduo específico, geralmente por meio do uso de palavras preconceituosas.
- Racismo: está mais associado com situações que a vítima passa como, por exemplo, ser impedida de entrar em estabelecimento comercial ou de entradas sociais em edifícios públicos ou residenciais devido sua raça. Ocorre quando o agressor atinge um grupo ou coletivo de pessoas, ou seja, pressupõe uma ofensa a toda comunidade negra.
"Junto com isso, recentemente tivemos outras conquistas, como Estatuto da Igualdade Racial e as cotas raciais que representam uma ampliação da luta e do entendimento do que significa o racismo no Brasil", aponta Monica Grin da UFRJ.
O que diz a legislação atual
Atualmente, com a recente Lei do Crime Racial (Lei 14.532/2023), o crime de injúria racial passou a se equiparar ao crime de racismo em termos de punição.
"Essa mudança foi importante, pois ao equiparar a punição de injúria racial ao racismo, não existe mais a brecha do registro da maior parte dos casos de discriminação racial pela pena mais branda", ressalta Silva.
Isso ocorre porque, antes de 2023, a injúria era um crime menos grave que o racismo.
Assim, o acusado além de ter uma pena menor poderia ter a possibilidade de responder em liberdade com o pagamento de fiança, o que não é autorizado no caso de racismo.
Agora, assim como o racismo, o crime de injúria racial é inafiançável, imprescritível e punido com prisão de 2 a 5 anos.
Anteriormente, a pena era de 1 a 3 anos de prisão e pagamento de multa.
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