Depois de anos governado por uma coalizão de centro-esquerda, Portugal pode dar uma guinada mais à direita após as eleições parlamentares deste domingo (10/3).
As pesquisas de intenção de votos mostram a liderança da coligação de centro-direita na corrida eleitoral. As sondagens também apontam que o partido da direita radical Chega, personificado na figura do candidato André Ventura, está perto de consolidar sua força política no Parlamento português.
No Brasil, um dos seus principais cabos eleitorais é o ex-presidente Jair Bolsonaro — e qualquer semelhança entre a retórica dele e de Ventura não é mera coincidência.
Em meio à campanha para as eleições legislativas que vão definir o novo governo e primeiro-ministro de Portugal, Ventura sacudiu o eleitorado com o fantasma da fraude eleitoral.
A mesma tática de tentar deslegitimar o sistema eleitoral foi usada por Bolsonaro no Brasil, e outros políticos, como o americano Donald Trump, ao redor do mundo.
Em todos esses casos, como agora, as acusações foram feitas sem fornecer evidências. Bolsonaro, inclusive, foi declarado inelegível até 2030 pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em decorrência de um episódio em que divulgou notícias falsas e fez ataques infundados ao sistema eletrônico de votação.
“Está em curso uma tentativa de desvirtuar as eleições. Temos que estar de olho aberto, ninguém pode nos enganar nestas eleições”, declarou Ventura.
Ventura afirmou que havia pessoas do Bloco de Esquerda dizendo nas redes sociais que iam “anular os votos do Chega e da Aliança Democrática (AD) [coligação de direita composta pelo Partido Social Democrata (PSD) e o Centro Democrático Social (CDS)]”.
Ele disse também ter recebido “relatos de emigrantes”, portugueses que vivem no estrangeiro e votam nas eleições de Portugal, que se queixavam de que os votos por correio "não estavam chegando”.
“Esses emigrantes estão fartos de socialismo e social-democracia”, destacou, insinuando que as supostas manipulações tinham como objetivo prejudicar o Chega.
Em declaração à Agência Lusa, o porta-voz da Comissão Nacional de Eleições, Fernando Anastácio, descartou qualquer possibilidade de fraude, explicando que não recebeu “nenhuma queixa sobre qualquer tentativa de desvirtuar o resultado das eleições”.
Mas, mesmo sem fundamento, as palavras de Ventura ecoaram nas redes sociais ligadas ao Chega, para tentar semear dúvidas sobre o processo eleitoral e o sistema democrático português.
“Este tipo de retórica teve menor impacto em Portugal do que no Brasil, por exemplo, mas a tentativa de deslegitimar a integridade eleitoral é comum na dinâmica de comunicação de Bolsonaro e Ventura”, explica António Costa Pinto, professor do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
Este não é, no entanto, o único ponto em comum entre os dois líderes.
“A dinâmica de confronto constante, o desprestígio, [o uso de] fake news, e a introdução de uma linguagem política muito mais violenta são muito fortes na construção da identidade de Bolsonaro e Ventura", avalia Costa Pinto.
"Para eles, [os adversários] são todos vigaristas, aldrabões (trapaceiros), ladrões... tudo numa retórica antiestablishment”, segue o professor.
Em 2023, a Procuradoria Geral da República de Portugal abriu uma investigação contra o líder do Chega sob acusação de difundir notícias falsas nas suas redes sociais. Ventura sempre negou "cometer qualquer ato ilícito" e disse ainda que “nenhum órgão de comunicação vai dizer ao Chega o que é ou não mentira”.
No mesmo ano, o site de checagem de fatos Polígrafo identificou pelo menos dez informações falsas — atacando pessoas trans, a imigração ou adversários políticos — publicadas no perfil do líder de extrema direita
A BBC News Brasil também questionou a equipe do líder da legenda sobre o tema, mas não havia obtido resposta até a publicação desta reportagem.
Um dos slogans mais utilizados por André Ventura é: “Portugal precisa de uma limpeza”, frase que aparece repetida nos cartazes do partido, com a imagem de vários políticos riscada por uma cruz vermelha.
Uma delas é do primeiro-ministro demissionário, o socialista António Costa — no poder desde 2015, ele renunciou ao cargo em novembro do ano passado depois que a polícia abriu um inquérito para investigar um suposto caso de corrupção envolvendo integrantes de seu governo.
As eleições legislativas antecipadas deste domingo foram convocadas após o pedido de demissão de Costa.
"O Chega, partido populista de direita radical, que faz do combate à corrupção e à classe política uma das suas bandeiras, teve aqui uma conjuntura bastante favorável ao seu crescimento”, observa Costa Pinto.
As pesquisas eleitorais refletiram esse crescimento. Algumas chegaram a mostrar o Chega com 20% das intenções de voto.
Com o passar da campanha, os números foram caindo, mas o partido continua a conservar cerca de 16% do apoio do eleitorado, o que representa mais do que o dobro dos 7,18% dos votos alcançados nas eleições de 2022.
Se os números se confirmarem nas urnas neste domingo, o partido vai consolidar seu lugar como a terceira força política no Parlamento português — e aumentar o número de deputados de 12 para mais de 30, o que pode mudar o paradigma da legenda.
“Hoje em dia, o Chega ainda é o partido de André Ventura, muito personalista e unipessoal, no qual a figura do líder é muito importante. Mas, se [o partido] se consolidar no panorama político português, vai deixar de ser assim, e vai estabelecer uma base cada vez mais importante”, explica Costa Pinto.
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De comentarista de futebol a líder da direita radical
André Ventura, 41 anos, emergiu em Portugal como comentarista de futebol. Torcedor do Benfica, ele ganhou notoriedade em 2014 ao defender o clube no canal de televisão CMTV.
Formado em direito, Ventura também foi seminarista durante um ano — e trabalhou como professor universitário e inspetor tributário, antes de migrar definitivamente para a política.
Isso aconteceu em 2017, quando concorreu à Câmara Municipal de Loures, perto de Lisboa, pelo PSD. A mensagem principal de sua campanha era dirigida aos ciganos, uma comunidade, nas suas palavras, “que vivia dos subsídios do Estado”.
“O que eu vou dizer pode não ser muito popular, mas é verdade: temos tido uma tolerância excessiva com alguns grupos e minorias étnicas", disse ele, na época, em entrevista ao site Noticias ao Minuto.
Nas palavras de Ventura, famílias, "por serem de etnia cigana", tinham ajuda do Estado para reformar as casas enquanto outras esperavam pelo benefício. "Quem tem de trabalhar todos os dias para pagar as contas no fim do mês olha para isso com enorme perplexidade", seguiu.
"Isso não é racismo nem xenofobia, é resolver um problema que existe porque há minorias no nosso país que acham que estão acima da lei”, acrescentou.
Ventura não ganhou as eleições, mas aproveitou a atenção da mídia gerada pela polêmica para, dois anos depois, lançar o Chega, prometendo defender os “portugueses de bem”.
Semelhanças e diferenças em relação a Bolsonaro
No início de janeiro, Jair Bolsonaro enviou seu apoio ao político português.
“É muito importante que André Ventura, do Chega, consiga essa cadeira de primeiro-ministro. É a direita, é o conservadorismo, são as pessoas de bem que se fazem cada vez mais presentes”, afirmou Bolsonaro em um vídeo nas redes sociais, fazendo um apelo aos brasileiros que moram em Portugal para votar no Chega.
Defensor do controle da imigração, Ventura quer criar o crime de “residência ilegal em solo português” — e impor cotas anuais de entrada de estrangeiros no país baseadas “nas qualificações dos imigrantes e nas necessidades do mercado português”.
“Não podemos viver em um país onde todo mundo entra sem controle nem critério, sem saber porque entra e ao que vem”, defendeu o líder do Chega.
Ventura nega as acusações de racismo e xenofobia — e afirma que o que ele quer é “uma imigração decente, mas não descontrolada”.
O líder do Chega compartilha com Bolsonaro algumas das suas propostas mais polêmicas, como a castração química para estupradores e pedófilos.
Ele resgatou em 2021 o lema da ditadura “Deus, Pátria e Família”, ao qual acrescentou “trabalho” — mas, diferentemente de Bolsonaro em relação à ditadura brasileira, não é um defensor do regime autoritário sob o comando de António Salazar que governou Portugal durante 40 anos.
“Fiquem à vontade comigo porque não tenho nenhum saudosismo de uma República que eu não vivi. Não é isso que me move. Vejo Salazar como vejo outras figuras da história”, disse em entrevista à Agência Lusa em 2020.
Ele também não hesitou em condenar os ataques de 8 de janeiro de 2023 em Brasília, quando apoiadores de Bolsonaro invadiram o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal .
Liberal na economia, Ventura defende a redução dos impostos, mas quer também o aumento das pensões e dos salários.
“Há alguma flexibilidade ideológica que é também característica da mobilização eleitoral populista, no que diz respeito à política econômica e social", explica Costa Pinto.
"A direita radical populista tem uma raiz comum, mas depois adapta-se à realidade de cada país. Ventura não resgata o salazarismo, por exemplo, porque isso em Portugal não rende votos”, segue o professor.
O mesmo aconteceu na semana passada com a questão do aborto. Questionado sobre o tema, depois do assunto ter sido abordado por um político da Aliança Democrática (AD), Ventura afirmou saber que no seu partido “há quem tenha uma posição diferente”, mas que “no momento em que a sociedade está, não é prioritário voltar a criminalizar o aborto”.
Matemática complicada
Apesar dos apelos feitos por Bolsonaro, o Chega está longe de poder ganhar as eleições, mas pode dificultar a formação de um governo de direita no país.
As pesquisas eleitorais dão a vitória à coligação de centro-direita Aliança Democrática (AD), composta pelo Partido Social Democrata (PSD) e o Centro Democrático Social (CDS), mas sem maioria absoluta. E Luís Montenegro, líder do PSD, já descartou de forma taxativa fazer um acordo com o Chega para formação de um governo.
De acordo com Montenegro, o Chega não tem “maturidade” nem “responsabilidade” para governar — ele repete que “não é não”, garantindo que não será pelas suas mãos que a direita radical vai chegar ao governo de Portugal.
“Seria muito difícil para Montenegro justificar um acordo destes, depois de semanas repetindo sistematicamente que não vai fazer isso”, avalia Costa Pinto.
Mas, em caso de necessidade, as pressões podem surgir até mesmo dentro do próprio partido, no qual algumas figuras, como o ex-primeiro ministro Pedro Passos Coelho, não descartaram essa possibilidade.
Neste domingo, os portugueses vão decidir que tipo de equação o país vai ter que fazer.
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