Para especialistas contemporâneos, Tomás de Aquino (1225-1274) foi um divisor de águas do pensamento humano. Não somente da teologia, mas também da filosofia. Em plena Idade Média, o religioso ousou beber em uma fonte pagã — os textos do sábio grego Aristóteles (384 a.C. - 323 a.C.) — para buscar explicar a existência do ser humano e a própria ideia das relações com o divino.
“Tomás de Aquino foi para sua época uma luz irradiosa e inteligente, repropondo um paradigma de mundo, na passagem do mundo antigo para a escolástica”, afirma à BBC News Brasil o teólogo e filósofo André Luiz Boccato, frade dominicano e professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
“Sua importância é tamanha que, depois dele, se convencionou chamar de ‘tomismo’ todo tipo de releitura em que se volta a Tomás para responder a problemas circunstanciais de outros momentos históricos.”
A escolástica — concilia a fé cristã com pensamento racional — foi o método crítico que vigorou nas universidade medievais europeias, sobretudo na última fase do período medieval. “Para a filosofia, o pensamento de Tomás de Aquino é fundamental e bem original”, pontua Boccato.
De acordo como professor, a principal contribuição de Aquino para o pensamento foi “a centralidade que ele deu à razão, enquanto perscrutadora do real, ao invés da crença e de uma concepção dualista de fé”.
“Ao colocar a razão, não a razão instrumental de hoje ou cientificista, mas a razão aberta à transcendência e a Deus, de um certo modo ele a encara como um infinito presente em toda criatura racional chamada à busca de sentido”, detalha.
“Uma segunda [contribuição] seria propriamente a acolhida e o desdobramento do pensamento de Aristóteles no ocidente cristão, com todas as suas consequências, nos vários campos do conhecimento filosófico”, ressalta o professor.
O pensamento aristotélico encontrava resistência no meio religioso — afinal, se tratava de um ilustre representante do helenismo clássico.
Também frade dominicano e conhecido por sua trajetória nos movimentos sociais progressistas, o jornalista e escritor Frei Betto compara a referência a Aristóteles nos tempos de Aquino como o mergulho na filosofia de Karl Marx (1818-1883) empenhado pelos religiosos da Teologia da Libertação, sobretudo nos anos de ditadura militar brasileira.
“O que me impressiona em São Tomás é como ousou basear sua filosofia e teologia em um filósofo pagão, Aristóteles”, comenta ele, à BBC News Brasil. “Assim como, séculos depois, a Teologia da Libertação encontraria seu instrumental de análise da realidade em Marx e [Friedrich] Engels [(1820-1895)]. Tomás teve a vantagem de beber na filosofia grega no momento em que árabes islâmicos a tornavam conhecida no Ocidente. Por isso levantou suspeitas de alguns prelados.”
Frei Betto acrescenta que “a densidade política do pensamento” de Aquino fez com que a Igreja Católica pudesse “adotar várias de suas teses revolucionárias, como o tiranicínio, a ignorância invencível, a prevalência da consciência sobre as leis”.
Para ele, foi impregnado desse pensamento que religiosos brasileiros lutaram contra o regime militar. “Foi graças ao pensamento de Tomás que, na década de 1960, um grupo de frades dominicanos do Brasil [inclusive o próprio Frei Betto] apoiou a luta armada contra a ditadura militar, o que nos valeu quatro anos de cárcere como ‘terroristas’”, justifica.
Teologia e filosofia
Boccato ressalta que Tomás de Aquino aprofundou e dialogou com “todo o pensamento aristotélico”. “A saber: metafísica, física, ética, política, estética, ciência medieval, etc.”, enumera.
Para o professor, uma terceira contribuição do pensador foi a maneira como ele aprendeu de seu mestre, Alberto Magno (1193-1280), “a positividade do conhecimento científico advindo da realidade e sua verdade própria”.
“Conseguiu distinguir a capacidade humana de conhecer a realidade em sua essência, sem desvincular da visão cristã sedimentada na criação e na fé”, afirma.
“Ele procurou construir sua teologia sobre princípios filosóficos muito sólidos, foi buscar um solo firme para a sua filosofia e buscou princípios racionais para tentar mostrar como a revelação poderia ser compreendida pelos homens”, contextualiza o filósofo, teólogo e historiador Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Segundo Moraes, “nesse sentido há uma relação muito intensa entre filosofia e teologia”, e isso faz com que a obra de Aquino “seja profundamente inovadora” quando se pensa na época em que ele viveu.
“Tanto do ponto de vista teológico como filosófico, Tomás de Aquino é um divisor de águas, um marco muito importante”, define o pesquisador de textos sagrados Thiago Maerki, associado da Hagiography Society, dos Estados Unidos.
“[Ele] pode ser considerado o maior sintetizador da relação entre fé e razão, fruto do longo caminho histórico cristão desde as origens”, afirma Boccato. “Ele distinguiu a ordem natural, a filosofia, da ordem sobrenatural, teologia, mas [o fez] unindo-as, não as separando. Hoje vivemos uma cultura das separações e divisões, de radicalizações e negação da diferença. Tomás imprime um espírito dialético à teologia na Idade Média, apresentando-se como grande mestre do diálogo e da inclusão do diferente.”
Vida
Nascido em uma pequena cidade na província do Lácio — na época, Reino da Sicília, hoje Itália —, Tomás de Aquino era filho de um cavaleiro militar. Seus pais, o incentivaram a estudar e acabaram mandando-o para o equivalente a uma universidade da época, em Nápoles.
Foi lá que, ao que tudo indica, ele tomou contato pela primeira vez com a obra de Aristóteles. Durante esse período, acabou tendo contato com um pregador dominicano que o recrutou, aos 19 anos, para a chamada Ordem dos Pregadores — também conhecida como Ordem de São Domingos.
Seus pais foram contra o ingresso na confraria religiosa e tentaram impedi-lo. Quando os dominicanos determinaram que Tomás fosse para Roma e, de lá, para Paris, familiares dele armaram uma emboscada e o capturaram, levando-o de volta ao castelo de seus pais. Ele teria ficado detido por cerca de um ano e, conta-se, até mesmo uma prostituta chegou a ser contratada para demovê-lo da ideia da vida religiosa.
Percebendo que nada iria resolver a questão, sua mãe colaborou para que ele fugisse e retornasse aos dominicanos. Tomás de Aquino foi para Nápoles, depois para Roma e, em seguida, acabou enviado para estudar na Universidade de Paris.
Quando concluiu sua formação, em 1259, retornou a Nápoles e iniciou sua carreira como pregador dominicano. Circulou por várias regiões da península itálica e foi nesse período que escreveu sua obra principal, a ‘Suma Teológica’.
Nove anos depois, foi enviado novamente para Paris, agora como regente mestre dos religiosos que ali estudavam. Ele ficaria lá até 1272, quando obteve dos dominicanos a autorização para fundar um centro de estudos onde quisesse — escolheu Nápoles.
Professor na PUC-SP e na Faculdade São Bento, o teólogo, filósofo e jornalista Domingos Zamagna destaca à BBC News Brasil a erudição de Aquino, um onívoro cultural que buscava os saberes mais variados possíveis.
“A teologia é um esforço de conhecer Deus, e só podemos conhecê-lo, além do que ele próprio revelou, ou pela via negativa, ‘o que ele não é’, ou pela via analógica, ‘ele é semelhante a…’ Como o ser humano é ‘a imagem e semelhança de Deus’, só conheceremos Deus se soubermos profundamente o que é o ser humano”, reflete ele.
“Não deveria nos causar espanto que Tomás tenha se lançado no estudo da biologia, da política, da ética, da psicologia, da antropologia, da economia, da estética, etc., para mergulhar no que é a essência do ser humano”, acredita Zamagna.
“Para isso, estudou Aristóteles, que entendeu o ser humano dentro de uma relação unitária, contra o dualismo de Platão. Daí quis conhecer a causa última da realidade, a causa das causas, que é Deus. Daí desenvolveu o estudo propriamente teológico.”
“Ele viveu como grande intelectual, mas sempre foi visto com certa desconfiança por uma ortodoxia que não via com bons olhos a entrada do pensamento aristotélico para subsidiar os dogmas da Igreja Católica”, pontua o teólogo Moraes.
“A filosofia dele podia ser muito arriscada, porque de repente podia [ser interpretada como se viesse a] não concordar com a ideia de que Deus criou o mundo, com a ideia da imortalidade da alma... Tudo muito perigoso. Era preciso saber selecionar e, nesse sentido, o Tomás de Aquino foi mestre”.
Aquino buscou uma explicação racional para a fé. “Ele partiu da revelação, acreditava na revelação de Deus, mas dizia que o conhecimento era revelado através da fé. Como teólogo, ele usou de todo o conhecimento filosófico extraído da tradição aristotélica para fundamentar sua fé”, detalha Moraes. “Podemos dizer que, em Tomás de Aquino, a razão está à serviço da fé.”
Em 1274, foi convocado pelo papa Gregório 10º (1210-1276) para participar do Concílio de Lyon. A caminho de Roma, montado em um burro, bateu a cabeça em um galho de uma árvore tomada e ficou seriamente ferido. Tentou seguir viagem mas não conseguiu. Acabou sendo abrigado em uma abadia que havia nas proximidades.
Depois de alguns dias, não resistiu. Morreu em 7 de março de 1274, há exatos 750 anos.
Santo
Tomás de Aquino seria canonizado em 1323, pelo papa João 12 (1249-1334).
O filósofo Andrey Ivanov, professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp), comenta à BBC News Brasil que 2024 está no meio de três anos especiais para aqueles que admiram Tomás de Aquino. No ano passado, 2023, foram lembrados os 700 anos que ele passou a ser considerado santo. Neste, celebram-se os 750 anos de sua morte. Em 2025 serão recordados os 800 anos de seu nascimento.
“Em vida e logo após a sua morte, as doutrinas de Tomás não suscitaram um consenso unânime e foram duramente atacadas, sobretudo por teólogos e em particular pelos franciscanos”, comenta Ivanov.
A canonização de Tomás de Aquino também não foi uma unanimidade na cúpula católica da época. Havia um ingrediente político. João 12 tinha sido auxiliado por dominicanos no seu processo de escolha para o trono papal e, portanto, devia gratidão a esse grupo. “Uma forma de reconhecer isso era escolher um membro da ordem para ser canonizado”, conta Moraes. O nome de Aquino foi o segundo que lhe foi apresentado.
“E ele era um admirador, tinha obras suas na biblioteca e fazia uso das mesmas. Até hoje no Vaticano há textos [de Tomás de Aquino] com anotações desse papa, o que Mostar que ele tinha apreço enorme pela obra”, comenta o teólogo.
Boccato ressalta que, “apesar de ser reconhecido como grande filósofo e teólogo, e o foi”, Tomás de Aquino se notabilizou também “como um pregador, um verdadeiro contemplativo da Palavra de Deus de onde ele extraiu o sentido para sua vida”.
“Então, o fato de ele ter sido santo dá-se pelo seu esforço de, pela fé, esperança e caridade, viver de modo perfeito as virtudes teologais, mas também ser um irmão, frade, que colocou a caridade como centro de sua vida”, acrescenta ele.
Para Ivanov, “pode-se dizer que a sua santidade é a santidade da inteligência”. “Ele se santificou na sua obra de filósofo e teólogo. A sua busca da verdade natural e supra-natural se identificou com sua busca de Deus”, analisa o professor.
“Ele se tornou santo, reconhecido pela Igreja, pelo fato de viver da e para a caridade e manifestá-la na relação com o próximo e traduzi-la em reflexão refinadíssima”, avalia Boccato. Para o professor, São Tomás “era um homem de profunda oração, vida comunitária, pregação e sensibilidade humana”.
“Não tenho dúvidas que a sua santidade se configura nesta articulada relação entre vida contemplativa, reflexão filosófico-teológica e apostolado, diálogo produtivo com muçulmanos e árabes”, salienta. “Tornou-se santo porque buscou viver e aplicar o evangelho no seu cotidiano e ao longo de sua vida na convivência com os confrades e no fértil apostolado.
Legado
Séculos depois, seu legado permanece. “O que acho muito bonito em São Tomás é aquilo que, a meu ver, fez o tomismo se enraizar na Igreja e se manter vivo até hoje: é essa ideia de uma cooperação entre a filosofia e a teologia, uma espécie de harmonia, a gente pode dizer, entre fé e ciência”, comenta Maerki.
“A justificativa para isso é que, para Tomás de Aquino, a razão, que é o princípio básico da filosofia, seria um estatuto criado por Deus. Então mesmo a razão que norteia o pensamento filosófico possui sua raiz com Deus. E a fé é uma espécie de revelação do próprio Deus”, explica o pesquisador. “Nesse sentido, a fé e a razão não podem se contradizer já que, segundo Tomás de Aquino, a fonte é a mesma, é o ser divino, o próprio Deus.”
Zamagna argumenta que “todos os que desejam uma prática religiosa baseada na fé mas sem abdicar das exigências racionais há de se beneficiar com o conhecimento da produção intelectual de São Tomás”.
“Não há filósofo que, mais cedo ou mais tarde, deixe de se questionar sobre a origem e o fim da vida. Só não o fará quem for preguiçoso ou pouco exigente”, diz.
“No meio de tantas buscas e respostas, o pensamento de São Tomás permanece válido e atualíssimo, corresponde a uma ajuda para responder a um dos maiores anseios do ser humano. Ser ateu é bastante fácil. Difícil é projetar-se na pesquisa para encontrar uma resposta racional às alegrias e esperanças da comunidade humana.”
Em 1879 o papa Leão 13 (1810-1903) publicou a encíclica ‘Pai Eterno’, na qual promoveu um renascimento do tomismo como sistema teológico e filosófico. “[O documento] propunha uma junção entre filosofia e teologia, entre razão e fé, como aquela que já havia sido realizada por mestres medievais, em particular por Tomás. De modo que Tomás merecia ser ensinada nos institutos e universidades da Igreja”, relata Ivanov.
“A encíclica surtiu efeitos positivos para impulsionar os estudos de filosofia medieval e novos projetos de edição das obras dos grandes mestres da escolástica, a partir naturalmente das obras de Tomás”, completa.
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