À medida que o caos cresce no Haiti, com o governo declarando estado de emergência, os líderes das gangues que controlam parte do país pedem a renúncia do primeiro-ministro, Ariel Henry.
Um desses líderes é Jimmy Chérizier, conhecido como "Barbecue" ("churrasco", em inglês). Ele comanda uma das gangues mais poderosas por trás da violência no Haiti: a G9 e Família ("G-9 an fanmi").
Essa violência atingiu novos níveis depois que homens armados invadiram a principal prisão do país no sábado (3/3) e libertaram mais de 3.700 presos. Nessa ação, 12 pessoas morreram e dezenas ficaram feridas.
Mas a invasão da prisão é só mais um sintoma da delicada crise que afeta o país caribenho, especialmente desde 2020.
A batalha das gangues pelo controle territorial deu origem a um ciclo de violência que deixou milhares de mortos e criou uma situação de instabilidade social que está cada vez mais crítica.
Um dos momentos mais graves foi o assassinato do presidente Jovenel Moïse em 7 de julho de 2021, que gerou uma crise institucional no país que está longe de ser resolvida.
De acordo com vários relatos, ao invadir a prisão, a intenção das gangues - que controlam cerca de 80% do território de Porto Príncipe - seria exigir a renúncia do primeiro-ministro Henry, que assumiu o comando do país após a morte de Moïse sem convocar as eleições prometidas.
"Pedimos à Polícia Nacional do Haiti e ao exército que assumam sua responsabilidade e prendam Ariel Henry. Mais uma vez: a população não é nossa inimiga; os grupos armados não são seus inimigos", disse Chérizier em uma publicação nas redes sociais.
O líder criminoso já exigiu do governo Henry no passado uma anistia e a libertação de todos os membros de seu grupo.
E essa exigência não veio de uma pessoa qualquer: Chérizier, um ex-policial, se consolidou como uma das principais figuras da onda de violência de gangues que tomou conta do Haiti nos últimos anos.
Segundo os Estados Unidos e o Conselho de Segurança das Nações Unidas, ele é responsável por graves violações aos direitos humanos no Haiti. Por isso, recebeu sanções de Washington e da ONU.
Desde a morte de Moïse, Chérizier passou a ocupar um papel de maior protagonismo ao promover o que descreve como uma revolução contra a elite política "corrupta" do país.
E uma de suas ferramentas preferidas são as redes sociais, não apenas para espalhar sua mensagem mas também para atrair seguidores para sua organização armada.
Da polícia para o controle das ruas
A primeira pergunta que surge sobre Chérizier é a razão do seu apelido, "Barbecue".
Ele disse em entrevistas que é porque sua mãe vendia frango na rua.
Mas, segundo algumas testemunhas da violência haitiana, a verdadeira explicação é que ele costumava queimar as casas e os cadáveres de suas vítimas.
Ainda que tenha começado como agente de polícia, Chérizier hoje é líder da chamada G9 e Família, uma aliança de algumas das gangues mais perigosas de um dos países mais violentos do mundo.
Junto a outras poderosas organizações criminais - entre elas a 400 Mawozo, a gangue a que se atribuiu o sequestro de um grupo de 17 missionários americanos e canadenses em 2021 -, a G9 e Família tem contribuído para o caos, e Chérizier tem sido seu motor.
Nascido na capital haitiana há cerca de 47 anos, nem as sanções que os Estados Unidos impuseram contra ele e nem as autoridades do seu país foram capazes de controlá-lo.
A atuação criminal de Chérizier começou quando ainda era policial e se viu envolvido na morte de nove civis, que ocorreu no contexto de uma suposta operação oficial contra as máfias em Grand Ravine, um bairro de Porto Príncipe, em novembro de 2017.
A partir desse momento também começou sua relação com as gangues que atuam no país. Primeiro com a Delmas 6, da qual se tornou um dos principais porta-vozes.
De acordo com relatos locais e internacionais, Chérizier conseguiu obter poder dentro da gangue graças a favores da polícia e do governo de Moïse.
E, ainda como agente de polícia, ele teria cometido algumas das atrocidades pelas quais foi sancionado em instâncias internacionais.
A ONU e os Estados Unidos sinalizaram que ele foi um dos agentes implicados no massacre de La Saline, um bairro de Porto Príncipe, em que dezenas de pessoas foram mortas em um ataque coordenado da polícia e de grupos criminais contra a população local para, segundo o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, reprimir a dissidência política. Pelo menos 71 pessoas morreram.
Cherizier sempre negou todas as acusações.
"Não sou um gangster, nunca serei", ele disse à Al Jazeera em uma entrevista em 2021. "Estou lutando contra o sistema. Esse sistema tem muito dinheiro e tem o controle dos meios de comunicação. Agora me pintam como se eu fosse um gangster", concluiu.
Durante 2018 e 2019, Cherizier esteve supostamente envolvido em outros ataques brutais em outros lugares de Porto Príncipe.
"As gangues estão melhor equipadas do que a polícia e contam com a proteção das autoridades", disse à BBC Pierre Esperance, diretor da ONG haitiana Red Nacional de Defensa de los Derechos Humanos, em uma entrevista realizada em 2021, explicando o contexto de impunidade em que Chérizier opera.
Com todo esse poder, Chérizier começou uma batalha sangrenta pelo controle territorial de Porto Príncipe, onde foram cometidos vários massacres que semearam o terror não apenas na capital, mas em todo o país.
Desde junho de 2020, e se aproveitando do caos que reinava, Chérizier promoveu a união de nove gangues em uma organização que chamou de G9 e Família. O anúncio foi feito no seu canal no Youtube.
Mas o assassinato do presidente em 2021 foi um ponto de ruptura para a organização, de acordo com analistas internacionais, porque o levou a perder a proteção do governo.
Segundo o portal InSight Crime, antes do assassinato de Moïse, 50% do financiamento da G9 vinha de dinheiro do governo. Outros 30% vinham de sequestros e os 20% restantes eram arrecadados através de extorsões.
No entanto, depois do assassinato, o financiamento governamental caiu 30%.
Foi isso que supostamente teria motivado Chérizier a declarar guerra contra as pessoas que herdaram o controle político do país.
Em outubro de 2021, o primeiro-ministro, Henry, que ficou no cargo depois do assassinato de Moïse, foi impedido de depositar uma coroa de flores em um monumento porque integrantes fortemente armados da gangue de Chérizier apareceram de repente e fizeram disparos no ar.
Vestido com um traje branco impecável e cercado por seus homens, o líder da gangue foi ele mesmo depositar uma coroa de flores no monumento. A ideia era dar uma demonstração clara da sua força.
Chérizier também está sendo acusado de liderar ações de sabotagem contra o abastecimento de combustíveis no país. Integrantes de seu grupo criminoso bloquearam vários carregamentos de gasolina para pressionar o governo de Henry.
A falta de gasolina agravou a crise humanitária no Haiti.
Sua gangue também esteve envolvida em uma guerra sangrenta com a G-Pèp, uma gangue rival que, segundo relatos, é ligada aos partidos que faziam oposição ao presidente assassinado, Moïse.
Os tiroteios e as brigas por território entre os grupos são comuns e ocorrem tanto nos bairros mais pobres quanto no centro de Porto Príncipe.
Tudo isso acontece enquanto a organização amplia sua atuação nas redes para não apenas comunicar seus objetivos, mas também para angariar novos integrantes.
Ordens e ameaças no Youtube
O que tem sido visto nas ruas de Porto Príncipe também se transferiu para o campo das redes sociais, onde Chérizier consolidou sua influência.
"Os bandidos nunca seriam tão poderosos como são no Haiti sem as redes sociais. Sempre tivemos criminosos, mas, sem essas plataformas, eles não seriam tão famosos", disse Yvens Rumbold, integrante de um think tank de políticas públicas do Haiti, ao jornal The Washington Post.
No caso de Chérizier, não só ele usou sua conta no Youtube para anunciar a criação do G9, como também para pedir que a polícia prenda o atual primeiro-ministro do Haiti.
Mas essa não é sua única rede social. No X, o antigo Twitter, ele também já publicou convocações para tomar o país e destituir a atual classe dirigente.
As redes também serviram pra difundir imagens de corpos depois de execuções - especialmente no WhatsApp -, ou para pedir apoio para a causa através de mensagens virais no Instagram e no TikTok.
De fato, o próprio Chérizier falou sobre a importância das redes sociais em uma entrevista no seu canal do Youtube.
"Agradeço a quem cria essas tecnologias. A tecnologia hoje nos brinda com a oportunidade de nos aproximarmos e nos apresentarmos aos público. Não estou vendendo mentiras", disse ele, respondendo a uma pergunta de um seguidor.
"Sou quem digo ser. Não faço 99% do que disseram que fiz... As tecnologias me deram a oportunidade de me defender", acrescentou.
* Com reportagem de Vanessa Buschschlüter.
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