Os entregadores de aplicativo do Reino Unido planejam uma greve para esta quarta-feira (14/2), data em que se comemora o Valentine's Day, ou Dia dos Namorados, uma das celebrações mais movimentadas para o comércio e os serviços no país.
O movimento, liderado por imigrantes brasileiros, protesta contra as condições de trabalho atuais e busca aumentar o ganho que os trabalhadores obtêm pelas entregas.
A expectativa é que mais de 3 mil profissionais da área cruzem os braços das 17h às 22h, o horário de pico nos pedidos de comida pelos apps.
Segundo alguns dos organizadores da paralisação que foram entrevistados pela BBC News Brasil, os valores oferecidos pelas plataformas — no Reino Unido, as maiores empresas do ramo são Deliveroo, Uber Eats, Just Eat e Stuart — sofreram cortes expressivos nos últimos meses.
E, em um cenário de aumento de custo de vida e piora da inflação, isso praticamente impossibilita o pagamento das contas e o mínimo de qualidade de vida, com prejuízos na saúde e nos relacionamentos, relatam eles.
Questionadas pela reportagem, as empresas disseram oferecer "valores competitivos", que "estão preocupadas com o bem-estar dos colaboradores" e afirmam "valorizar o diálogo" com os entregadores (confira as respostas completas ao longo da reportagem).
O encontro de Battersea
A BBC News Brasil conversou com dois entregadores brasileiros que estão na liderança dos protestos contra os aplicativos de entrega.
Ulisses Cioffi mora no Reino Unido há uma década e meia e passou a trabalhar com os apps nos últimos dois anos. Já Dyogo Costa atua no ramo há 11 anos, divididos em dois períodos diferentes: entre 2005 e 2008 e, mais recentemente, de 2016 até os dias atuais.
Ambos entendem que as condições para os entregadores sofreram uma deterioração nos últimos meses.
"Nós tínhamos uma crença de que o inverno [entre os meses de dezembro e março no Hemisfério Norte] era o período em que se fazia mais dinheiro, já que as pessoas ficam mais em casa por causa do frio e das condições climáticas e acabam fazendo mais pedidos de comida", contextualiza Cioffi.
Além disso, grandes datas comemorativas e feriados, como o 1° de Janeiro, costumam ser dias muito lucrativos para os entregadores, pois as plataformas prometem taxas mais elevadas para quem trabalha nessas ocasiões.
"Só que na prática isso não aconteceu [em 2024]. Estávamos ganhando o mesmo ou até menos do que no verão [entre junho e setembro de 2023]."
A partir de janeiro de 2024, relata Cioffi, os trabalhadores começaram a notar que o valor oferecido pelas entregas estava caindo aos poucos.
"Em pedidos que antes ganhávamos 4 libras [R$ 24], passamos a receber 3,15 [R$ 19]. E mesmo quando fazíamos uma ordem dupla, com duas entregas numa mesma viagem, os valores foram diminuídos. Antes eram de 6,30 [R$ 39] e passaram a ser de 4,50 [R$ 28]", exemplifica ele.
Vale ressaltar que esses valores, mesmo convertidos para o Real, precisam ser pensados na perspectiva do Reino Unido — e não podem ser automaticamente aplicados no custo de vida e na realidade brasileira.
Para se ter uma ideia, na capital Londres uma viagem de metrô dentro da zona 1 (centro da cidade) no horário de pico custa 2,80 libras (R$ 17,40).
Os entregadores passaram a notar cada vez mais variações nos valores recebidos e não entendem os critérios usados pelas plataformas para remunerar pelo serviço que eles prestam.
"De cada dez motoqueiros com quem conversava, dez reclamavam sobre quanto recebiam", estima Costa.
O estranhamento virou assunto recorrente quando esses profissionais se encontravam entre uma viagem e outra — e um local foi apontado por Cioffi e Costa como a origem da articulação pela greve.
O Deliveroo, o líder do mercado desses apps no Reino Unido, possui uma dark kitchen (uma cozinha que só prepara refeições para entrega) no bairro de Battersea, que fica no sul de Londres.
"Começamos a nos reunir ali para conversar e decidimos que precisávamos fazer algo para mudar essa realidade", resume Costa.
Cioffi diz que o grupo percebeu coletivamente que existe uma cadeia de suprimentos, que passa por fornecedores, restaurantes, aplicativos, entregadores e clientes.
"Nós somos a última peça dessa cadeia e temos a possibilidade de quebrá-la se fizermos a paralisação."
Por meio de conversas em aplicativos de mensagem e postagens nas redes sociais, o grupo que iniciou com cerca de sete pessoas ganhou centenas de adeptos rapidamente.
Atualmente, a página no Instagram @deliveryjobuk, que centraliza as manifestações do coletivo, conta com 2 mil seguidores. A maioria das postagens é feita em português, com uma tradução para o inglês na legenda ou nos comentários.
Os organizadores do movimento também cuidam de três grupos de WhatsApp, cada um deles com mais de mil integrantes.
Os entrevistados avaliam que o mercado de entregadores de aplicativo no Reino Unido é composto por 50 a 60% de brasileiros. No passado, essa porcentagem chegou a ser ainda maior.
"Nós percebemos que, nos grupos de WhatsApp, havia umas 20 ou 25 pessoas que eram mais ativas. Elas se tornaram nossos capitães, ou aqueles que são responsáveis por levar o material de greve e motivar as pessoas de uma determinada região de Londres", detalha Cioffi.
Segundo ele, há um grupo de seis pessoas na coordenação geral do movimento, que "se dedicam bastante à causa sem levantar nenhum dinheiro por isso".
A maior paralisação está prevista para Londres. Mas também há a expectativa de que o movimento se estenda para outras cidades da Inglaterra, como Cambridge e Brighton.
Essa também não é a primeira vez que os entregadores param por melhores condições de trabalho. Uma primeira greve já aconteceu em uma sexta-feira, dia 2 de fevereiro.
Custos no bolso (e na saúde)
Cioffi destaca que as mudanças nas condições de remuneração dos entregadores de aplicativos estão trazendo impactos na saúde e na qualidade de vida deles.
Com menos dinheiro pago por entrega, muitos precisam estender a carga de trabalho por 12 horas por dia para conseguir pagar as contas do mês, aponta ele.
"Vemos colegas que começam a apresentar problemas de saúde mental, como ansiedade. Outros enfrentam o fim dos relacionamentos, pois passam o dia em cima da moto e não conseguem mais ver a esposa ou os filhos."
"Alguns precisam comer fast food enquanto dirigem, e vemos o aumento da obesidade. E isso sem contar as dores físicas por problemas na coluna e tendinites, já que ficamos sentados, com as costas curvadas, por muitas horas", acrescenta ele.
Costa lembra que trabalhar na moto como autônomo envolve muitos riscos e pode gerar custos importantes no orçamento — ainda mais com a pressão para fazer entregas rápidas, seja pelas metas estipuladas nas promoções e anúncios dos aplicativos ou pela necessidade de compensar os cortes dos valores pagos.
Ele próprio sofreu um acidente há duas semanas — num dia chuvoso, após realizar uma entrega, a motocicleta aquaplanou na pista e o entregador caiu no asfalto.
"Me machuquei bastante e fiquei parado, praticamente sem trabalhar, por mais de uma semana. O conserto da minha moto ficou em 480 libras [R$ 2.996], e no Reino Unido não há a possibilidade de fazer o pagamento parcelado no cartão de crédito, como estamos acostumados no Brasil."
"E ainda tem o custo do seguro da moto, da gasolina, dos pneus… Para ter ideia, há quatro anos, um pneu custava 50 libras [R$312]. Hoje está 80 [R$ 499]."
Há ainda a necessidade de investir em equipamentos de proteção e roupas apropriadas para o frio ou a chuva, tão frequentes em terras britânicas.
Além da parte financeira, os entregadores contam que precisam lidar com ataques de racismo e xenofobia, seja no mundo real ou no virtual.
"Durante a pandemia de covid-19, éramos tratados como heróis, porque estávamos nas ruas mesmo com o risco iminente do coronavírus. Hoje em dia, somos acusados de roubar empregos e até cuspe já levei durante uma entrega", relata Costa.
Nas redes sociais do grupo, são frequentes os comentários que acusam os trabalhadores de serem imigrantes ilegais — ou que sugerem um retorno ao país de origem, já que supostamente não estão satisfeitos com as condições de trabalho locais.
Cioffi minimiza esse tipo de interação. "Eu pessoalmente tento manter a moral do grupo em alta, até porque sabemos que muitos desses perfis são falsos."
"Precisamos prestar atenção ao que acontece nas ruas, onde não existem os trolls da internet. O importante mesmo é falar com as pessoas reais, os Johns e as Marys, pois há uma chance muito maior de tê-los ao nosso lado", acredita ele.
O que dizem as empresas
A BBC News Brasil entrou em contato com as quatro companhias citadas no início da reportagem, para que elas pudessem se posicionar sobre as demandas apresentadas pelos trabalhadores.
Em nota, a Stuart afirmou que "continua comprometida em oferecer oportunidades de ganhos competitivos aos entregadores parceiros e ser uma plataforma centrada nesses trabalhadores".
"Nós vamos trabalhar com os clientes para minimizar os problemas durante o período que será impactado [pela greve]", diz o texto.
A Just Eat destacou que "leva extremamente a sério todas as preocupações dos entregadores".
"O bem-estar deles é importante para nós, e estamos abertos a receber esse tipo de retorno."
"Nossos dados revelam que os profissionais que fazem entregas para a Just Eat ganham, em média, um valor significativamente acima do salário mínimo nacional durante o tempo em que eles estão ativos na plataforma."
"Nós oferecemos uma taxa-base altamente competitiva aos entregadores autônomos e temos um bom relacionamento com a vasta maioria deles. Também oferecemos incentivos regulares para ajudá-los a maximizar os ganhos, além de revisar continuamente nossa estrutura de pagamentos", finaliza o texto.
Já a Deliveroo enviou uma nota em português, em que diz ter "como objetivo fornecer aos entregadores de aplicativo o trabalho flexível que eles dizem valorizar, melhores oportunidades de ganhos e proteções".
"As taxas de retenção de entregadores de aplicativos são altas e a grande maioria nos diz que está satisfeita em trabalhar conosco. Valorizamos o diálogo, e é por isso que temos um acordo de parceria voluntária com um sindicato, que inclui discussões anuais sobre remuneração."
"Temos o prazer de também poder oferecer aos entregadores de aplicativos seguro gratuito, cobertura contra doenças, apoio financeiro quando os entregadores se tornam pais e uma vasta lista de oportunidades de treinamento", conclui a empresa.
A Uber Eats não enviou respostas até a publicação desta reportagem.
O que querem os entregadores
Cioffi e Costa contam que o coletivo de entregadores escreveu uma carta aberta, em que todos os problemas que eles sofrem foram apresentados. O texto foi remetido às quatro empresas do ramo.
Segundo eles, a única que procurou diretamente os trabalhadores para conversar foi a Deliveroo — as demais não responderam diretamente à carta, apenas enviaram comunicados para os veículos de imprensa que realizaram reportagens a respeito da greve. Os líderes do movimento enxergam essa decisão como um "desrespeito".
Eles também classificam como uma "mentira completa" a alegação de que conseguem receber o proporcional salário mínimo durante as horas trabalhadas, que atualmente está em 10,42 libras [R$ 65] por hora.
"Nos reunimos ontem (12/2) com uma diretora e três representantes do Deliveroo, e pudemos mostrar para eles os motivos que levaram à paralisação", conta Costa.
O entregador destaca que algumas das vantagens citadas pelas empresas estão longe da realidade de quem precisa ficar boa parte do dia e da noite em ruas e estradas.
"Como vou fazer um treinamento se passo 12 horas realizando entregas?", questiona ele.
Costa também destaca que muitos entregadores ficam receosos de fazer avaliações negativas sobre as condições de trabalho para as empresas, com medo de serem banidos dos aplicativos.
Com a greve, os trabalhadores buscam alcançar dois objetivos principais. "Queremos uma taxa padrão mínima de 5 libras [R$ 31] para as entregas, com taxas variáveis para distâncias maiores", resume Costa.
"E também pedimos acesso aos materiais necessários para trabalhar, como as bolsas térmicas e jaquetas adequadas para o frio, que atualmente precisamos custear do nosso bolso", complementa Cioffi.
O entregador destaca que, assim como ocorre em outros setores, há uma grande polarização política entre os entregadores — mas a greve está unindo uma parcela importante deles em prol de uma causa comum.
"É frequente a gente ouvir colegas repetindo aquele discurso de que são patrões de si mesmos, quando a gente sabe que nosso patrão é o monte de contas a pagar. Mas, nesse caso, a tal 'mão invisível do mercado' deu um tapa na cara de todos nós", avalia ele.
Cioffi diz que as greves só acabarão no momento em que as plataformas aceitarem as condições impostas.
"Vamos parar todas as sextas-feiras, feriados, Dia das Mães, Dia dos Pais, Ramadã…"
"Nós acreditamos que esse pode se tornar um movimento nacional, em todo o Reino Unido. E vamos dobrar a aposta, até porque não temos nada a perder", conclui ele.
- 'Só por milagre ganharia o mesmo no Brasil': como é ser motoboy na Inglaterra
- Trabalhar para app rende menos por hora a motoristas e entregadores; veja salários
- Motorista e entregador: onde trabalhadores de app têm mais direitos que no Brasil