Sarah Ashour, 23 anos, levará um tempo para esquecer a madrugada desta segunda-feira (12/2). "O fogo ardia em todas as direções. Os sons das bombas eram de partir o coração. Pensamos que seria a nossa última noite. Todos os moradores e os deslocados internamente enfrentam um estado de terror geral", contou a palestina, que, dois meses atrás, foi forçada a fugir de Khan Yunis e a se abrigar em Rafah, no sul da Faixa de Gaza. Antes da guerra, a cidade tinha 300 mil habitantes. Hoje, são mais de 1,7 milhão de pessoas. Os bombardeios sacudiram Rafah por cerca de uma hora, entre 1h e 2h (entre 20h e 21h de domingo, em Brasília), deixaram pelo menos 67 mortos — segundo o Ministério da Saúde de Gaza, controlado pelo movimento extremista Hamas — e ampliaram o temor de uma massiva invasão terrestre. Enquanto Rafah vivia o seu inferno, Israel celebrava um vislumbre de esperança. A operação militar terminou com o resgate de dois reféns de dupla nacionalidade (argentina e israelense): Fernando Marman, 61, e Louis Har, 70.
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O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, se reuniu com os militares que participaram da ofensiva em Rafah e elogiou "um dos resgates mais bem-sucedidos da história do país". "Este é um dia de alegria misturada com tristeza. Alegria pela libertação de nossos reféns e tristeza pela queda de nossos soldados", declarou, ao citar as mortes dos sargentos Adi Eldor e Alon Kleinman. O chefe de governo assegurou que suas forças realizarão novas operações para recuperar parte dos 134 israelenses que seguem em poder do Hamas desde o massacre de 7 de outubro. As Brigadas Al-Qassam, braço armado do Hamas, informaram que três reféns morreram durante os bombardeios. A informação não pôde ser confirmada de forma independente.
Porta-voz das Forças de Defesa de Israel (IDF), o major brasileiro-israelense Rafael Rozenszajn explicou que o êxito do resgate se deu graças à ação conjunta do exército com o serviço de segurança Shin Bet e as Yamam, forças especiais da Polícia de Israel. "Foi uma operação complexa, sob fogo, no coração de Rafah. (...) Houve cobertura aérea e uma onda de ataques por parte da Força Aérea de Israel e do Comando Sul. (...) À 1h49, as forças especiais invadiram o prédio. Louis e Fernando eram mantidos pelos terroristas do Hamas no segundo andar. As forças Yamam protegeram ambos com seus corpos e iniciaram uma ousada batalha, com pesadas trocas de tiros, em vários locais simultâneos", relatou à reportagem.
Sob fogo, os dois reféns libertados foram conduzidos até uma área segura, submetidos a exame médico e embarcados em um helicóptero, que os levou até o Hospital Tel Hashomer, em Ramat Gan, subúrbio de Tel Aviv. Um vídeo divulgado pelas IDF mostra as primeiras reações de Fernando e Louis após o resgate. "Bem-vindos de volta! Como vocês estão, rapazes? Como estão se sentindo?", pergunta um dos militares da unidade Shayetet 13, que usava câmera acoplada ao corpo. "Chocado, chocado, tudo bem", responde um deles. "Estamos entrando no helicóptero. Coloquem os casacos. Estamos embarcando e voando para o Hospital Tel Hashomer", diz o soldado. Em um momento, os dois aparecem sorrindo. "Nós amamos vocês!", afirma outro militar.
Os bombardeios da madrugada fizeram com que muitos palestinos fugissem de Rafah. "O problema é que não sabemos para onde ir", lamentou Sarah. O repórter fotográfico freelancer Ezzedine Ayman Muasher, 23, dormia em sua casa, em Rafah, quando foi despertado pelos bombardeios. "Ouvi o som terrível de ataques. Quando saí, descobri que a residência de nosso vizinho tinha se transformado em escombros sobre a cabeça de seus moradores, em sua maioria, mulheres e crianças. Encontrei partes de corpos no chão, cabeças separadas dos corpos, e vi uma criança amputada que também havia morrido", contou ao Correio, por meio do WhatsApp. Uma das fotos de Muasher viralizou nas redes sociais: o corpo de uma menina, com as pernas arrancadas, pendurado pela própria roupa e preso ao muro.
Segundo ele, a população de Rafah e os palestinos abrigados em Rafah estão em pânico, ante a expectativa de uma invasão por terra. "Isso significa que Israel pretende cometer massacres contra civis, como o fez no norte de Gaza. A diferença é que o número de vítimas em Rafah será bem maior, ante a grande população", desabafou Muasher. Sarah Ashour, por sua vez, disse que "confia o seu destino em Deus".
O procurador do Tribunal Penal Internacional (TPI), Karim Khan, expressou preocupação ante a possível ofensiva israelense em Rafah. Ele alertou que quem violar o direito internacional será processado, em um claro recado a Israel. "Estou profundamente preocupado com as informações sobre o bombardeio e uma potencial ofensiva terrestre das forças israelenses em Rafah. (...) Todas as guerras têm regras e as leis aplicáveis aos conflitos armados não podem ser interpretadas de uma forma que as deixe vazias ou sem sentido", advertiu. Ontem, a França anunciou que conseguiu retirar 42 pessoas da Faixa de Gaza, incluindo cidadãos franceses e colaboradores do Instituto Francês e seus familiares.
EU ACHO...
"A comida por aqui é escassa, e a água está poluída. Há um estado de ansiedade geral entre as pessoas. Algumas estão sob tendas, outras dormem nas ruas. Todos estamos com medo e preocupados. Durante os últimos quatro meses, ninguém recebeu salário. Todos, inclusive os ricos, ficaram pobres. A situação das mulheres é difícil. Não temos absorventes higiênicos, e o frio é extremo. As crianças sofrem de sarna, têm erupções cutâneas e desenvolvem doenças infecciosas. Idosos e pessoas com necessidades especiais também perderam os cuidados que recebiam."
Sarah Ashour, 23 anos, moradora de Khan Yunis abrigada há dois meses em Rafah
"A situação em Rafah é trágica. Há um número muito grande de deslocados internamente, concentrados em uma área pequena. Quando um míssil cai sobre a cidade, dezenas de pessoas morrem. A madrugada desta segunda-feira foi assustadora. Todos choravam e gritavam por causa do horror das explosões e do número de mártires. O que aconteceu aqui é algo contrário à humanidade e aos direitos humanos. Vi fetos no ventre de suas mães que foram mortos e mutilados."
Ezzedine Ayman Muasher, 23 anos, jornalista, morador de Rafah